[Artigo original publicado a 10 de maio de 2016]
Os problemas físicos de João Mário obrigaram Jorge Jesus a mexer no onze e o treinador do Sporting lançou o miúdo favorito: Gelson respondeu com dois golos e uma exibição de encher o olho, que o transformaram na Figura da Jornada para o Maisfutebol.
O que dá a este momento um excelente pretexto para fazer uma viagem pelo passado do jovem nascido em Cabo Verde, que deu os primeiros pontapés numa bola na cidade da Praia e que aos oito anos viajou para Portugal, para se juntar ao pai e à mãe na Amadora.
Mas antes disso convém fazer uma ressalva.
Quem olha de fora não imagina, mas o miúdo irreverente e malabarista que enche o campo de diabruras e travessuras é afinal de contas um rapaz pacato e muito educado.
Até os amigos de infância o reconhecem.
Daniel Ildefonso, por exemplo, conheceu Gelson no Futebol Benfica, quando jogavam juntos. A partir daí estabeleceram uma amizade que dura até hoje.
«Combinávamos apanhar sempre o mesmo autocarro, ele apanhava duas paragens antes de mim e depois íamos juntos para os treinos», recorda.
«Sempre foi muito educado, uma excelente influência para os outros miúdos. Recordo, por exemplo, o meu primeiro jogo nos iniciados, ele esteve a semana toda a dizer-me para estar tranquilo, sem nervos, que ia marcar um golo. O jogo era contra o Cascais, na altura primeiro classificado, e assim foi: canto a nosso favor, Gelson fez o cruzamento e eu marquei tal como ele disse. Nunca me esqueci disso. Mas ele sempre foi assim, um amigo dentro e fora de campo.»
Aurélio Pereira, o senhor formação do Sporting, conhece Gelson como poucos: foi ele, aliás, o responsável pela contratação. Do jovem extremo só tem coisas boas a dizer.
«O Gelson nunca foi um problema para nós. Mesmo na adolescência, que é uma idade mais sensível, nunca foi problemático, respondeu sempre bem na escola, enfim. Se houvesse um buraco sem multidões, era lá que ele estava», sorri.
Filipe Pedro era na altura um dos treinadores das escolas de formação leoninas e assina por baixo tudo o que Aurélio Pereira referiu.
«Normalmente estes jogadores mais individualistas, mais irreverentes, têm tendência para ter uma personalidade mais problemática, mas não era o caso. Sempre respeitou os treinadores, sempre escutou os conselhos, nunca ouvi qualquer referência a problemas na escola e nunca se deixou influenciar pelas más companhias.»
O irmão Vítor Martins é seis anos mais velho, mas cresceu com Gelson, e diz que se trata de uma característica da família: respeitar a disciplina que lhe foi passada pelos pais.
Curiosamente os dois têm o mesmo pai e mães diferentes, e não viveram sempre com eles, mas souberam respeitar a educação recebida mesmo à distância.
Nascidos em Cabo Verde, são três irmãos e uma irmã e ficaram todos a viver com uma tia quando o pai e a mãe de Gelson vieram trabalhar para Portugal. Mais tarde, quando o extremo leonino já tinha oito anos, viajaram os quatro irmãos também para Portugal.
Foram viver para o bairro da Venda Nova, na Amadora, paredes meias com a Reboleira e a Damaia, enquanto estudavam na Escola Básica de Alfornelos. Para Portugal trouxeram os bons hábitos que já tinham na cidade da Praia, em Cabo Verde.
«Íamos para a escola de manhã, vínhamos, lanchávamos e fazíamos os trabalhos de casa. Só depois íamos jogar à bola. Nunca íamos brincar ou fazer outra coisa sem acabar os trabalhos de casa primeiro», conta Vítor Martins.
«Levávamos uma bola na mochila para jogar futebol na escola, mas assim que acabavam as aulas vínhamos para casa e não voltávamos a jogar sem fazer o que tínhamos a fazer.»
Apesar do respeito pelos deveres, não se pense que os irmãos Gelson e Vítor Martins tinham pouco tempo para jogar futebol. Pelo contrário, nunca se queixaram.
«Em Cabo Verde, depois de fazermos os trabalhos de casa, trocávamos de roupa, víamos uns vídeos na televisão e íamos para um campo que havia atrás de nossa casa jogar. Na altura não víamos muito futebol português, víamos sobretudo futebol brasileiro. O Gelson gostava do Robinho e eu do Ronaldinho. Por isso víamos as coisas que eles faziam, pegávamos numa bola e íamos para o campo tentar imitar as habilidades deles.»
Foi a tentar imitar Robinho que Gelson cresceu como jogador, reunindo um manancial de fintas e malabarismos que desde miúdo o tornaram especial.
«Já em Cabo Verde o Gelson era o melhor. Era pequenino, franzino, mas muito forte tecnicamente. Fazíamos jogos com outros bairros e ele já era claramente melhor.»
Por isso já se adivinhava um percurso ligado ao futebol, que se concretizou em Portugal. Quando Vítor e Gelson se juntaram ao pai no bairro da Venda Nova a ambientação foi fácil, garantem: ao contrário de outros cabo-verdianos que só falam crioulo, ambos falavam bem português, o que foi um auxiliar precioso na adaptação a Lisboa.
Foram estudar para a EB de Alfornelos e começaram por jogar lá à bola, dando nas vistas rapidamente. Por isso tornou-se natural para os dois juntarem-se a um clube.
