Fora do jogo é uma rubrica do Maisfutebol que dá voz a agentes desportivos sem participação direta no jogo. Relatos de quem vive por dentro o dia a dia dos clubes e faz o trabalho invisível longe do espaço mediático. Críticas e sugestões para vem.externo@medcap.pt ou smpires@mediacapital.pt.

O futebol não tem pertença. Tanto é dos jogadores e dos treinadores como dos operários silenciosos aos quais as luzes da ribalta nunca lhes chegam.

Embora trabalhem nas sombras, essas pessoas representam pedaços das almas dos clubes. São também figuras míticas, cheias de histórias para contar e com um amor incondicional aos emblemas. Tibi, o roupeiro do Paços de Ferreira há várias décadas, é uma dessas personagens.

«O Tibi? Está lá atrás, juntos aos novos balneários», diz um funcionário dos pacenses enquanto dá a primeira demão a um portão.

O Maisfutebol perturba a pacatez da oficina de Paulo Neto, cuja alcunha tem origem no antigo guarda-redes do FC Porto. Quando entrámos, Tibi, de 51 anos, está a estampar números nos calções. É, portanto, mais um dia de uma vida dedicada aos castores.

«O meu avô e a minha avó eram roupeiros no antigo campo, em 1950. Assistia-a a jogos com o meu pai. Depois o Paços de Ferreira mudou-se para aqui por volta de 1954 e o meu avô já não veio. O meu pai começou a ser roupeiro em 1979 juntamente com a minha mãe e depois fiquei eu», explica.

Embora o trabalho não pare, a conversa continua a fluir e Tibi perde a timidez.

«Com a mudança de campo, o clube teve dez pessoas em cinco anos nesta função. No entanto, um dos roupeiros às vezes bebia demasiado quando os jogadores chegavam não havia equipamentos. O meu pai era marceneiro na empresa do presidente e este pedia-lhe que viesse desenrascar», relata.

«No início da década de 80 comecei a ajudar o meu pai. O campo era pelado, era preciso marcá-lo e pronto... lembro-me de acordar às 7h e tal da manhã com o meu pai em dias de chuva torrencial. Mais tarde, pessoas especializadas começaram a tratar da relva e nós ficámos encarregues da tratar da roupa. Ganhei o gosto e fiquei», acrescenta.

O roupeiro nasceu e cresceu junto a um dos antigos campos do Paços de Ferreira. Um recinto «sem bancada» como o próprio faz questão de recordar. Agora Tibi mora atrás de uma das bancadas do remodelado estádio Capital do Móvel.

«O meu pai começou por morar aqui. O Paços fez a casa para o meu pai, ele era o guarda do campo. Agora moro mais ao lado. Sou eu e a minha mãe, por isso estou sempre por aqui. Tem os seus inconvenientes (risos). Quando é preciso alguma coisa, já está a ver a quem pedem, não já? Mal posso sair», diz, entre risos.
 

A casa de Tibi (assinalada na imagem com um círculo) nas traseiras de uma das bancadas do Estádio Capital do Móvel.



Após um pedido de desculpas pelo adiamento da entrevista, Tibi lembra que os seus dias são organizados em função dos horários da equipa sénior.

«Venho aqui abrir o campo, como se diz, por volta das 7h30. Abro a porta ao departamento médico. Afinal, estou sempre aqui, não é? Imagine, ontem sai daqui por volta das 22h00 e tal. Não tenho horário (risos). O que faço, faço-o por gosto, mas não sei se muita gente fazia estas horas todas», conta antes de descrever o trabalho que tem.

«Cada jogador tem o seu cacifo e o seu lugar. Coloco lá a roupinha e deixou tudo pronto. Após o treino, recolho os equipamentos de um recipiente que tem no balneário, lavo, seco e volto a pôr tudo direito. O trabalho é bom. Estou aqui em baixo [por baixo de uma das bancadas], não apanho frio nem chuva, mas raramente folgo. Já estive a ver o calendário e não sei se até ao Natal vou ter um dia sem fazer nada.»

O funcionário dos castores «admite que às vezes o trabalho satura», porém, a paixão pelo clube sobrepõem-se a tudo. «Estou em casa e trabalho em casa.»

«Pizzi dá-me sempre uma camisola»  

«Os jogadores passam, mas o clube fica». Esta velha máxima é intemporal e transversal a todos os clubes. Tibi conviveu com centenas de jogadores e dezenas de treinadores. Ficou magoado com alguns e recorda outros com saudade.

«Camisolas? Ui tenho muitas! Às vezes peço aos jogadores. Outras vezes pego na quero e depois faço outra (risos). Tenho uma que o Filipe Anunciação me deu no último jogo da participação na Liga Europa, outra do André Leão quando fomos à Liga dos Campeões», rememora.

