Atira a braçadeira de capitão ao chão, cola o olhar no relvado e sai. Revoltado. Rafa Paz aproxima-se, toca-lhe na cabeça com amizade, mas Diego Maradona já não volta. Acelera o passo, insulta Carlos Bilardo em bom castelhano e enfia-se nos balneários. As câmaras de televisão agradecem.

O Estádio Sanchez Pizjuán despede-se do Pelusa a 13 de junho de 1993. Em Sevilha a tarde é asfixiante e o futebol preguiçoso. O Burgos arranca um empate uma bola no último jogo de D10S ao serviço de clubes europeus. Substituir Maradona é um sacrilégio e o povo não gosta.

Este é só o derradeiro capítulo num almanaque de relatos improváveis. A passagem de Diego Maradona pelo Sevilha FC, adversário do FC Porto na Liga Europa, dura toda a temporada de 1992/93 e revela-se um compêndio de genialidade, diatribe e polémica.

Depois de afastar Nápoles, o FC Porto enfrenta outro emblema representado pelo Barrilete Cósmico. 21 anos depois, o Maisfutebol volta ao lugar onde todos os pecados foram admissíveis.

O último jogo de Maradona no Sevilha FC:



Diego só há um e o povo andaluz não o esquece. Davor Suker, aliás, agradece-lhe publicamente «uma das melhores temporadas» da carreira terminada em 2003.

«Eu era um menino de 24 anos e ao meu lado tive o melhor de sempre. De todos. É a prova de que os sonhos se cumprem», conta ao nosso jornal o agora presidente da federação croata [a restante parte da entrevista será publicada nos próximos dias].

Suker faz 13 golos na liga espanhola. «Maradona fez-me mais passes do que qualquer outro. Chamou-me uma manhã e disse-me: «corres pouco para avançado. Queres marcar golos ou não? Mexe-te, mexe-te muito, as bolas vão começar a ir ter contigo».

Assim é. «Nunca percebi como ele fazia aquilo. Eu virava-me de costas, corria e a bola vinha ter-me aos pés. Sou o único croata a ter sido colega de equipa do Maradona e tenho um orgulho enorme nisso», acrescenta o (também) genial croata.

Rinat Dasaev banalizou D10S: choveram pedras

Setembro de 92. Um ano e meio após o escândalo de doping em Nápoles, Maradona volta a vestir a diez e a reluzir. Carlos Bilardo, mestre e confessor, abre-lhe as portas do Sánchez Pizjuan. Sevilha passa a ser uma cidade de traços quixotescos e tramas kafkianas.

«Diego chegou numa manhã de domingo», conta ao Maisfutebol o jornalista Juancho Solís, chefe de redação do Diário de Sevilla. Juancho é das primeiras pessoas a confirmar o génio inconstante, permitam-nos o eufemismo, de Maradona. Em pleno aeroporto.

«Eu tinha 22 anos. Questionei-o sobre a polémica do doping. Não quis falar, insisti uma e duas vezes. À terceira tentou agredir-me. Ameaçou-me e fugi. Um fotógrafo que lá estava lamentou não ter havido porrada. Teria ficado rico com as imagens», conta Solís.

À tarde, continua, o Sevilha defronta o SuperDepor, de Bebeto e Mauro Silva, em casa. Perde por 1-3. O estádio enche, em busca do aceno cúmplice do melhor do mundo. As gentes andaluzes querem a prova física da existência de Maradona. A partícula de D10S.

Mais polémica. «Na bancada está Diego, sim, e também o mítico Rinat Dasaev. Deixara a baliza do Sevilha dois anos antes e relativiza a contratação de Maradona: «vai ser como a minha, primeiro faz boom e depois todos esquecem». Escrevo isso no jornal e nesse mesmo dia apedrejam-lhe a loja de desporto que tinha perto do estádio. Os adeptos não admitiam palavras negativas sobre Maradona».

A estreia de Maradona pelo Sevilha:



O elitista bairro de Aljarafe acolhe a entourage
de Maradona. A sua tendência suicida ao volante, qual Fangio renascido, é levada ao extremo num Porsche 911 «novinho em folha». O próximo relato é de Rafa Paz
, ex-internacional espanhol e colega de equipa de Maradona nesse Sevilha.

«Chegava aos treinos de capota aberta e charuto na boca. Certo dia foi detido pela polícia no centro da cidade. Circulava a 150 km/h, 100 acima do limite máximo», conta o antigo médio ao Maisfutebol
.

E como era Diego no dia-a-dia, no recato do balneário e do plantel sevilhano? Rafa Paz sorri, faz uma pausa e atira. « Hombre
, às vezes era fantástico, o melhor dos amigos; outras vezes o melhor era não chegar muito perto dele. Geralmente não tinha tiques de estrela, era acessível e generoso», sublinha.

Rafa Paz, é importante referi-lo, revela-se por esses dias o verdadeiro líder do balneário sevilhano. Está no Itália-90, por exemplo, e impõe respeito a tudo e a todos, por ser, acima de tudo, também ele um respeitador por natureza. A antítese de Maradona.

«Foi um ano especial. Para todos no clube. Além de Maradona havia Suker e Simeone. No treino estavam sempre duas ou três mil pessoas e mais de 100 jornalistas. Às vezes sentia-me uma aberração porque ninguém olhava para mim. Era tudo para o Diego», observa, atrás de uma gargalhada.

As assistências de Maradona para golo no Sevilha:




O rendimento desportivo de Maradona, sem ser soberbo, toca o zénite um par de vezes. Acaba o ano com 29 jogos e oito golos. Juancho Solís recorda o dia em que Diego volta a ser, da cabeça aos pés, El Pibe de Oro.

«Rebentou com tudo frente ao Sporting de Gijón. Nesse jogo faz um golo espetacular. Recebe de peito e, de costas para a baliza, remata à meia volta. Impressionante», recorda Solís. Depois, a dolce vita volta a levá-lo para o tormento do peso excessivo e o futebol a passo.

É nesse período, de resto, que José Maria Del Nido, então braço direito do presidente Luís Cuervas, coloca no terreno um detetive privado
. «Maradona passou a ser seguido para todo o lado», confessa Juancho Solís.

«A informação recolhida pela direção permite-lhe exigir a Maradona o desconto de um milhão de euros no acordo de rescisão. Não era coisa boa, claro. Em junho de 1993, lá foi Diego».

Apedrejamentos, agressões, detetives privados, vida loca
. O Sevilla FC, oponente do FC Porto na próxima quinta-feira, vive em 92/93 o seu ano mais esquizofrénico com Bilardo e Diego. Acaba o campeonato no sétimo lugar, não ganha nenhum troféu e abre a porta ao debate ideológico
.

Mas vale a pena. Vale muito a pena.

Se não fosse Maradona, quem seria o protagonista da nossa última história? «Depois de um treino, o Simeone [sim, o técnico do Atlético Madrid] nota que está a ser perseguido. Num semáforo vermelho tem de parar e, de repente, ouve uma travagem brusca e leva uma pancada fortíssima».

« El Cholo
sai disparado do carro, pronto a ajustar contas, abre a porta do carro suicida [lembram-se do Fangio renascido?] e lá está Maradona, de charuto na boca e sorrido perdido. Era a história mais famosa no nosso balneário».

21 anos depois, Rafa Paz continua a rir-se.