Costuma dizer-se que filho de peixe sabe nadar, mas no caso de Bernardo ser filho de António Folha não bastou para chegar ao aquário dos tubarões. O jovem médio teve de mergulhar uma, e outra, e outra vez até se tornar no que é hoje.

Nascido no Porto, em março de 2002, Bernardo Folha viveu desde sempre dentro do futebol. Começou a jogar, aliás, aos quatro anos no Panterinhas, e nunca mais parou.

Tudo aconteceu por influência do irmão mais velho, Miguel, que nessa altura jogava na escola de futebol do Boavista, que funcionava no rinque da Pasteleira. Bernardo acompanhava o irmão aos treinos e ficava do lado de fora a divertir-se com a bola.

Os responsáveis do Panterinhas perceberam o talento do miúdo e convenceram os pais a deixá-lo juntar-se à equipa mais jovem, que tinha crianças de seis anos.

Tudo começou ali, no rinque do Bairro da Pasteleira, a jogar com crianças dois anos mais velhas do que ele. Acabou por ficar no clube até aos sete anos, altura em que se mudou para o FC Porto. Afinal de contas, o clube pelo qual já batia o coração.

«Sendo filho de quem é, ele cresceu em casa a ver futebol e a falar de futebol, o que lhe deu um crescimento diferente de outros miúdos que não veem jogos», conta Israel Dionísio, que treinou Bernardo Folha durante várias épocas no FC Porto.

«O que acontece muito agora é que os miúdos querem ser jogadores pela vida que o futebol dá e não porque amem o futebol. Por isso só veem os grandes jogos e a Champions. O Bernardo era capaz de consumir muito mais futebol e isso ajudou-o.»

Curiosamente, quando o filho nasceu Folha não viu. O esquerdino encontrava-se na Grécia, onde representava o AEK Atenas. No dia de nascimento de Bernardo, estava em campo, a defrontar o Panachiki. Por isso só viajou para Portugal no dia a seguir.

O dia em que marcou 28 golos num jogo frente às escolinhas do Sp. Braga

Com oito anos começou a jogar no FC Porto e deu logo nas vistas.

«Comecei a trabalhar com ele nos sub-13, naquela geração do Fábio Silva, e nessa altura havia um aspeto em que ele já se destacava: a forma como ele pensava e como percebia o jogo a nível de tomada de decisão», acrescenta Israel Dionísio.

«Ele sempre teve uma perceção diferente, jogava de primeira. No futebol dar fluidez ao jogo e tomar decisões mais depressa é o que nos destaca. Por exemplo, numa situação em que os outros precisavam de dar dois toques na bola, ele dava só um toque e fazia muito fluir o jogo. Outra coisa que tinha era a facilidade de remate de longa distância, tanto com um pé como com outro.»

Por isso, porque tinha características que já o distinguiam dos outros, houve um jogo ainda no Pasteleira em que fez... 28 golos (vinte e oito!).

Foi contra uma escolinha do Sp Braga e os Panterinhas venceram por 29-0.

A fama de Bernardo Folha começou a espalhar-se e à família chegaram contactos do Benfica e do Sporting. O miúdo, no entanto, não quis saber. Gostava de jogar nos Panterinhas, onde tinha os amigos, e tinha um coração pintado de azul.

A história mudou quando foi o FC Porto a bater à porta. Afinal de contas, esse era o sonho dele: seguir as pisadas do pai.

António Folha, no entanto, tentou sempre manter-se à parte e acompanhou a evolução do filho de fora. Sobretudo no apoio que lhe dava em casa.

O atual treinador da equipa B estabeleceu algumas linhas vermelhas, aliás.

Não ia ver os treinos do filho, por exemplo, nos jogos tentava manter-se distante dos outros pais e não dava boleias para o Olival.

Embora fossem para o mesmo local, Bernardo ia a maior parte das vezes na carrinha do clube. Mais tarde, pedia boleia a colegas, à mãe, ao irmão. O pai dizia-lhe que se desenrascasse: a partir do momento em que acordavam, ele era o treinador.

«Conheci o Bernardo quando ele tinha oito anos, estive com eles três anos e o Folha nunca foi, por exemplo, a nenhuma reunião de pais no clube. Fazia mesmo questão de não ir. Depois entrou como treinador do FC Porto e entregou esse papel completamente à mãe», conta Mara Vieira, outra antiga treinadora do FC Porto.

«Mas é importante destacar o apoio da família em tudo. Notou-se sempre que o Bernardo tinha uma vida familiar estável e emocionalmente era muito sólido. Quando chegou já era muito sociável, integrou-se rapidamente, mostrou qualidades de liderança e como era mais calmo até funcionava como mediador de conflitos.»

Comprou um ginásio, instalou-o em casa dos pais e trabalhou três vezes por dia

Várias pessoas que lhe são próximas destacam aliás essa característica: sempre foi um miúdo muito forte na parte mental. Até porque, sendo filho de quem é, acabou por desenvolver uma personalidade muito forte para não ser fácil atingi-lo.