 

Tibi coloca o número num calção


Tibi está de pé junto à secretária. Apoia um joelho na cadeira e roda uma caneta entre os dedos. «Sabe uns deixam saudades, outros… Trato todos por igual para bem do Paços. Há jogadores que vão embora e depois fazem-se de conta que não me conhecem. Não tem mal! Faço-lhes igual! Outros chegam a grandes equipas e lembram-se. O Pizzi todos os anos dá-me a camisola. O Sérgio Oliveira também me deu uma. São boas pessoas», refere.

O Maisfutebol faz nova pergunta. Contudo, é interrompido delicadamente pelo roupeiro. «Ui uma vez em Alvalade… a propósito das camisolas. Levo sempre duas camisolas, mas o Maykon obrigou a lavar e a secar camisolas na hora. Ele abriu a cabeça, sujou a camisola que tinha e voltou a sangrar, sujando a outra. Tive de me desenrascar e sequei as camisolas com um secador», recorda.

As histórias são tantas e começam a surgir sucessivamente.

«Lembrei-me agora de outra história. Não sei qual foi o jogo em concreto. Um jogador dos Paços começou a sangrar e sujou a camisola. Fui logo buscar outra. Quando cheguei ao relvado, ele estava a ser cosido. Ui! Sofremos um golo e eu e o massagista levámos uma dura. A direção veio para cima de nós. ‘Então ele estava a ser cosido, tive alguma culpa?’», recorda.

«Se tivesse de mandar o José Mota para um sítio que eu cá sei, mandava»

Tibi acompanha o Paços de Ferreira a todo o lado. Chega a viajar um dia antes da equipa para «ter tudo pronto a tempo». Faz, naturalmente, parte do grupo de trabalho e não está livre de várias partidas.

«Fui alvo das brincadeiras habituais. Já me meteram no chuveiro assim como estou [fato de treino do clube]. Agora já não se brinca tanto, sabe? Os jogadores chegam ali [aponta para o balneário] e agarram-se ao telemóvel», reflete.

Paulo Neto queixa-se do excessivo uso de telemóveis e nem de propósito conta mais uma história pessoal. «Participo na caixinha das multas e tenho cota semanal. Se tiver de apanhar muta… e olhe que já apanhei (risos). Um dia recebi uma mensagem do Paulo Gonçalves [secretário técnico] e o meu telemóvel tocou. Pumba! Cinco euros, logo», lembra.


 

Tibi prepara-se para estampar um número num calção



Milhares de quilómetros percorridos, inúmeros estádios e países visitados. Um sem fim de horas passadas com jogadores e treinadores. Ainda assim, Tibi não tem dúvidas em escolher os técnicos que mais o marcaram.

«O Vítor Oliveira, o Henrique Calisto e o Paulo Fonseca foram quem mais me marcou. Podia falar do Rui Vitória ou do Paulo Sérgio, mas esses… como hei de dizer? Falavam comigo. Há outros treinadores com os quais uma pessoa fala e eles nada. Têm as suas coisas», aponta.

Entre as qualidades humanas e dos sucessos de cada, Tibi para de falar durante uns segundos e lembra-se de outro treinador. «Ah! E o José Mota também. É da terra, tratava-o por tudo. E se o tivesse de mandar para um sítio que eu cá sei, mandava (risos). O Mota é praticamente da minha idade e conheço-o há muitos anos.»

Além de estágios e viagens, o roupeiro assiste aos jogos no relvado. O próprio reconhece que não é fácil sofrer de fora.

«Tenho de estar no banco de apoio juntamente com pessoas do departamento médico e com treinadores. Fácil? Ui! Depende. Eu bem tento, mas às é difícil. Para quem vive e chora pelo Paços, não é fácil. Quando não consigo ver mais, venho para aqui, mas nem ligo a televisão!», diz com a voz embargada quem já derramou muitas lágrimas pelo Paços de Ferreira.

«Chorei muitas vezes, sobretudo nas descidas. Foram todas muito duras. Mas chorei de alegria quando fomos à Liga dos Campeões.»

Uma noite sem dormir para lavar equipamentos

Há várias peripécias na vida de Paulo Neto: desde ir de muletas à madeira até passar uma noite às claras para tratar da roupa.

«Em 2008 fizemos um estágio em Celorico e dois dias depois fomos para Marrocos. Chegámos sábado e segunda-feira partimos outra vez. Nem desfiz as malas, foram conforme vieram. Foi um mês de loucos! Lavei a roupa, sequei-a e meti nos sacos para partirmos. Chegámos às 5h00 da manhã de sábado e no dia seguinte jogámos em Barcelos. Só pensava como ia ter os equipamentos prontos. Não fui à cama!», refere.

A conversa chega ao fim com muitas outras histórias de Tibi por contar.