15 de março de 2022.

Um dia que Artem Haponenko não vai esquecer. Há quase um ano, o jovem chegava à pequena vila de Ançã, no concelho de Cantanhede, acompanhado da mãe e da irmã mais nova para fugir da guerra na Ucrânia.

Em Kiev deixou o pai, proibido de sair do país devido à Lei Marcial, que obriga todos os homens adultos a permanecer disponíveis para se juntarem ao exército.

Ora por um daqueles acasos deselegantes, quis o destino que Artem Haponenko tenha chegado a Ança precisamente no dia em que celebrava o 13º aniversário. Uma data especial, que não costuma ser usada para recomeçar a vida longe de tudo o que se conhece. Sem nenhuma referência e sem alegria no coração.

Em Ançã foram recebidos por Luísa Aguiar, que se tinha inscrito para ser família de acolhimento de refugiados. Nenhum deles falava português, claro, e a mãe tão pouca falava inglês. O próprio Artem, sim, consegue entender alguma coisa.

A guerra tinha começado há três semanas e tudo era medo e dúvida. Foi neste vazio de expetativas que o futebol surgiu como bálsamo.

No pequeno Ançã, precisamente.

«A senhora que recebeu a família em casa soube que ele gostava muito de futebol, falou connosco e pediu para ele vir jogar para o clube. Na semana seguinte já estava a treinar connosco», conta o treinador Igor Jaria.

«Ele é muito alto, muito rápido, bom finalizador, faz muitos golos e quando começou a jogar fez logo a diferença. Felizmente o ano passado foi criada uma exceção e simplificado o processo de inscrição para os refugiados, para os miúdos conseguirem jogar, e ele pôde começar a jogar rapidamente.»

Jason Reis, coordenador técnico do Ançã, adianta que Artem já trazia referências.

Ele que na Ucrânia jogava no pequeno FC Borysfen: um clube da cidade de Boryspil, nas redondezas de Kiev, que já esteve na Liga Ucraniana mas entrou em bancarrota e agora tem apenas futebol de formação.

«Ele e a mãe vieram falar comigo, disseram-me que gostava muito de futebol, que jogava desde pequenino. Estava referenciado pelo Dínamo Kiev e pelo Shakhtar Donetsk, os dois tinham mostrado interesse e já tinha treinado em ambos. A mãe até me disse que a partir da época seguinte ia começar a jogar no Shakhtar, que era o clube dele. Depois fez o primeiro treino e confirmámos que é um daqueles miúdos em que se nota logo o diferencial. Era de um patamar superior.»

A brilhar no Guadiana com inscrição paga pela vila

Artem Haponenko e a irmã inscreveram-se na escola em Cantanhede, depois a família teve direito a uma casa só para ela e em pouco tempo o jovem começou a dar nas vistas. Sobretudo pelos muito golos que marcava.

«No verão estivemos na Copa do Guadiana e o Artem foi eleito o melhor jogador e o melhor marcador do torneio. Marcou 18 golos. Mas a inscrição tinha de ser paga pelos atletas e custava 300 euros, por quatro dias com tudo incluído. Como a família não tinha dinheiro, as pessoas da vila fizeram uma recolha de donativos e pagaram a inscrição dele», recorda Jason Reis.

A vila sempre esteve ao lado da família, de resto. O treinador Igor Jaria conta que a mãe dele, por exemplo, até ofereceu umas chuteiras ao jovem ucraniano.

Certo é que em pouco tempo os grandes apareceram a bater à porta de Artem.

«O primeiro a aparecer até foi o Sporting, mas a mãe nessa altura preferiu acalmar as coisas. Havia a hipótese de a família regressar à Ucrânia e não queria dar ilusões ao miúdo que depois não pudessem concretizar-se.»

A verdade é que os três aproveitaram uma aparente diminuição da intensidade dos bombardeamentos sobre a capital Kiev para voltar à Ucrânia no final do verão, visitar a família e refletir sobre a possibilidade de voltarem para casa.

