Nuno Artur Silva nasceu em Lisboa, há 60 anos, e desde então construiu uma vida cheia de experiências e aventuras. Estudou no Liceu Pedro Nunes, onde chegava quando abriam os portões para jogar à bola, licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas e chegou a dar aulas no ensino básico e secundário.

Nos anos noventa fundou as Produções Fictícias, que se transformaram no berço de vários dos maiores humoristas e de alguns dos melhores pedaços de humor nacionais. É responsável pela criação de programas como Herman Zap, Herman Enciclopédia, Contra Informação, o Programa da Maria, Os Contemporâneos ou o Inimigo Público.

Também já foi secretário de Estado da Cultura e já foi administrador da RTP.

Sócio do Benfica durante 25 anos, recebeu a Águia de Prata e deixou de pagar as quotas, para com aquele dinheiro se inscrever na Amnistia Internacional. O futebol, porém, nunca deixou de estar na vida dele, como pano de fundo da sociedade e matéria para fazer humor. Atualmente está em cena com o espetáculo de humor «Onde é que eu ia», no São Luís, e o futebol volta a estar por perto.

Qual é a sua relação com o futebol?

Nesta altura é uma relação mais distante, mas já foi uma relação muito próxima. Quando eu era miúdo jogava imenso futebol. Em todo lado. Por influência do meu pai era do Benfica e nessa altura seguia o jogo, tinha os cromos da bola e, sim, era um verdadeiro fã.

Era daqueles que passavam o dia inteiro a jogar futebol?

Completamente. Eu morava em Campolide e havia uma rua sem saída, que se chamava o beco, onde passávamos o tempo a jogar à bola. Mas jogava em todo lado. Joguei muito na escola primária de Campolide e lembro-me, por exemplo, que no Liceu Pedro Nunes jogávamos futebol em todos os intervalos, a toda a hora. Íamos até mais cedo para jogar. Chegávamos com os portões da escola a abrir, para aproveitar ao máximo.

E tinha jeito para a coisa?

Curiosamente tinha jeito, sim. Nessa altura os meus ídolos eram aquela equipa do Benfica de Jimmy Hagan que acabou o campeonato sem derrotas e gostava particularmente da forma como Nené jogava. Era fã do Nené e acho que tentava jogar como ele.

O que é gostava no futebol do Nené?

A inteligência dele. O sentido de posicionamento, a capacidade de ler o jogo, de estar no sítio certo e no momento certo. E de fazer tudo isso com uma enorme elegância. Gostava da maneira elegante como ele se movimentava, sem fazer espalhafato e sendo extraordinariamente eficaz. Mas gostava de outros, quer dizer... Aquela equipa do Benfica era incrível. Desde os guarda-redes, que eram o José Henriques, primeiro, e depois o Bento. O capitão Humberto Coelho. O Toni era um extraordinário médio. E depois toda aquela linha avançada: o Eusébio, o Artur Jorge, o Nené, o Simões, o Vítor Batista.

O maior.

Curiosamente estava no estádio no dia em que perdeu o brinco e andou lá tudo à procura do brinco do Vítor Batista.

E percebeu o que se estava a passar?

Logo na altura não. Passados uns minutos é que começou a perceber-se o que estava a acontecer. Foi uma situação insólita, não é? Mas tenho essa memória e tenho muito boas memórias de ir aos jogos do Benfica no Estádio da Luz.

Essa paixão pelo futebol foi-lhe passada pelo seu pai?

Sim, foi passada pelo meu pai, que era um grande benfiquista e levava-me aos jogos. Depois houve ali um período, nos anos 80, com muita agressividade nos campos, um período em que o futebol não foi tão bom, ele desinteressou-se um pouco e eu desinteressei-me também. Aliás, há uma história engraçada. Eu era sócio do Benfica desde que nasci, mas entretanto fui-me afastando e quando tinha 24 anos disse ao meu pai: «Olha, acho que não faz sentido pagar quotas para um clube de futebol, por isso vou deixar de pagar». Ele lembrou-me que tinha 24 anos de sócio e disse-me para esperar mais um ano, que seria Águia de Prata. Foi o que eu fiz, esperei um ano, recebi a Águia de Prata e depois, com o dinheiro do Benfica, inscrevi-me na Amnistia Internacional. Portanto, troquei o Benfica pela Amnistia Internacional, o que para mim fazia mais sentido.

E que lugar ocupa agora o Benfica na sua vida?

Nunca deixa de ter uma simpatia pelo Benfica. Está lá sempre e tem a ver um pouco com a relação com meu pai, claro, e com esse tempo da minha vida. Lembro-me, já depois de sair da administração da RTP, de me cruzar algumas vezes com Rui Costa no mesmo restaurante e ainda vinha um bocadinho daquela paixão clubística. Aliás o Rui Costa foi dos últimos jogadores com quem vibrei mesmo. Acho que daquela geração ele era o melhor.