«O que mais se destacava nele era a capacidade de liderança. Apanhei-o em sub-14 como adjunto e em sub-16 como treinador principal. Com 15 anos já era capitão e demonstrava essa característica. Era o primeiro a cobrar dos colegas e o primeiro a exigir dele mesmo. Sempre foi um miúdo muito exigente. O facto de ser visto como um líder pelo colegas, fazia-o ser muito exigente com ele próprio», conta Pedro Mané.

«Houve uma vez em que, em frente aos colegas, expôs um colega que até era um grande amigo dele. Disse-lhe na cara que o que ele estava a fazer não era correto e que estava a prejudicar a equipa. Ele sabe perfeitamente que o ambiente em torno dele vai fazê-lo melhor e é muito exigente. Com ele, antes de mais, mas também com os colegas. Por isso está onde agora está.»

Ora Bernardo Folha foi crescendo aos longos dos anos, sempre vestido de azul e branco, e o pai foi evoluindo como treinador nas camadas jovens do FC Porto.

Israel Dionísio lembra, por exemplo, um episódio quando o miúdo estava na equipa da Dragon Force. Tinha na altura 12 anos.

«Estávamos a participar já na fase final, estávamos a jogar à chuva, o campo era sintético, mas estava em muito mau estado e ele desbloqueou o jogo com dois remates: um de pé direito e outro de pé esquerdo, ambos de fora da área», revela.

«Na altura fomos campeões com miúdos que estavam a jogar num escalão acima. Foi a primeira vez que aconteceu no FC Porto.»

No entanto, a evolução de Bernardo Folha não foi uma linha reta. Há uma frase de Mara Vieira, aliás, que é esclarecedora.

«Naquela altura o Bernardo já se destacava, mas não era o jogador que se destacava mais. Foi o percurso dele mais tarde que o levou onde está hoje.»

O que é corroborado por Israel Dionísio.

«Houve ali dois anos em que ele pode não ter evoluído tão bem quanto devia, não sei por que razão. Ele atravessou uma fase de algumas lesões e foi aí que se lhe deu o clique, porque entrámos na pandemia e ele percebeu que tinha de trabalhar o corpo.»

Foi então, quando o país se fechou dentro de casa, que Bernardo Folha se transformou no jogador que é hoje. Aconteceu a tal transformação de que se fala no título.

Os treinos, recorde-se, pararam por completo e o jovem investiu do próprio dinheiro na instalação de um ginásio em casa: neste caso, na casa dos pais, onde ainda mora. A partir daí treinava de manhã com os treinos online do FC Porto e depois fazia mais duas sessões por conta dele, com o apoio de um personal trainer.

Acontecia até, por exemplo, à uma da manhã o irmão estar a jogar FIFA online com os amigos e estes questionarem que barulho estranho estavam a ouvir: era Bernardo Folha a correr de madrugada na passadeira. Por isso o jovem ainda diz hoje aos colegas que se não fosse a pandemia, talvez não tivesse sido jogador.

«O futebol não é só jogo, o futebol é condição física e durante a pandemia ele transformou o corpo no que é agora. Estávamos a falar de um miúdo alto, mas muito magrinho, e agora estamos a falar de um jogador com porte atlético. Com isso ganhou capacidades de choque e de duelo físico, que são fundamentais para quem joga na posição dele, e aí exponenciou a capacidade técnica», recorda Israel Dionísio.

«É aquela velha história: jogar a bola, jogam muitos, mas depois há jogar futebol e para isso são necessárias várias variantes, e a capacidade física é uma delas. É preciso ter mais resistência, mais força e mais potência, porque o jogo nesta altura está a entrar numa vertente muita física.»

No fim do confinamento, Bernardo Folha estava um jogador diferente: sobretudo muito mais preparado para o futebol profissional. Por isso o FC Porto renovou-lhe contrato logo em dezembro e promoveu-o à equipa B.

Sérgio Conceição já o tinha chamado a um treino do plantel principal, quando ele ainda representava os juniores, mas foi a partir de então que se afirmou em definitivo.

Sem deixar nunca que a sombra do pai o afetasse.

«A influência do pai acho que se manifestou sobretudo na vontade do Bernardo em provar que o pai era o pai e ele era ele. A vontade de querer ser reconhecido como o Bernardo Folha, um jogador que merecia o reconhecimento que tem agora porque trabalhou para isso. Ele sabia que tinha de demonstrar sempre mais do que os outros», refere Pedro Mané.

Na estreia na equipa B foi expulso, é verdade, mas nunca mais voltou atrás. Este ano, no início da época, foi integrado no plantel principal e desde então já fez nove jogos.

Marcou um golo, fez uma assistência e ainda não parou de crescer. Num sinal claro de que aquela pandemia trouxe a metamorfose necessária no ciclo de vida do craque.