tMais de três meses depois daquele final de época que fez parar milhões de corações por esse mundo fora, e que coroou Max Verstappen como novo campeão do Mundo, a Fórmula 1 está de volta.

Depois dos testes, os motores voltam a acelerar este fim de semana no Grande Prémio do Bahrain, e as expectativas não podiam estar mais elevadas. Além da possível continuação do duelo entre Verstappen e Lewis Hamilton, outros 18 pilotos querem juntar-se à corrida no topo do pelotão, num ano marcado por profundas alterações nos regulamentos.

Por isso mesmo, o Maisfutebol pediu ajuda privilegiada a Nuno Pinto, o português que é treinador de Lance Stroll, piloto canadiano da Aston Martin. Em entrevista ao nosso jornal, o driver coach luso, que nos últimos anos se tornou uma cara habitual das transmissões da F1 em Portugal, recorda a batalha épica entre Verstappen e Hamilton, antecipa uma Ferrari forte, e desvenda um bocadinho do que poderá ser o ano de 2022 da categoria rainha do desporto automóvel.

PARTE I – Nuno Pinto, o português da Fórmula 1: «Não é como parece na Netflix»

Maisfutebol – Do que foi possível ver dos testes, quais são as previsões para a nova época? A Mercedes está mesmo com dificuldades ou é bluff? E a Ferrari, pode estar mesmo de volta à luta por vitórias?

Nuno Pinto – Eu passei os seis dias [de testes] na pista e olhei pouco para tempos. Tenho feito isso sempre que posso nos últimos anos. Gosto muito de ver como é que os monolugares reagem e de perceber quais as dificuldades que estão a ter. Sabemos que a Mercedes esconde muito o jogo, a Red Bull começou a aprender a fazer isso também. A Ferrari habitualmente não, e depois ficavam um bocadinho iludidos. Destes seis dias, e é uma previsão sem ter as informações suficientes, porque só sei o que é que a minha equipa anda a fazer, saio destes dias muito impressionado com a Ferrari. Desde a primeira volta pareceu um carro fácil de guiar, e um carro fácil de guiar normalmente é competitivo. Os pilotos sentiram-se logo muito à vontade com o monolugar, faziam dele o que queriam. O carro era sempre previsível nas reações. Acho que conseguiram fazer alguns tempos interessantes. Fiquei muito impressionado com o equilíbrio do Ferrari. Agora, se eles andaram ‘levezinhos’ [com menos combustível] é muito mais fácil conseguir esse equilíbrio do que se andaram pesados como eu vi o Red Bull e a Mercedes em muitos momentos. Mas pode ser uma luta a três. Acho que a Mercedes escondeu um pouco o jogo, mas não estão a fazer bluff, acho que eles têm reais problemas. Muito à semelhança do ano passado, em que tiveram problemas nos testes do Bahrain – o carro estava desequilibrado – e depois ganharam aquela primeira corrida contra as expectativas. Deram a volta. E é isso que nunca podemos subestimar na Mercedes, é a capacidade que eles têm de reagir como equipa e de melhorar rapidamente. Acho que eles vão estar melhores, sim, mas ficava surpreendido se estiverem a lutar pela pole position e pela vitória já no Bahrain. Mas a curto prazo estarão. O monolugar tem velocidade, simplesmente está difícil de afinar. Se calhar tiram combustível e ficam logo muito melhor. É isso que nós não sabemos. A Red Bull também esteve muito bem, principalmente no último dia. E aí, sim, quase que posso garantir que eles tiraram algum peso ao carro, para ver até onde podiam ir. Mas não devem ter tirado tudo. Pelo que vi, acho que vai ser uma luta a três.

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A McLaren esteve muito bem em Barcelona, achei que podiam intrometer-se nessa luta, mas aqui no Bahrain já não estiveram tão bem, o que me dá a ideia que em Barcelona andaram ‘levezinhos’. E depois o segundo pelotão está muito misturado. É impossível dizer depois destes testes.

E a Aston Martin? A época de 2020 foi muito boa, ainda como Racing Point, mas depois a transição para Aston Martin não correu tão bem.

