O palco está montado para a festa, mas a pandemia levou a festa para longe. Ali, a escassas dezenas de metros da casa dos pais de Fábio Vieira, as marchas sanjoaninas trocam a folia e as danças por um silêncio que incomoda.

«Era aqui que o Fábio vinha dançar e marchar na festa de São João de Pereira. A última vez foi há quatro/cinco anos. Ele adorava isto.»

A estreia do esquerdino na equipa principal do FC Porto leva o Maisfutebol a Argoncilhe, terra natal de Fábio e cenário maior dos sonhos de meninice. A palavra mais repetida nesta visita guiada é «reguila». Todos se referem a Fábio com muito respeito, imenso carinho e a certeza de que está onde quer.

Era neste palco improvisado que Fábio desfilava nas Marchas de São João

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Inês Pereira abre-nos a porta do Jardim de Infância do Carvalhal. Foi lá que o menino dragão andou dos três aos seis anos, até entrar para a escola primária. A dona Inês, educadora infantil, fala-nos de uma criança «amorosa» e já com espírito de líder.

Inês e Graça à porta do jardim de infância que Fábio Vieira frequentou

Ao lado, Graça Marques não perde tempo. Mais uma memória, mais uma lágrima de saudade. «Amoroso? Sim senhora, era. Mas também já queria mandar. Fazia as equipas no recreio, mandava os colegas mais fraquinhos para a baliza, tinha muita graça.»

A dona Inês acompanha Fábio até aos seis anos, a dona Graça – auxiliar na Escola Primária do Carvalhal, paredes meias com a creche – fica com o agora jogador de Sérgio Conceição dos seis aos dez.

«Era só ‘Fábio, Fábio, Fábio’. Era muito respeitado, principalmente pela forma como jogava futebol. Na escola era um aluno razoável. Não era dos mais rebeldes, mas era um bocadinho reguila, sim senhor.»

E o primeiro jogo no Dragão? «Aqui somos quase todos portistas», diz Inês Pereira. Graça Marques corrige. «Eu não, eu não. Ligo pouco à bola, mas gosto de outro clube.» O que a simpatia separa, a memória corrige. «Claro, com o Fábio em campo ficámos todas orgulhosas. Olhe para aqui, era neste terreiro que ele jogava à bola. Na altura era tudo em terra batida, agora está com cimento.»

Os anos passam, a ligação mantém-se. Os milhões do futebol profissional não subiram, «pelo menos até agora», à cabeça da pérola azul e branca. Palavra das donas Inês e Graça, formadoras e amigas.

«Depois de ganhar a UEFA Youth League em 2019 passou aqui, parou o carro e entrou para falar connosco. Não se esquece de quem o viu crescer. Tem bons exemplos em casa.»
 

Fábio andou dos seis aos dez anos na Escola Primária do Carvalhal

Argoncilhe teve de esperar 31 anos: depois de Jorge Couto, Fábio Vieira

A zona do Carvalhal fica perto de Moinhos. Num prédio em rosa esbatido, Fábio continua a ser o filho único dos senhores Carlos e Paula Vieira. A ascensão meteórica no último ano ainda não o tirou de casa dos pais. «A comida da mãe é a melhor de todas, deve ser por isso», brinca Joaquim Avelar. 

O presidente da Casa do FC Porto de Argoncilhe é vizinho de Fábio Vieira e conhece-o «desde sempre». 

«É um miúdo espetacular. Sempre reguila (lá está) e sempre humilde. A cabeça pode mudar, mas para já é o rapaz de sempre. Passa aqui no café, cumprimenta toda a gente, sempre bem disposto. Até nas marchas sanjoaninas participava, veja lá.»

Seguimos do Carvalhal para Moinhos e de Moinhos para a parte superior da freguesia de Argoncilhe. Joaquim Avelar leva-nos à Casa do FC Porto, azul e branca como se imaginaria. Há imagens de craques antigos – Frasco, Aloísio, Fernando Gomes, Penteado, João Pinto - e placas a lembrar a data de inauguração em 2005.

Numa das paredes, lá está a camisola 10 envergada por Fábio Vieira na final da UEFA Youth League, em abril de 2019. «Já foi há um ano? Os pais dele são nossos clientes e o Fábio vem sempre cá quando há alguma cerimónia ou festa. Os únicos argoncilhenses que chegaram à equipa A do FC Porto foram o Jorge Couto [em 1989] e, tantos anos depois, o Fábio Vieira.»