A mãe e o pai, no entanto, chegaram à conclusão que ainda era cedo e que o melhor era ela voltar para Portugal com os filhos, onde os três estariam em segurança e Artem até podia continuar a jogar futebol.

No FC Porto com casa, colégio e promessa de trabalho para a mãe

Voltaram para Portugal e quando estavam quase a chegar os bombardeamentos recomeçaram sobre Kiev. O que só veio provar que tinha sido a melhor decisão.

De novo em Portugal, e de regresso à vida anterior, Artem Haponenko reabriu as portas do grandes. Agora sim, disposto a embarcar na aventura.

«O Sp. Braga chamou-o para treinar durante três dias no clube. Entretanto o FC Porto convidou-nos para fazer um jogo particular na Constituição. Ganhámos à equipa sub-14 B por 4-2, ele fez dois golos e uma assistência. Na semana a seguir chamaram-no para treinar também lá uns dias», conta Igor Jaria.

«Entretanto o Sporting, que tinha sido o primeiro a entrar em contacto, foi completamente ultrapassado e quando o convidaram para ir treinar a Alcochete já foi tarde. O FC Porto já tinha as coisas muito adiantadas e não o deixou escapar. O Sporting ainda fez um forcing, até colocou um atleta ucraniano a conversar com ele e tentar convencer a família, mas já não conseguiu nada. Por essa altura a mãe informou-nos que ele ia para o FC Porto.»

Desde o final de fevereiro, Artem Haponenko está a treinar no FC Porto. A família deixou a pequena vila de Ança, na região centro, e mudou-se toda para o Porto, onde está instalada numa casa paga pelo clube.

O goleador e a irmã foram inscritos num colégio privado e há também a promessa de arranjar um emprego para a mãe, contabilista licenciada que nunca conseguiu trabalhar em Portugal por não falar português, nem inglês.

«O futebol é uma questão de pormenores, de sorte, de mentalidade, há muitos fatores que contribuem para o sucesso ou não. Mas claramente ele tem qualidade e tem ferramentas para fazer uma carreira», refere Jason Reis.

O Ançã, esse, não vai receber nenhuma compensação financeira, porque só podia assinar contrato de formação quando o miúdo fizesse 14 anos, o que vai acontecer na próxima semana. Mas foi contactado pelo FC Porto e vai ter uma recompensa em artigos desportivos, bolas e equipamentos.

«Ele tem uma coisa fundamental, que é gostar muito de futebol e estar sempre com a bola na mão. Ainda por cima tem qualidade, aprende tudo como muita facilidade e tem coisas, tem pormenores, que a gente não vê nos outros. Ele vai fazer 14 anos e na equipa sub-15 fazia coisas que os outros não faziam», adianta o presidente João Garrido, lembrando que por isso o FC Porto não hesitou.

Curiosamente o Sporting até tem um centro a funcionar em Ançã e por isso tem todos os miúdos referenciados, e são mais de duzentos, num clube com grande atividade de formação. Mas desta vez não conseguiu ser suficientemente rápido.

Mais importante do que isso, porém, é que Artem vai agora correr atrás do sonho. Ele que sofre com a violência da guerra, com a destruição do país que ama e com a incerteza de não saber o que pode acontecer à família que ainda lá vive.

«Ele é um miúdo calado, introvertido, mas dentro de campo solta-se. Nota-se que é ali que se sente bem e que está a fazer o que gosta. Não sei se é pelo contexto, se é pela língua, é mais extrovertido dentro de campo do que fora dele», conta o coordenador técnico Jason Reis.

«O futebol é claramente um bálsamo, para ele. A própria questão de ficar agora em Portugal passou muito pelo sonho do futebol. O miúdo, e a própria família, tem claramente esse sonho. Acreditam que aqui será mais fácil fazer uma carreira, o que é normal, o futebol na Ucrânia vai demorar anos a reerguer-se.»