«Fomos levados por amigos para o Futebol Benfica, que era o clube perfeito até porque da Venda Nova às Portas de Benfica é perto. Às vezes até íamos a pé para os treinos.»
Foi no popular Fofó que Gelson Martins começou a carreira: tinha então 12 anos. Tiago Correia foi o treinador do então miúdo e não esquece a primeira imagem que lhe chegou.
«Quando assinei pelo Fofó fiz um treino de captação em que dividi os jogadores em dois grupos: eu fiquei com os que estavam à experiência e o meu adjunto ficou com o outro. Às tantas o meu adjunto vem, diz-me ‘andá cá que tens de ver isto’ e apontou para o Gelson, que estava com a bola junto à linha. Nisto ele faz dois cabritos e um túnel de sola. Eu e o meu adjunto olhámos um para o outro e pensámos: ‘Mas o que é isto?'», recorda.
«Sou treinador há doze anos e nunca vi um talento assim. Percebi logo que estava ali uma estrela.»
Apesar de tudo, Tiago Correia não esconde que o miúdo lhe deu algumas dores de cabeça.
«Uma vez chateei-me um bocadinho com ele porque estávamos no final da época e ele não estava a corresponder. Perguntei-lhe o que se passava e ele disse-me que estava cansado porque andava a jogar nos torneios da escola. Pediu-me desculpa», conta.
«Antes disso, no início do ano, disse-me que ia deixar o Fofó porque ia jogar futsal para o Sporting. Uns amigos iam para lá e ele também queria ir. Tive uma conversa com ele, lá o convenci a ficar até dezembro. ‘Se depois quiseres ir, vai.’ Felizmente nunca mais quis ir...»
O nome do Sporting, porém, estava marcado no destino de Gelson Martins e os dois haveriam de se cruzar mais tarde. Mas não foi muito mais tarde: começou a sê-lo ainda nessa época.
«A primeira vez que ouvi falar do Sporting foi no final de um jogo de iniciados, quando veio uma pessoa falar comigo: era um olheiro do clube e quis perguntar-me quem era aquele miúdo.»
Gelson já estava no caderno de apontamentos do clube leonino, portanto. Mas acabou essa temporada no Fofó e com excelentes resultados: o clube foi campeão de iniciados depois de vencer o Benfica por 3-1 no Seixal, com dois golos do agora extremo leonino.
O Benfica ficou também de olho em Gelson e o Sporting avançou para a contratação logo no início da época seguinte, depois do miúdo fazer um jogo pela equipa juvenil do Fofó.
Aurélio Pereira foi o responsável pela contratação e lembra-se bem de como aconteceu.
«O Gelson foi observado enquanto sub-15 e quer os nossos observadores quer os treinadores acharam que tinha as características que apreciávamos. Depois também eu fui ver um jogo dele, num campo pequenino no Restelo, e achei que tinha as características dos jogadores de rua, que estão em vias de extinção», conta.
«São jogadores de movimentos livres e espontâneos, que só na rua se aprendem. São criados sob o ponto de vista da própria ordem, sem ter um treinador nervoso a dar-lhe ordens. Aprendem tudo sozinhos, até a errar e a ultrapassar o erro. Quando encontramos miúdos desses e depois lhe introduzimos noções táticas, eles tornam-se especiais.»
Por isso o Sporting, também avisado para o interesse do Benfica, avançou para a contratação de Gelson Martins. Pelo qual acabou por pagar 30 mil euros.
«O contrato de aquisição do Gelson Martins foi igual ao contrato de aquisição do Ruben Semedo, que dois anos antes também tinha saído aqui do Fofó para ir para o Sporting: quando fizessem cinco jogos pela equipa principal, pagavam-nos 30 mil euros. Curiosamente os dois fizeram cinco jogos esta época e o Sporting já pagou tudo», conta o presidente do Fofó, Domingos Estanislau, ele que mantém contacto com Gelson.
«Ainda me ligou há duas semanas, a perguntar se o irmão podia vir jogar para aqui para o clube. Este ano já não pode, porque as inscrições já estão fechadas, mas vai ficar aí e para o ano vai ser inscrito, porque é bom jogador.»
O irmão é Vítor Martins, o outro membro da família que também seguiu a carreira de jogador. Depois de alguns anos em França, ao serviço do FC Drancy, Vítor está de regresso a Portugal e para representar o Fofó, onde já jogou na formação.
Gelson, esse, já está noutro nível.
No sábado foi figura na goleada do Sporting e cimentou a ideia que está a fazer uma época de estreia na Liga melhor do que Cristiano Ronaldo, Figo, Simão e Nani: são já 41 jogos, 1739 minutos e 7 golos, somando todas as competições.
Admirável, não é?
Ora por isso tornou-se obrigatório perguntar a Aurélio Pereira se Gelson está realmente ao nível de todos os outros extremos que descobriu: Ronaldo, Figo, Simão, Nani, Quaresma, Futre, enfim...
«Não dá para comparar, porque muitos desses jogadores, como o Figo, o Nani, o Simão e o próprio Ronaldo, apareceram a jogar nas faixas apenas na equipa principal. O Gelson sempre foi um jogador de corredor, mais vertical e menos de construção de jogo.»
Para além disso todos os outros têm já uma carreira feita e em alguns casos terminada, enquanto Gelson Martins está apenas a começar.
Mas há uma coisa que não se pode negar: que o miúdo tem muito futuro pela frente.