Vimos nos testes um monolugar com poucos problemas, fiável, e isso é importante. Um monolugar que também reagia bem às afinações, e conseguiu resolver-se o problema das oscilações com relativa facilidade. Nunca vai ser fácil para nenhuma equipa, mas conseguimos chegar a um bom compromisso, por isso pensa-se que poderemos estar competitivos. Mas é muito difícil saber. Agora, a Aston Martin é uma equipa nova, não podemos deixar de pensar nisso. Porque apesar de ter recebido tudo o que era da Racing Point, é uma equipa com objetivos completamente diferentes e que está a passar por uma restruturação muito grande, por uma expansão. A nova fábrica ainda está a ser construída, e, portanto, isto é um processo a quatro ou cinco anos, como foi publicamente assumido pela equipa. É importante dar pequenos passos todos os anos e reforçar a estrutura e os meios técnicos para nesse prazo de tempo poder-se lutar por vitórias. Essas ainda não vão acontecer já, mas é importante ver-se evolução e tomar os passos certos. Este ano o objetivo é fazer melhor do que o ano passado, mas não podemos desvalorizar que uma mudança tão grande nos regulamentos, numa altura em que a equipa em si ainda está a mudar e a crescer, é um desafio muito grande. Vamos ver como é que a equipa reage e lida com isso.

Nuno Pinto acompanha Lance Stroll há vários anos (arquivo pessoal)

Este ano há uma mudança nos regulamentos cujo principal objetivo é permitir mais ultrapassagens em pista. Pelo que se viu nos testes, esse objetivo vai concretizar-se?

Sim, parece que sim. As indicações são muito positivas. É mais fácil andar mais perto do monolugar da frente, viu-se em algumas batalhas que foram acontecendo, e os pilotos precisavam de experimentar isso. E para além disso, o feeling dos pilotos que andaram atrás de outros monolugares disseram que parece bem melhor. Disseram que perdem muito menos carga aerodinâmica na frente do que antigamente. E isso é bom sinal. Vamos ver realmente em corrida. Mas os primeiros sinais são animadores. Vai ser mais fácil andar mais perto do carro da frente e se for assim será mais fácil ultrapassar.

A luta do ano passado entre Verstappen e Hamilton foi o recordar de duelos de outros tempos, como Prost e Senna, por exemplo?

Sem dúvida. Isto foi claramente um duelo a esse nível, de Senna-Prost, Piquet-Mansell, Lauda e Prost, Schumacher e Alonso. Tudo isso, mas ainda a um nível mais elevado. Porque antigamente havia outros fatores, havia algumas desistências, problemas mecânicos... aqui não, acho que foi uma luta mesmo corpo a corpo e com dois monolugares de duas equipas diferentes igualmente competitivos. Foi o expoente máximo de uma luta de dois pilotos fenomenais. Da mesma maneira que era Prost e Senna, mas essa até era um bocadinho mais interna, porque duas foram quando estavam os dois na McLaren. Eu já disse, acho que foi o melhor campeonato de sempre, foi espetacular. Acabou da maneira que acabou, mas esquecendo o resultado, porque o título seria bem entregue a qualquer um dos dois, o facto de ter acabado na última volta da última corrida demonstra que foi um campeonato único. Acho que vai ser difícil superar, mas espero que não. Espero que o deste ano ainda seja melhor e que seja luta a três ou a quatro, como já tivemos. Era isso que queríamos. Com todos os problemas que isto também causou, principalmente para esta nova geração de fãs que é muito separatista: se são do Hamilton odeiam o Verstappen e vice-versa.

Exato.

Eu não gosto disso, mas por outro lado deu um interesse brutal à Fórmula 1. Tivemos dois grandes pilotos, duas grandes equipas, com personalidades muito distintas, e isso também é giro, porque foi o jovem contra o campeão mais velho e mais experiente. Acho que foi espetacular, adorei. Foi inesquecível e espero que as gerações mais novas daqui a 20 anos estejam a dizer: ‘Epá, isto fez lembrar aquela batalha do Max com o Hamilton, e é isso que se quer, porque é disto que vive a competição.’

Nuno Pinto com Max Verstappen, Lance Stroll e Luca Baldisserri na Florida Winter Series de 2014 (arquivo pessoal)

Essas picardias entre os fãs não foram um bocadinho a «futebolização» da Fórmula 1?

