Um ano e quase dois meses depois de ser o melhor em campo na final da UEFA Youth League, Fábio Vieira recebe a maior das recompensas. Minuto 72 do FC Porto-Marítimo, Sérgio Conceição promove o batismo do menino de Argoncilhe no palco do Dragão.

São só 18 minutos na estreia na Liga, sim, mas 18 minutos capazes de acolher 12 anos de azul e branco vestido. Todos os treinos, todas as feridas abertas, todos os sacrifícios encaminhados para o instante em que a placa com o número 50 é levantada.

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Longe vai o dia em que os responsáveis do FC Porto são conquistados pelo «rapaz magricelas» que veste a camisola do Feirense num Mundialito jogado em Vila Real de Santo António, corre o ano de 2008.

Caminho percorrido, expetativas abraçadas, nomes e mais nomes lado a lado no balneário. Histórias, memórias, veredictos de quem o melhor conhece. O Maisfutebol junta às sensações do dia passado na freguesia de Fábio Vieira os testemunhos de três homens de importância superlativa na moldagem e desenvolvimento do esquerdino.

Paulo Virgílio jogou dez anos nas camadas jovens do FC Porto, tornando-se mais tarde técnico de equipamentos e motorista nas camadas jovens, privando de perto com Fábio desde os primeiros tempos no Campo da Constituição.

Tiago Moreira foi o primeiro treinador de Fábio Vieira no FC Porto. Esteve dois anos com o médio e reencontrou-o na temporada de 2018/2019, a época de todas as conquistas.

Humberto Costa treinou Fábio nos Sub11, ainda no futebol de sete, e nos Sub12, aí já no primeiro ano em futebol de onze. Dentro e fora do campo, três testemunhos de gente que conhece Fábio Vieira da cabeça aos pés.

Fábio Vieira atrás da bandeira portuguesa numa equipa treinada por Mário Silva

«Os miúdos puseram os telemóveis com alarme, não dormi das 11 às cinco da manhã»
PAULO VIRGÍLIO: ex-atleta, motorista e técnico de equipamentos no FC Porto

Quilómetros e quilómetros de estrada. Paulo Virgílio conduzia uma carrinha de nove lugares do FC Porto quando conheceu Fábio, então com dez anos. Emocionado na conversa com o Maisfutebol, o antigo extremo direito dos dragões – e mais tarde também técnico de equipamentos – disse que é «uma alegria enorme» ver o amigo Fábio a chegar onde ele próprio não conseguiu: à equipa A dos dragões.

«Eu joguei dez anos nas camadas jovens do FC Porto e regressei mais tarde para ser motorista e técnico de equipamentos nos escalões de formação. Saí do clube em 2013, mas ainda convivi muitos anos com o Fábio. Era um miúdo muito castiço, reguila. Muito reguila mesmo (risos)», lembra Paulo Virgílio, hoje a trabalhar para uma empresa de análises clínicas.

«Ele tinha já um talento enorme nos infantis. Detestava perder, lembro-me bem disso. O João Mário era mais reservado, mas o Fábio tinha piada e no campo já tinha um nível excelente. Aquele pé esquerdo ‘escrevia’. Era magricela, mas com um talento impressionante. Driblava e rematava bem, pensava muito depressa.»

Na sua longa ligação ao FC Porto, Paulo Virgílio conheceu «centenas de futebolistas». «Eu ia buscar os atletas a casa, deixava-os na escola – um estabelecimento de ensino que ficava na Rua de Costa Cabral -, levava-os também à Casa do Dragão para almoçarem. Tudo isto numa carrinha de nove lugares. O Sérgio Oliveira morava em Paços de Brandão e eu ia lá busca-lo, por exemplo.»

Paulo Virgílio olha para os atletas «como filhos» e Fábio Vieira não é exceção.

