O FC Porto voltou a ser campeão. Dito assim nem parece grande notícia, o clube habituou-se há muitos anos a ganhar com regularidade, mas este não é um título normal. É um título revivalista, que pisca o olho ao grande FC Porto dos anos noventa, um título embrulhado em saudade.

É, na verdade, um título carregado de mística: a tal mística portista, de que tanto se fala, mas que o percurso dos dias tinha afastado do Dragão há vários anos.

Este FC Porto campeão tem no onze habitual, embora não tenha tido na Luz, quatro jogadores da formação, o que não se via desde o primeiro ano de Mourinho no clube. Nessa altura, Vítor Baía, Jorge Costa, Ricardo Carvalho e Hélder Postiga transportavam a identidade portista para dentro de campo. Agora são Diogo Costa, João Mário, Vitinha e Fábio Vieira que o fazem.

Pelo meio há vinte anos, e dez equipas campeãs, sem esta personalidade tão própria nos genes. Algumas delas nem tinham sequer um jogador formado em casa no onze inicial.

O séc. XXI, e a maturação das Sociedades Anónimas Desportivas, foi um assassino. Um romanticida. Matou a paixão pela individualidade do clube e aquela história de amor tão azul.

Até hoje. Até Sérgio Conceição. O treinador é, ele próprio, um produto da formação do FC Porto, um veículo da mística portista, um acérrimo defensor do que significar ser Porto.

Por isso agarrou numa geração particularmente talentosa da formação, entregou-lhe a batuta da equipa e deixou-a explorar a sua vocação. Da baliza ao ataque, os miúdos fizeram o resto.

«Acho que a presença da mística nestes quatro jogadores é clara. Até porque, para além de virem da formação, estão há muitos anos no clube. Podia dar-se o caso de terem chegado nos últimos anos da formação, mas a verdade é que chegaram com 10 ou 11 anos, o que significa que quando atingiram a equipa A já tinham dez anos de FC Porto, a viver todos os dias o que é ser o FC Porto, a identidade do FC Porto e a exigência que significa representar o FC Porto», diz João Brandão.

«Para além disso, são portistas. Muito antes de entrarem no Dragão como jogadores, já tinham entrado muitas vezes, quase todas as semanas, como adeptos. Olhavam para o relvado e vibravam com os seus ídolos, hoje jogam ao lado deles e sabem o que eles significam para os adeptos.»

João Brandão é treinador, atualmente trabalha com Luís Castro no Botafogo, mas durante muitos anos esteve na formação do FC Porto. Partilhou vitórias, alegrias e até uma final da Youth League com estes miúdos durante dois anos, quando os orientou nos juniores.

Durante esta conversa recordou até que na altura da pandemia, quando as bancadas estavam vazias, eram os jogadores não convocados do FC Porto que faziam o papel de adeptos: gritavam e incentivavam. Francisco Conceição e Fábio Vieira eram nesse sentido os mais entusiasmados.

«A forma apaixonada e entusiasmada como o faziam não me surpreende minimamente. Estavam a ser eles próprios. Vestiam um papel que conhecem muito bem, porque desde miúdos eram adeptos e, portanto, quando não estavam no relvado, ajudavam da bancada. Isso é admirável.»

«Para entender o sucesso destes miúdos é preciso recuar ao projeto Visão 611»

Mara Vieira é prima de Fábio Vieira. Mas é também mais do que isso: foi treinadora destes jovens quando eles chegaram ao clube. Nas camadas mais baixas da formação na Constituição. Hoje trabalha na equipa feminina do LASK FC Vilaverdense, mas mantém esses tempos na memória.

Diz que a mística do FC Porto é uma coisa que demora horas a explicar e não se ensina em meia dúzia de meses: é assimilada ao longo de anos. Com as coisas boas, precisa de tempo.

«Quando chegaram ao FC Porto, com oito ou nove anos, não tinham a mística do FC Porto, como nenhuma criança tem. O que tinham nessa altura era um grande gosto por estar no clube e por jogar futebol. A mística foi-lhes transmitida ao longo dos anos, de acordo com os valores do FC Porto e da exigência do clube. A paixão e a alegria com que eles cresceram foi o mais importante», diz.

«Mas para entender o sucesso destes miúdos é preciso recuar ao início e recordar o projeto Visão 611, que foi criado pelo Antero Henrique, com o apoio de Luís Castro e de Vítor Frade. O objetivo do projeto era formar jogadores para a equipa principal e dele fizeram parte muitos treinadores. Nasceu de acordo com a identificação do que é o FC Porto e todos estes miúdos cresceram dentro desta mística, ao longo de doze anos. Esta malta foi a fornada inicial deste projeto.»

