E, sem surpresa, a montanha pariu... um resumo envergonhado. Rússia e Qatar nada têm a temer, os Mundiais de 2018 e 2022 foram adjudicados com toda a legitimidade, diz a FIFA. Dois meses depois de o presidente da sua Comissão de Ética entregar o relatório de 430 páginas, onde resumia a investigação sobre o processo de atribuição dos Mundiais de 2018 e 2002, o organismo de Zurique, através do juiz alemão Hans-Joachim Eckert, veio a público garantir que, no essencial, nada de irregular se passou. Ou melhor: a haver irregularidades, estas terão sido cometidas pelas candidaturas vencidas, de Inglaterra e Austrália – precisamente aquelas cujas denúncias forçaram a investigação.

As conclusões resultam do resumo apresentado por Eckert, líder da câmara decisória da Comissão de Ética. Pequeno/grande problema: o norte-americano Michael Garcia, presidente da câmara de Investigação dessa mesma Comissão, e autor do relatório original, não está mesmo nada de acordo com as conclusões do seu colega. E veio a público afirmá-lo, nesta mesma quinta-feira, quando as ondas de choque pelo «branqueamento» promovido por Eckert já faziam manchetes na imprensa internacional, com destaque para a inglesa, de há muito a mais enérgica na contestação à direção de Blatter e aos membros do Comité Executivo.

Antes, a FIFA já se tinha apressado a congratular-se com as conclusões do resumo: «saudamos o facto de a avaliação dos processos de candidatura aos Mundiais de 2018/2022 estar fechada. Assim, a FIFA deseja prosseguir com os trabalhos de preparação dos Mundiais na Rússia e no Qatar, que já estão bem encaminhados», podia ler-se num comunicado do organismo, poucos minutos depois da intevenção de Eckert.

O entusiasmo deve ter sido refreado pela intervenção de Garcia, pouco depois: «O resumo contém várias incorreções e interpretações erróneas dos factos, bem como as respetivas conclusões», afirmou o investigador, com todas as letras, antes de encaminhar para o Comité de Apelo da FIFA uma queixa formal sobre a forma como Eckert procedeu.

Assim se fechava uma pescadinha de rabo na boca, acentuando o toque de absurdo e descrédito em todo este processo. E assim se reforçava a convicção de que, com ou sem dados para se fazerem acusações formais de corrupção, todo o processo de candidatura e votação das fases finais de Campeonatos do Mundo é um convite a jogos de bastidores, influências e manobras clandestinas.

O antagonismo entre as posições de Garcia e de Eckert não é de agora: depois de entregar o relatório, em setembro, o investigador norte-americano, já tinha defendido de imediato a sua divulgação integral. Algo que a FIFA se mostrou intransigente em aceitar, optando por uma solução de compromisso, fortemente criticada pelo autor do relatório: a divulgação de um resumo de 42 páginas, apresentado por Eckert, que expusesse para o mundo, por outras palavras, aquilo que a investigação de Garcia concluiu.

Ora, na versão de Eckert, as maiores irregularidades detetadas no processo foram cometidas pela candidatura inglesa a 2018, amplamente derrotada na votação do Comité Executivo – e a que mostrou mais disponibilidade para cooperar com a investigação liderada por Garcia. Segundo a versão resumida dos factos, antes da votação realizada em 2010, os ingleses terão procurado aliciar o presidente da CONCACAF, Jack Warner, com recolha de fundos no valor de 40 mil euros e tráfico de influência com pessoas que lhe eram próximas.

Já a investigação aos procedimentos da candidatura russa, lembra Garcia, esbarrou num inconveniente: o desaparecimento dos servidores, sem possibilidade de recuperação, de todos os e-mails trocados no período que antecedeu a votação. Já no que se refere à candidatura do Qatar, o resumo de Eckert admite preocupação com a legitimidade de algumas ações – como o financiamento do Congresso da Confederação Africana, em Angola, ou os pagamentos sobreavaliados à federação argentina por um jogo particular entre a «alviceleste» e o Brasil, em 2010. Ainda assim, conclui o juiz alemão, não houve violação das regras ou, a existirem, não houve forma de as relacionar diretamente com a organização da candidatura. Nada disto invalida que no resumo se fale de um processo «bem pensado, robusto e profissional». Exatamente o oposto da ideia geral de Garcia, que em sucessivas intervenções tem referido a necessidade de reformar profundamente os circuitos de poder no organismo de Zurique.

O extremar de posições, nesta quinta-feira, não representa mais, afinal, do que a confirmação de que as estruturas da FIFA têm como principal prioridade defender a manutenção da sua legitimidade e das suas posições de privilégio. Algo que o presidente da candidatura inglesa, Lord Triesman, resumiu com uma simples frase: «Se eles fossem sérios, ter-se-iam limitado a divulgar o relatório de Garcia».

Além das alegadas irregularidades nos processos de candidatura e votação, o Mundial de 2022 no Qatar continua a ser um ponto de forte polémica no panorama do futebol internacional. Além das questões climatéricas, que podem levar a que a prova seja transferida para o mês de dezembro - obrigando a refazer todo o calendário futebolístico do planeta - há também questões políticas, com destaque para as condições de trabalho nas equipas que procedem à construção dos equipamentos necessários para o Mundial, e para a discriminação de várias minorias no país, algumas delas a viver em regime de semiescravatura.

À imagem do desabafo de Vincent Kompany, internacional belga e capitão do Manchester City, as reações do mundo do futebol continuam a ter a FIFA na mira. O ex-internacional e atual comentador Gary Lineker, fala mesmo em motivos para rir. De uma forma ou de outra, há cada vez menos margem para acreditar que Blatter e companhia falam a sério quando apregoam o culto da transparência.