«O convite para esta reportagem deixou-me tão feliz que até me esqueci que trabalhava na segunda-feira [dia da conversa com o nosso jornal]. Tudo isto para dizer que é uma alegria ver o Fábio Vieira a chegar à primeira equipa. Eu também tive esse sonho e não consegui cumpri-lo. Aos 24 anos deixei de jogar, depois de quatro operações ao joelho. Sei o que sentem os miúdos ao vestir a camisola do FC Porto na formação.»

O ex-futebolista e funcionário azul e branco recorda «Ventura, Castro, Candeias, Hélder Barbosa e Ukra», e espera que Fábio Vieira tenha mais oportunidades e sucesso na equipa principal. Antes da despedida, Paulo Virgílio não podia deixar de contar uma história cheia de sorrisos. Uma história sobre velhos amigos e alarmes de telemóveis a tocar.

«Uma vez num torneio em Bremen eles pegaram-me uma boa partida. O Fábio e os miúdos combinaram com os treinadores e entregaram-me os telemóveis durante a noite. Disseram-me que não se queriam distrair, que queriam descansar. Eu fiquei com os telemóveis no meu quarto, só que os bandidos puseram alarmes nos telemóveis todos (risos). Eu já na cama e à meia-noite tocava um, 15 minutos depois tocava outro. Pouco depois, mais um. Até às cinco da manhã não dormi. Para aí 30 telemóveis com o alarme, estão a imaginar.»

Paulo Virgílio mantém uma ligação próxima a Fábio Vieira

«O Fábio Vieira procura fazer sempre algo decisivo com a bola»
TIAGO MOREIRA: treinador na formação do FC Porto durante oito anos

Fábio Vieira começou e acabou a passagem pelas camadas jovens do FC Porto com o treinador Tiago Moreira. Tiago treinou-o nos dois primeiros anos e fez parte da equipa técnica de Mário Silva em 2018/19, ano do título nacional e europeu. Elogios não faltam.

«Há um episódio que descreve bem o que é o Fábio. Num treino elegi três capitães e dei-lhes a responsabilidade de definirem as respetivas equipas. A única condição era esta: não podiam escolher o Fábio Vieira. No final, quando as três equipas estavam completas, sobraram os miúdos que foram preteridos e o Fábio. Fizemos um torneio com quatro equipas e a que ganhou foi… a do Fábio Vieira. Teoricamente era a mais fraca de todas.»

Um dos aspetos que mais cativa Tiago Moreira no futebol de Fábio Vieira é a aversão pelo óbvio. Fábio detesta «jogar para o lado ou para trás».

«Há atletas que com bola preferem resguardar-se. Outros preferem esperar o momento certo para arriscar alguma coisa. E depois há os outros que, independentemente do que têm pela frente, procuram sempre fazer algo decisivo. E o Fábio entra nesta última categoria, a dos atletas excecionais. É um atleta que permite à equipa criar mais oportunidades de golo e ter mais golo.»

Tiago recorda uma palestra marcante de Mário Silva e a forma como Fábio reagiu às palavras do treinador.

«O Mário Silva teve uma intervenção brilhante junto dos atletas: se pudermos jogar para a frente em vez de jogarmos para trás e se pudermos ter jogo interior em vez de explorar as linhas, então temos de fazê-lo. E não menos brilhante foi a forma como o Fábio interpretou essa ideia. Este tipo de jogador tem de ser estimulado. Mais do que tolerar o erro, há que encorajar o risco.»

«A estreia dele é uma recompensa tremenda para todos os que tiveram a felicidade de ter participado no aperfeiçoamento do Fábio ao longo dos anos. Foi mais um passo na direção certa», resume Tiago Moreira, que não hesita em colocar Fábio no patamar qualitativo de Dalou e Félix.

«O Fábio tem pedigree para ser um médio de topo em Portugal. Eu tive o privilégio de ver no mesmo treino crianças como o Fábio Vieira, o João Félix e o Diogo Dalot. O Fábio era Sub10 e às vezes juntávamos essa equipa à dos Sub11. Vejam bem o privilégio que era ter todos esses meninos de tanto talento no mesmo espaço.»