Joaquim Avelar mostra orgulhoso a camisola que Fábio vestiu na final da Youth League

Filho de um operário da construção civil e de uma empregada doméstica, Fábio é «o tema de conversa principal» em Argoncilhe por estes dias. A maldita pandemia levou as festas de São João para o ano que vem e o futebol, o futebol possível, vai alimentando a comunidade como pode.

«O Fábio tem qualidade e tem uns pais que o acompanham muito. Isso é fundamental», diz Joaquim Avelar, antes de trazer outra personagem principal da vida de Fábio Vieira para a mesa onde já se bebe um café e uma água. Duas boas desculpas para tirar a máscara.

«O avô dele faleceu com uma doença oncológica, o Fábio adorava-o. Ficámos comovidos ao saber que lhe dedicou a estreia na equipa principal do FC Porto. O pai nunca jogou à bola, mas o avô do Fábio foi meu colega de equipa no Águias de Pereira, uma equipa que jogava nos campeonatos regionais.»

Fábio ainda vive com os pais neste prédio em Argoncilhe

«No FC Porto eu até fazia de conta que não era familiar do Fábio»

A família, percebe-se, é um amparo fundamental para Fábio. Fosse na escola, fosse nas Marchas de São João de Pereira, fosse no futebol, ao rapaz de Argoncilhe nunca faltou apoio. Nem quando em 2008 assinou pelo FC Porto e entrou no Campo da Constituição pela primeira vez.

Mara Vieira, prima e treinadora de futebol, entrou no universo azul e branco na mesma altura. «É verdade, aconteceu tudo em 2008. Fui treinadora do Fábio e estive cinco anos no FC Porto. Fui adjunta de várias equipas, uma delas era a do Fábio.»

Fábio passou do pátio em terra da escola para o Feirense e de lá para as escolinhas do FC Porto. Tinha oito anos e brilhou num Mundialito realizado em Vila Real de Santo António, no Algarve. A proposta foi feita, aceite pelos pais «muito portistas» e a vida mudou.

«No início o mais importante era que ele se divertisse. Tinha só oito anos», lembra Mara Vieira, prima e treinadora. «O Fábio cresceu numa lógica de responsabilidade, mas sem nunca esquecer o lado lúdico. Era uma criança feliz a jogar, sempre contente.»

«O Fábio tem pais humildes e o crescimento dele está muito ligado a isso. Nunca nenhum familiar interferiu com o papel de um treinador ou de um professor. Os pais sempre depositaram enorme confiança nas pessoas que lidavam com o filho. Ele é filho único e teve um acompanhamento bom. Nunca foi um excelente aluno, mas foi cumprindo. Acabou agora o 12º ano.»

Rodeado pelo futebol por todo o lado, Fábio foi olhando para a prima Mara como um bom exemplo a seguir no desporto. «Fui jogadora de futsal e brincava muito com ele cá em casa, mas as conversas eram feitas mais com o pai do Fábio. Com ele não havia muitas conversas sérias, era importante deixá-lo sem qualquer tipo de pressão.»

Doze anos volvidos, Mara Vieira está ligada ao Valadares e livre da responsabilidade de treinar um familiar próximo. Pôde, por isso, usufruir sem entraves do primeiro jogo do primo Fábio na primeira divisão.

«Vimos o jogo em família. Foi das poucas vezes que demos uma palavra ao Fábio. Não gostamos de incomodar. Só o fazemos em momentos muito bons ou muito maus. Entrou, o FC Porto ganhou… hoje vivo as coisas como familiar, como alguém que gosta muito dele. A parte da treinadora do Fábio ficou para trás. Quando estávamos juntos no FC Porto, eu até fazia de conta que não era familiar dele (risos). Estamos a viver isto com muita alegria e estamos na expetativa de saber até onde o Fábio vai. Se não houver nenhuma lesão grave, tenho a certeza que o Fábio terá uma carreira boa.»

Argoncilhe será sempre o lugar feliz de Fábio Vieira. É como se o filme nos obrigasse a parar e a puxar a fita atrás. O Jardim de Infância do Carvalhal, a Escola Primária com o mesmo nome, o prédio quase cor-de-rosa da família Vieira, o palco onde Fábio marchava no São João de Pereira, a Casa do FC Porto de Argoncilhe.

Vale sempre a pena saber de onde vimos.