Melhor do que o Figo?

Diferentes, mas eu gostava mais do estilo do Rui Costa, sim.

Depois passou por uma fase em que ir à bola com os amigos se tornou um ritual, certo?

Sim, quando era novo. Depois em adulto deixei de ir. Mas houve várias ocasiões em que voltei a cruzar-me com o jogo. A mais evidente terá sido quando estive na RTP como administrador. Dei-me sempre muito bem com os jornalistas e nomeadamente os jornalistas da área desportiva. O grupo do Carlos Daniel, Hugo Gilberto e toda aquela equipa. Negociámos os direitos do Europeu, que acabámos por ganhar, e nessa altura voltei a aproximar-me do jogo já pelo lado da seleção. Foi um processo muito empolgante aquele caminho até o título europeu.

Nessa altura conheceu o outro lado do futebol?

Aquela coisa dos dirigentes? Não, não. Quem negociava a compra de direitos era o presidente, Gonçalo Reis, eu tinha a pasta dos conteúdos e acompanhava mais o que podia fazer em termos de cobertura e emissões especiais. Sempre me bati para que a RTP tivesse o melhor conteúdo: o melhor cinema, os melhores documentários, o melhor futebol. Com os melhores comentadores, em que se desse mais destaque ao jogo e menos ao blá, blá, blá. Uma das coisas que dizia era: «Eh pá, não me metam conferências de imprensa de jogos que ainda vão acontecer nos telejornais, não faz sentido nenhum, arranjem programas desportivos para meter essas coisas, mas nos telejornais não». Aquele rame-rame, aquele encher chouriços, em que toda a gente diz sempre as mesmas banalidades, isso não é conteúdo de telejornal. A RTP devia ter o espetáculo, a emoção, o jogo e a crítica bem fundada. O blá, blá, blá à volta do futebol, não.

Mas é curioso que foi esse blá, blá, blá que lhe deu mais material enquanto argumentista.

Claro. Mas como material humorístico é bom. Só não é conteúdo jornalístico. Não criei, mas escrevi muitos textos para o Estebes, por exemplo. O Estebes foi uma personagem criada para o Herman José pelo António Tavares-Telles e pelo Tozé Brito. Também criámos a personagem do Zé Manel taxista para a Maria Rueff, que era um benfiquista ferrenho. Os autores que mais escreveram para o Zé Manel até foram o Ricardo Araújo Pereira e o Miguel Góis.

E depois há o Contra Informação, com o Major Valentão, o Bimbo da Costa...

O Contra Informação foi um formato que eu desenvolvi. Fiz a formatação com o Ricardo Cardoso Martins e com o José de Pina. Eles depois formavam uma equipa diária de escrita que chegou a ter por lá o João Quadros, o Eduardo Madeira, o Felipe Homem Fonseca. Eles é que escreviam, mas de cada vez que era preciso escolher novos bonecos eu também participava. Lembro-me que houve uma polémica logo no início, porque o primeiro boneco que tivemos no Contra Informação foi o do Pinto da Costa.

O Bimbo da Costa.

Sim, o Bimbo da Costa. Foi o primeiro a aparecer, não havia ainda mais nenhum e na altura isto caiu muito mal no Porto, e particularmente no Pinto da Costa, que chegou a ameaçar tirar os jogos do FC Porto da RTP, porque achava que estava a ser gozado.

Só havia o boneco do Pinto da Costa?

No princípio, sim. Depois passado pouco tempo apareceu o Vale e Azevedo, do Benfica, que era o Vale Tudo. Depois apareceu o Dias da Cunha, enfim. Mas não apareceram ao mesmo tempo, o do Pinto da Costa surgiu primeiro e eles julgaram que ia ser uma coisa parcial.

E como é que apareceram o Bobi e o Tareco?

É cómico, porque o Pinto da Costa terá dito numa entrevista que só admitia que se rissem dele o cão, o gato e a filha. Nós tínhamos lá uns bonecos, que eram um cão e um gato, e não sabíamos exatamente o que poderíamos fazer com eles. Depois dele ter dito essa frase, por ideia do Ricardo Cardoso Martins, passaram sempre a aparecer o cão e o gato. Sempre que o Pinto da Costa falava, o gato e o cão apareciam e riam-se. Então ele dizia: «Bobi, Tareco»...

«Busca, busca, mata, mata.»

Esses bonecos tornaram-se extremamente populares e o próprio Pinto da Costa começou a até a brincar com isso. Sobretudo quando percebeu que os outros também eram visados.

O Bobi e o Tareco tinham algum objetivo por detrás?

Não, era só mesmo comédia. Nós tínhamos lá os bonecos do cão e do gato, não sabíamos o que lhe havíamos de fazer e lembrámo-nos disso.

