Num ano a lutar até ao final para evitar a descida, no outro a liderar o campeonato. Não, esta não é mais uma reportagem sobre a caminhada fantástica do Leicester na Premier League. A verdade é que o emblema inglês não é caso único. Na Rússia, pelo menos, também há um Leicester e chama-se FC Rostov.

Aproveitando a derrota do CSKA Moscovo frente ao Zenit de André Villas-Boas, o FK Rostov subiu ao primeiro lugar do campeonato, vencendo outra equipa da capital, o Spartak. Soma 44 pontos e a diferença mais evidente para o super-Leicester é mesmo a vantagem na Liga, bem mais reduzida. O CSKA só tem menos um, o Lokomotiv está a três e o Zenit a quatro.

De qualquer forma, não deixa de ser espantosa a performance de um clube que conta com apenas dois títulos nacionais no currículo: venceu a II Divisão em 2007/08 e a Taça da Rússia há dois anos.

Os 44 pontos que tem a oito jornadas do fim já são o seu maior pecúlio de sempre na Liga, onde chegaram pela primeira vez em 1992, tendo registado, desde aí, duas descidas de escalão.

As últimas dez temporadas do FK Rostov:

2014/15: 14º lugar (29 pontos)

2013/14: 7º lugar (39 pontos)

2012/13: 13º lugar (29 pontos)

2011/12: 13º lugar (32 pontos)

2010: 10º lugar (34 pontos)

2009: 14º lugar (32 pontos)

2008: II Liga

2007: 16º lugar (18 pontos)

2006: 12º lugar (38 pontos)

2005: 13º lugar (31 pontos)

Naturalmente, a discrepância entre a Premier League e a Liga russa é evidente, mas a análise é, no mínimo, proporcional. A época passada correu muito mal à equipa, depois de um sétimo lugar em 2014 e, acima de tudo, da vitória na Taça, que valeu o apuramento inédito para a Liga Europa.

Os problemas vieram a seguir. O clube atravessou (ainda atravessa) uma crise financeira e não deu as garantias necessárias à UEFA que chegou a anunciar a sua substituição na prova pelo Spartak Moscovo. O Rostov recorreu e jogou mesmo o playoff de apuramento com os turcos do Trabzonspor, mas acabou eliminado.

Era apenas o início de uma temporada desastrosa, salva na linha de meta. Com os mesmos pontos do despromovido Torpedo, o Rostov conseguiu um lugar no playoff por ter mais jogos ganhos, primeiro fator de desempate. Depois teve de passar pelo Tosno, da II Divisão, para garantir a continuidade na elite.

Sublinhe-se que o clube é gerido pelo governo regional e a crise deve-se, precisamente, ao período de recessão que a Rússia inteira atravessa.

Aliás, basta ver a situação de vários clubes gregos para perceber que os problemas financeiros não se resumem ao Rostov. O Anzhi já foi uma das potências emergentes e atualmente amargura no último lugar. O Dínamo Moscovo falhou com as regras do fair-play financeiro da UEFA e viu-se obrigado a vender grande parte dos seus jogadores. O Spartak, que tem nove títulos russos, é hoje uma sombra da potência local que já foi. Zenit e CSKA vão resistindo como podem, mas…até quando?

Neste cenário, a campanha do FK Rostov, clube de uma cidade portuária com cerca de um milhão de habitantes, ganha uma dimensão especial num país em que o futebol terá, dentro de dois anos, o seu ponto mais alto com a organização do Mundial 2018.

Kurban Berdyev, o líder que reza a Alá nas conferências de imprensa

À frente do clube está Kurban Berdyev, treinador famoso o país pelos títulos ganhos ao serviço do Rubin Kazan. Natural do Turquemenistão, país sem grande expressão futebolística, Berdyev é uma figura bem peculiar do campeonato local há vários anos.

Chegou em 2000 para treinar o FC Kristall Smolensk, equipa extinta quatro anos mais tarde, mas foi no Rubin Kazan que fez história.

Foram 12 épocas seguidas à frente do clube, com especial destaque para os anos de 2008 e 2009, em que venceu o campeonato, facto inédito na história do clube.

Assumiu o Rostov no início do período de recessão, em 2014, e é um dos obreiros desde momento de sonho da equipa, para onde levou cinco jogadores que treinou no Rubin Kazan. Credita, contudo, parte do seu sucesso em… Alá.

Berdyev é muçulmano confesso a ponto de, várias vezes, orar em plena conferência de imprensa. Além disso, tem a particularidade de se integrar a fundo na vida do clube. Aliás, no Rubin Kazan além de treinador chegou a ser…vice-presidente.

Tal como no Leicester, o estilo de jogo do Rostov não será o mais encantador da Europa do futebol. Processos simples e muito eficazes, como, aliás, é padrão do técnico turcomano.

A equipa tem a melhor defesa do campeonato (16 golos sofridos em 22 jogos), mas o ataque nem é muito produtivo. Ao todo, marcou 28 golos, números bem distantes do melhor ataque que é do Zenit, com 44.

«Se o Leicester pode, nós também»

Se no Leicester, mesmo que apenas semi-estrelas no início da época, há jogadores do calibre de Mahrez ou Jamie Vardy, no Rostov não há estrelas.

A maioria dos jogadores são russo, mas até há sotaque português no balneário. O central angolano Bastos, contratado em 2013 ao Petro de Luanda, é um dos incontornáveis do grupo. Há também o experiente Aleksandr Bukharov, ex-Zenit, e também velho conhecido de Berdyev dos tempos do Rubin Kazan.

A equipa perdeu recentemente o avançado iraniano Azmoan, que voltou ao seu país para jogar no Traktor e que tinha sido protagonista de uma frase que marca a ambição do Rostov.

«Espero que consigamos continuar em cima e surpreender toda a gente vencendo o título. Se o Leicester pode, nós também», disse.

A verdade é que a equipa continua na corrida ao título e, mais do que isso, até lidera. Quem adivinharia, dados todos os problemas financeiros (um mal do qual, por exemplo, o Leicerter não sofre), que levaram a que grande parte dos jogadores da época passada mudassem de emblema.

A equipa parecia atirada para o abismo mas das fraquezas fez forças escalando até ao topo da pirâmide.

A Rússia não tem um campeão surpreendente desde o Rubin Kazan de Berdyev, sendo que a caminhada do clube foi muito semelhante à desde Rostov, no seu primeiro título, em 2008.

Ainda um clube relativamente recente na I Divisão, chegou-se à frente, surpreendeu os grandes candidatos e nunca caiu, ao contrário de todas as previsões.

Se repetir a façanha com um clube que parecia bem mais perto da falência do que do Olimpo, Kurban Berdyev ficará, definitivamente, na história do futebol russo.

E, mesmo tendo já 63 anos, é bom que o resto da Europa preste atenção ao turcomano. Porque a fé em Alá não é tudo. Há ali treino e talento.