Para além dos campeões Diogo Costa, João Mário, Vitinha, Fábio Vieira, Francisco Conceição, Bruno Costa, João Mendes, Danny Loader e Gonçalo Borges, pelo Visão 611 passaram muitos nomes como João Félix, Dalot, Diogo Leite, Diogo Queirós, Fábio Silva, Verdasca, Fernando Fonseca, André Silva, Ivo Rodrigues, Ruben Neves, Nuno Santos, Gonçalo Paciência, Tomás Esteves, enfim.

«Desenvolveu-se esses jogadores dentro dessa mentalidade, mas também de uma qualidade técnica sem a qual nenhum jogador progride. Com a Visão 611, havia um documento orientador dos jogadores que se queriam e da orientação metodológica para os fazer evoluir. O futebol da formação tinha uma identidade clara, que se detetava em todas as equipas, para jogar dos sub-8 aos sub-19. Eles são seguramente fruto de uma orientação metodológica, a Periodização Tática, que orientava todo o projeto», adianta.

«Por exemplo, a determinada altura entendeu-se que o desenvolvimento dos jogadores só se verificava dentro de um jogo coletivo. Ou seja, os jogadores só se desenvolviam individualmente se a equipa se desenvolvesse coletivamente. Como eles eram muito melhores do que os outros jogadores da idade deles, entendeu-se que as equipas tinham de se postas à prova. Então começaram a jogar com equipas mais velhas, os sub-10 eram inscritos no campeonato sub-11, os sub-12 no campeonato sub-13 e por aí fora. A geração do Diogo Dalot, Diogo Leite e João Félix foi a primeira a fazê-lo, num base experimental. Eram sub-13 e jogavam no campeonato sub-15, contra adversários fisicamente muito mais fortes. No início encontrou muitas dificuldades, mas com o tempo conseguiu ultrapassá-las. E foi muito bom ver como aquela equipa conseguia ter a bola e com muita inteligência ultrapassar os adversários. Essa decisão foi um sucesso.»

«Mística, mística é uma coisa que sente quando se ouve o hino»

Duarte Moreira cresceu com os agora jovens campeões. Hoje joga no Pevidém, por empréstimo do V. Guimarães, mas mantém uma boa relação com todos eles.

Lembra que nas camadas jovens até havia jogadores que se destacavam mais, como Romário Baró e Fábio Silva, mas eles tiveram a força do que é ser Porto para chegar onde estão agora.

«Não sabia que o Fábio Vieira ou o Vitinha iam chegar onde estão. Ganhar a Youth League abriu algumas portas, mas eles depois escancaram-nas. Os quatro têm aquelas características que o presidente Pinto da Costa insistia que todos devíamos ter: competência, rigor, paixão e ambição. Era evidente que eles eram até ao último pingo de suor, morriam por aquela camisola», conta.

«Eles vivem o clube desde crianças e amam o FC Porto. Na entrega diária ao trabalho, no suor nos treinos, na vontade de querer ganhar.»

Para além do enorme talento que sempre mostraram, Duarte Moreira destaca que Fábio Vieira e João Mário eram também os mais extrovertidos do grupo.

«Eles dois juntamente com o Carlos Peixoto, o guarda-redes que agora está no Chipre, eram o grupo da palhaçada. Faziam rir toda a gente. O Vitinha também se lhe juntava, mas era mais calmo. Então o Fábio Vieira era sempre palhaçada, sempre a pregar partidas. Os nossos telemóveis estavam cheios de vídeos deles a fazer rir toda a gente.»

Ora Carlos Peixoto confirma que sim, que eles os quatro andavam sempre juntos e eram os mais extrovertidos. O guarda-redes do Onisilos, do Chipre, chegou à Constituição com onze anos e desde os doze que é amigo deles todos. Uma amizade de muitas horas passadas juntas.

«Toda a família é portista, eles são portistas, o Fábio Vieira teve uma proposta do Benfica e com sete anos pegou no telemóvel do pai e disse que não ia, porque só tinha um clube. Isto diz tudo sobre a forma como eles sentem o clube», refere o guarda-redes.

«A mística não se ensina, cresce com os anos. De facto, só estando lá é que se percebe. A mística para as pessoas é raça, é dar tudo, é morrer em cada treino. Mas para nós, mística, mística, é uma coisa que sente quando se ouve o hino, quando se veste a camisola, quando se olha para aquele símbolo e se sente um arrepio na espinha. É a nossa educação.»

Serão precisas mais palavras?