Fábio tinha dez anos quando foi o melhor jogador de um torneio em Ponte de Lima

«Nunca tive dúvidas sobre a melhor posição para o Fábio: médio interior esquerdo»
HUMBERTO COSTA: treinador na formação do FC Porto durante seis anos

O que têm em comum Fábio Vieira, João Mário e Vítor Ferreira? Foram todos treinados por Humberto Costa no FC Porto. O ex-treinador dos dragões recorda esses dias nos infantis azuis e brancos e diz que Fábio era «o mais talentoso da equipa».

«Fui treinador do Fábio nos Sub11. Primeiro em futebol de sete e depois nos Sub12 já em futebol de 11. Isto nas épocas 2010/11 e 2011/12. O João Mário e o Vítor Ferreira também faziam parte da equipa. Agora estão os três na equipa A, a vida dá muitas voltas.»

Humberto Costa sublinha o talento de Fábio, mas recorda que a evolução do rapaz de Argoncilhe não foi sempre uma linha reta. Tal como a de João Félix, de resto.

«É importante refletir sobre o que é um jogador de talento e quais os motivos que levam os atletas mais talentosos, como o Félix e o Fábio, a jogarem menos em determinados momentos. Se calhar na formação ainda se exige o ‘aqui e agora’, o vencer no imediato. É a pressão dos resultados e a inversão das prioridades», defende o treinador.

Ainda sobre Fábio Vieira, Humberto Costa diz que o seu enquadramento familiar foi sempre bom. Os pais são pessoas de origem humilde, mas muito respeitadores e conscientes do seu espaço na educação de Fábio.

«Os pais estavam sempre presentes nos jogos e mostravam-se preocupados. No FC Porto os pais não podiam abordar diretamente os treinadores. Tinham de fazê-lo através do Team Manager. Depois, em dezembro, havia uma reunião individual entre o treinador e os pais de cada atleta. Nessa conversa fazíamos a análise do atleta e dizíamos o que perspetivávamos para ele dentro do clube. O pai partilhava sempre informações sobre o Fábio e notei sempre que havia acompanhamento familiar. Não era um aluno muito dedicado na escola, mas ia passando.»

Humberto Costa recorda, assim, um miúdo «extrovertido» e «muito inteligente» na forma como absorvia a necessidade de interpretar cada exercício. Um médio viciado em ter a bola.

«Nunca tive dúvidas sobre a melhor posição para ele: médio interior esquerdo num 4x3x3. Tem uma grande facilidade no passe e uma enorme capacidade de finalização. Não achava benéfico recuá-lo no campo, pois tinha uma excelente relação com a baliza. Quis sempre o Fábio como médio mais ofensivo, embora fosse também forte em zonas mais recuadas para organizar o jogo.»

Certo dia, «num jogo em casa do Candal», Humberto Costa experimentou Fábio Vieira a extremo esquerdo. Não correu bem.

«No final do jogo falei com o Fábio e ele desabafou comigo: ‘mister, neste lugar toco muito menos vezes na bola’. Ele tem de tocar na bola. Sei que ele era um admirador do Barcelona do Xavi e do Iniesta, por causa dessa atração pela bola.»

Humberto Costa aproveita a conversa com o Maisfutebol para analisar Vítor Ferreira e João Mário. Vítor já tem oito presenças na equipa A do FC Porto e João Mário foi suplente não utilizado nos últimos dois jogos.

«O Vítor é muito perseverante. Consegue acentuar no seu futebol o gosto que tem pelo jogo. Precisa de melhorar a relação com a baliza. Hoje exige-se muito aos médios na zona de finalização e nisso tem de melhorar. Tenho ficado impressionado pela positiva com a evolução do Vitinha. Fui o primeiro treinador dele no FC Porto. Havia jogadores num plano mais elevado do que ele nos Sub12 e Sub13 e não singraram. O mérito é todo do Vítor.»

«O João Mário é um extremo como o Porto já não tem desde o Jaime Magalhães. Tem uma capacidade de drible superior à que tinha o Jaime, é um atleta de tremendo potencial. Se encontrar maior estabilidade emocional, pode ser um atleta invulgar.»