Foi, e com muitos treinadores de bancada com muitas opiniões de quem não tem os factos todos. É natural que se seguimos mais um piloto, vamos procurar mais informações sobre ele e depois não temos a perspetiva geral. E às vezes temos opiniões baseadas em factos que não são imparciais. Isso vem de uma nova geração de fãs, do fenómeno das redes sociais, em que há opiniões sem verificações de factos. E se fores um fã mais extremado agarras-te mais a uma narrativa e não tens toda a informação. Mas é o preço a pagar por esta nova mediatização da Fórmula 1. Influenciada pelas redes sociais e pela série da Netflix [Drive To Survive], que promove essa parte para dar algum interesse à narrativa. Se calhar é o preço a pagar e cabe-nos a nós, que temos outra responsabilidade, de tentar ajudar. Mas não é combater. Se quiserem ver a Fórmula 1 como veem um Benfica-FC Porto ou um Real Madrid-Barcelona, ok. Não há mal nenhum nisso. Acho é que perdem um bocadinho da faceta deste desporto, que é toda a envolvência e o trabalho que é preciso fazer. Isto não é índios contra caubóis, é muito mais do que isso. Mas cabe-nos a nós tentar passar a informação da melhor maneira possível para esses fãs um bocadinho mais radicais tentarem perceber que a Fórmula 1 é muito bonita independentemente de quem ganha, como todos os desportos. Eu estou aqui a falar, mas se formos para o futebol também sou muito menos imparcial porque tenho uma paixão mais direcionada para um clube. Mas por outro lado, quando tenho oportunidade de estar com pessoas que sabem mais do jogo e do desporto, tento perguntar para perceber a globalidade do jogo em si. E gosto muito de falar com pessoas que entendem e que estão lá dentro. Mas acho que nós temos um papel de minimizar esses efeitos. A primeira vez que vi o Drive To Survive da Netflix gostei, mas disse logo: ‘Calma que aquilo não foi bem assim, há ali coisas que foram muito manipuladas para criar uma história.’ Não achem que tudo aquilo é verdade. Da mesma maneira, quando se ouve um piloto a falar com a imprensa não é genuíno, eles têm muitas indicações do que podem dizer. Não façam avaliações de carácter só pelo que veem dos pilotos a falar com a imprensa. Eu conheço alguns que fora do ecrã são muito diferentes da imagem que passam.

Mesmo em Portugal, a Fórmula 1 parece ter recuperado a força que havia perdido nos últimos anos.

Sem dúvida que a modalidade perdeu um bocadinho de fôlego no nosso país. Começou quando deixámos de ter um Grande Prémio, isso é óbvio. E juntou-se a isso com o facto de haver em Portugal uma grande base de fãs do Senna. E aí os fãs desinteressaram-se pela modalidade. Mas tenho sempre a sensação de que o desporto automóvel, juntando ralis, Fórmula 1 ou motas, continua a ser o segundo desporto preferido em Portugal, com mais fãs, logo a seguir ao futebol. Basta ver o Rali de Portugal e as multidões que estão à beira da estrada para perceber isso. E se se praticar o desporto então, toda a gente sabe um bocadinho de corridas, toda a gente gosta um bocadinho. Por isso eu acho que a base de fãs nunca desapareceu totalmente. E além do Grande Prémio e da morte do Senna, se calhar houve menos nomes soantes durante alguns anos, com os quais o público se identificava menos, e a modalidade passou a ser transmitida em canais pagos. Temos de ter noção que para uma família de classe média não é fácil pagar para ver corridas. Juntando tudo isso, perdeu-se algum interesse. Cresceu nos últimos anos, sem dúvida nenhuma, e acho que a Eleven fez um trabalho extraordinário, trouxe de volta a modalidade aos fãs. Foi o grande mérito do canal, e excelente papel da equipa que trabalhou nisso, e do Oscar Góis [jornalista da Eleven], que se calhar foi o grande mentor desta abertura aos fãs. Tive muito prazer em debater com o público, e isso só foi possível por causa das redes sociais. Não sou fã, mas ficou provado que bem utilizadas podem ser uma excelente ferramenta para integrar a comunidade. E tivemos a sorte de fazer tudo isso e termos bons campeonatos e boas corridas. Isso ajudou a trazer novamente o interesse e os fãs de Fórmula 1, e acho que todos fizemos o nosso bocadinho. Há várias iniciativas, podcasts de gente apaixonada por corridas, por exemplo. Isso é a parte boa das redes sociais. Fez-se um grande trabalho e espero que continue. Ficámos por exemplo muito orgulhosos ao ver que Grande Prémios tiveram mais audiências do que jogos de futebol muito importantes.