Curiosamente depois tornaram-se quase míticos no programa.

Claro. Como era um programa diário vivia muito da repetição dos chamados bordões. Cada personagem, fosse ele desportivo ou político, tinha sempre uma frase que era associada à personagem. Por exemplo, o Major Valentão era o «quantos são, quantos são?» O Toneca Guterres dizia sempre «é a vida». O Bimbo da Costa dizia sempre o «penso eu de que».

E essa veio de onde?

O «penso eu de que» acho que foi uma frase que ele disse mesmo, também. O José de Pina e o Ricardo Cardoso Martins tinham muito bom ouvido para apanhar frases que eles dizem. Essas frases ficavam e eram repetidas. Lembro-me que a personagem do Marques Mendes, que era Marques Pentes, dizia sempre o «ganda nóia». Isto ganhou uma popularidade tal que a dada altura os políticos até ficaram mais conhecidos pelos nomes que tinham no Contra Informação. O programa esteve no ar, salvo erro, durante treze anos. Foi muito tempo.

Hoje ainda usa esse futebol dos bastidores para os seus textos?

Já não estou a fazer humor industrial, digamos, aquele humor de todos os dias. Mas no espetáculo que tenho agora há também uma referência ao futebol. Aliás, cito o Gabriel Alves, que é um dos grandes pensadores da vida portuguesa, como eu o apresento. Portanto, o futebol está lá sempre, a importância que o futebol tem nas nossas vidas é enorme.

Essa importância é exagerada?

Eu acho que sim. Comparado sobretudo com o resto. Mas como eu costumo dizer, o futebol é um ótimo substituto para as guerras. O desporto em geral, e o futebol em particular, é uma excelente forma de canalizar as energias e a agressividade que muitas vezes existem, sobretudo nos mais novos, aquela testosterona toda. É uma forma benigna de canalização da energia. E eu gosto muito desta ideia do lado infantojuvenil da alegria do futebol, quando se festeja um golo, quando nos reunimos para ver um jogo e depois nos abraçamos. Há aí uma alegria que de facto é muito boa. É um bocadinho uma alegria sem mais nada.

Uma alegria irracional?

Não é tanto irracional, mas é uma alegria por motivos quase infantis. Porque alguém chutou uma bola para dentro de uma baliza. Mas a verdade é que isso faz-nos bem.

E no dia seguinte estamos felizes.

E no dia seguinte estamos felizes. Como é que alguém pode dizer mal disso? Não pode, isso é bom, as pessoas ficarem alegres é uma coisa boa. Onde é que eu acho que depois é um disparate? No fanatismo. É uma coisa absurda, sobretudo aquelas horas infinitas que se passam a discutir penáltis. Atenção, eu gosto de uma boa análise, gosto de ver um bom comentador que analisa o jogo. Aquilo ilumina-se, é como um bom crítico a falar de um livro. Mas quando às vezes faço um zapping e apanho aqueles comentários fanatizados, a discutir infinitamente se foi penálti ou se não foi penálti, isso é o que me faz desligar imediatamente.

O que nos leva a outra análise: se é o futebol que tem um peso grande na sociedade ou se são os clubes?

São os clubes. Aliás, agora há uma corrente que diz que quem gosta de futebol só gosta de clubes, a seleção não interessa para nada. Mas disso eu não gosto. Não me agrada e não me faz vibrar. Eu vibro pelos jogadores e pelas jogadas. O melhor do futebol para mim serão sempre os jogadores que fazem aquilo que nós não estávamos à espera. Isto é, aqueles que fogem à previsibilidade e que de repente, numa jogada, mudam tudo. Gosto daqueles improvisadores extraordinários. O Chalana era um desses casos. Nós já sabíamos que quando ele pegava na bola qualquer coisa imprevista podia acontecer. Qualquer coisa de excecional.

E isso acontece com muitos jogadores?

Sim, sim. Na atualidade acontece ainda, obviamente, com Ronaldo e com Messi. Mas há muitos. O Ronaldinho Gaúcho tinha um talento inacreditável, o Zidane também. Mesmo em Portugal nesta altura há vários jogadores desses, com um lado explosivo de criatividade. O João Félix, por exemplo. Ou o Rafael Leão. Gosto de ver futebol quando é bom, gosto da emoção. Gosto daquela coisa de nos juntarmos para ver um grande jogo.

Para terminar, consegue identificar a personagem do futebol de hoje com mais potencial humorístico?

Há muitas. Olhe, para começar, muitos desses comentadores fanatizados são cromos inacreditáveis. Depois, o Pinto da Costa ainda está em atividade e é uma figura que dá pano para mangas. E o Jorge Jesus tem um potencial ao qual é impossível humoristicamente resistir, embora seja também difícil, porque a personagem real ultrapassa muitas vezes o humor. Ele vive por si num registo já humorístico.

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