RAIO-X AOS QUATRO ASES DE SÉRGIO CONCEIÇÃO

Diogo Costa

Nasceu em Rothrist, uma pequena vila na Suíça com sete mil habitantes, e veio ainda criança com a mãe para a Vila das Aves. O pai continuou emigrado, a ganhar dinheiro para a família.  Começou a jogar no AMCH Ringe, um clube pequeno da Vila das Aves, onde jogou também Vitinha, e depois seguiu para a Casa do Benfica de Póvoa de Lanhoso. Foi lá que o FC Porto o foi buscar em 2011, tinha Diogo Costa 11 anos e já queria ser como Vítor Baía.

«O Diogo Costa acaba por ser um talento fruto de muito trabalho. Recordo que houve um departamento de formação de guarda-redes na formação do FC Porto e o Diogo acaba por ser o reflexo desse trabalho. Ele transparece muito tranquilidade e muita segurança. Tem muita maturidade e estabilidade emocional. Isso contribuiu para que em momentos difíceis, lembro-me por exmplo do jogo em casa com o Liverpool, ele tinha sido capaz de dar uma excelente resposta. A calma e a tranquilidade que transparece advém muito da qualidade que tem, porque domina totalmente os requisitos para a função de guarda-redes de um grande», diz João Brandão.

João Mário

Natural de São João da Madeira, começou a jogar na Sanjoanense, onde foi descoberto muito novo pelo FC Porto. Aos nove anos mudou-se para a Constituição, mas continuou a viver sempre na casa dos pais. Durante cerca de dez anos viajava os 40 quilómetros que separavam São João da Madeira do Porto todos os dias duas vezes, numa carrinha de nove lugares que o ia buscar de manhã, levava à Escola António Nobre, o ia buscar para almoçar na Casa do Dragão, ali a dez minutos da escola, o transportava para os treinos na Constituição e o devolvia à noite a casa. Cresceu como extremo tecnicista e irreverente, acabando por ser adaptado a lateral por Conceição.

«João Mário teve um percurso na formação, sobretudo nos escalões mais baixos, nem sempre assertivo para garantir a continuidade no clube, mas foi sempre muito considerado por ser muito forte no um contra um. Isso é que o foi segurando no clube. A partir dos 17 anos evoluiu muito e a transformação que apresenta agora é fantástica, não só pelo trabalho do João Mário, mas pela competência de quem o orienta. O trabalho da atual equipa técnica tem sido notável, fazendo de um jogador muito forte ofensivamente um dos melhores laterais do nosso campeonato», refere João Brandão.

Vitinha

É filho de Vítor Manuel, médio tecnicamente muito esclarecido, que teve uma longa carreira na Liga, em clubes como o Desp. Aves, o Campomaiorense e o Belenenses. Nasceu em Faro, onde o pai jogava no Farense em fevereiro de 2000. Com um ano foi para a Vila das Aves, de onde o pai é natural e que é de facto a sua casa. Começou a jogar AMCH Ringe, nas Aves, depois seguiu para a Casa do Benfica de Póvoa de Lanhoso e foi vestido de encarnado, com o símbolo do Benfica, que o FC Porto o descobriu. Com 12 anos começou a jogar na Constituição, para onde seguia todos os dias, começando a estudar também na Escola António Nobre.

«O Vitinha afirmou-se muito cedo nos escalões de formação, mas nos sub-17 era visto como um médio criativo. A partir dos 18 anos, sob a minha orientação, considerámos que devia ser um jogador de transição, A forma como consegue identificar os espaços e explorar os mesmos no último terço fazem dele um médio extremamente completo», refere João Brandão.

Fábio Vieira

Natural de Argoncilhe, em Santa Maria da Feira, começou a jogar nas escolinhas do Feirense. Aos oito anos e brilhou num Mundialito realizado em Vila Real de Santo António, no Algarve, onde o FC Porto o viu e garantiu. Com oito anos entrou no Campo da Constituição. Ele que aos sete anos tinha atendido o telefone do pai para dizer a um dirigente do Benfica que não queria ir para o clube encarnado. Desde criança que se habituou a fazer vida no Porto, para onde a mesma carrinha de nove lugares que transportava João Mário o levava, deixava na escola, depois conduzia aos treinos e por fim devolvia a casa, em Argoncilhe, onde sempre viveu com os pais.

«Aos 18 anos foi-me dito que o Fábio Vieira tinha muitas possibilidades de ser dispensado. Mas a forma como se agarrou ao clube e à segunda oportunidade que lhe demos foi notável. Era sub-18 e ganhou a titularidade nos sub-19. Passou de dispensado a titular, fruto da sua capacidade ofensiva, pela qualidade de passe a diferentes distâncias, pelo talento para bolas paradas e também pela excelente reação à perda que foi desenvolvendo. Uma capacidade que melhorou muito sob a orientação de Sérgio Conceição e, por isso mesmo, hoje tem uma capacidade defensiva muito boa, o que aliado ao talento o torna num dos médios mais completos do nosso futebol», refere João Brandão.