Nuno Pinto a trabalhar com a Eleven durante os testes de pré-época de 2020, em Barcelona

E o Circuito de Portimão? Fala-se que pode substituir a Rússia no calendário de 2022, mas tem condições para se fixar como uma corrida regular na Fórmula 1?

Eu acho que o Grande Prémio de Portugal devia fazer parte do calendário da Fórmula 1, não há dúvidas sobre isso. Tem todas as condições para tal, mas não temos força política e económica para termos um Grande Prémio. Por isso, estarmos na situação de substituição já é bom, é melhor do que o esperado. Há dois anos achava que não tínhamos hipóteses nenhumas. Mas tinha de haver outra mentalidade, outra capacidade financeira. Mas também entendo que seja difícil para um Governo justificar um investimento de 20 ou 30 milhões de euros na organização de um evento. Mas será que não teríamos retorno? Acho que sim. Tinha era de ser muito bem preparado e muito bem justificado. Todos sabemos as dificuldades pelos quais o país passa. O que é evidente é que os dois anos em que se foi a Portimão tiveram muito boa influência dentro do Paddock e das pessoas que foram ver o Grande Prémio: do país, da cultura, da gastronomia… um exemplo engraçado é que no final dos testes de Barcelona, há duas semanas, houve gente do Paddock que viajou para Portugal para passar uns dias de férias. E isso só aconteceu porque vieram cá. É uma ferramenta de promoção turística brutal. E há pilotos a vir passar uns dias a Portugal.

Sim, e os pilotos gostaram da pista, com exceção do Verstappen que se queixou do asfalto na corrida do ano passado.

O Max também gostou (risos). Eles não gostaram porque faltava aderência. Mas se não corrermos lá mais vezes aquilo não vai ganhar aderência. Não há nenhum piloto a ir por exemplo ao Bahrain quando tem tempo livre. Gostava muito que a nossa economia recuperasse e o nosso Governo e as nossas empresas privadas vissem com olhos de ver a possibilidade de retorno que um investimento em ter um Grande Prémio de Portugal poderia ter.

E trabalhar perto do Sebastian Vettel, como é? Parece mesmo ser uma personagem fora da caixa no mundo da Fórmula 1.

Quando alguém me pergunta sobre o Vettel, eu respondo: ‘É um gajo normal.’ É um porreiro, uma pessoa inteligente, com uma visão da vida diferente do que os atletas de elite costumam ter. É o ‘antiestrela’ total. O estilo de vida que tem não é nada de uma pessoa que já foi quatro vezes campeão do mundo. E tem algumas causas muito válidas, não é nada hipócrita. Não faz aquilo para ter reconhecimento nem ganhar mais fãs. Faz porque quer. Quando ele vai para a bancada recolher o lixo [como aconteceu no Grande Prémio do Reino Unido], ele não diz que o vai fazer. Não publica isso, houve alguém que reparou e fez a notícia. Entre outras coisas. É defensor do fim das garrafas de plástico no Paddock, nós na Aston Martin já praticamente não temos por iniciativa dele. Gosto muito dele, já achava que ele era um porreiro e que tinha muito sentido de humor e ainda fiquei mais surpreendido quando comecei a conviver com ele. É um apaixonado por corridas, automóveis, gosta de muitas coisas relacionadas com o desporto. É um de nós, os apaixonados pelo desporto automóvel. E é um gajo muito normal, além de ser um extraordinário piloto e uma pessoa ótima. Pelo que vi é um exemplo para todos, e espero que quando termine a carreira de piloto possa ter uma influência maior no desporto. Seria uma influência muito boa para melhorar a Fórmula 1 e o automobilismo em si.