* Enviado-especial do Maisfutebol aos Jogos Olímpicos
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Ao lado do túmulo jaz uma garrafa vazia. De cachaça. «Essa não é do Mané, não». Carlos, o coveiro, guarda almas e restos mortais no Cemitério de Raiz da Serra. Ri com a expressão incrédula do Maisfutebol e brinca com o sacrilégio.

Há poeira, jazigos abandonados ao deus dará, estamos num quadro pós-apocalíptico. «Ontem veio uma mulher fazer um ritual de umbanda [outra religião], bebeu a cachaça, fumou dois charutos e isso ficou aí».

Ali, literalmente a dois passos, descansa em paz Mané Garrincha.

Não há ornamentos, não há flores. O silêncio perturba. «Vem cá pouca gente. Nem a família o visita. É muito raro». Nada bate certo neste eterno repouso do Anjo das Pernas Tortas. Nem a data do falecimento.

«Xi, pois é! Ele morreu em 1983, né? Não sei quem gravou 1985. Vou informar o responsável».

O túmulo de Garrincha (com um erro na data de falecimento)

Garrincha, a Alegria do Povo, partilha a sepultura com um menino falecido aos dez anos, Jorge Roconisky, - «era sobrinho, morreu atropelado» - e o perfeito anonimato incomoda.

Um dos maiores génios do futebol mundial, artista de reportório inigualável, bicampeão mundial em 1958 e 1962, levado para o Além na agonia de uma cirrose hepática, 49 anos apenas.

«Isto é túmulo de indigente, né?», pergunta Carlos, o coveiro. «Eu até vou dar uma pintadinha aqui com uma tinta branca».

Garrincha, uma garrafa de cachaça, dois charutos e vista privilegiada para o campinho do União da Serra, vizinho do cemitério. O enquadramento tem tanto de glorioso como de perturbador.

Um relvado de futebol ao lado da última morada de Mané

Rua Conde de Avelar, número 7: não há que enganar

Saímos de Raiz da Serra à procura de Pau Grande. Não há uma única indicação, memorial ou simples placa a erguer o nome do mais famoso filho da terra. Não há, aliás, nada do género nos 50 quilómetros feitos entre o Rio de Janeiro e esta aldeia serrana.

Procuramos a Rua Conde de Avelar, número 7. Claro, tinha de ser o número 7. Na principal rua da terrinha de Mané, casas e lojinhas acotovelam-se de um lado. Do outro, o pequeno Estádio Mané Garrincha, casa do Esporte Clube Pau Grande.

O pequeno estádio de Pau Grande

À porta, dois homens em calções, meia idade, partilham uma cerveja. «Bom dia, para casa do Mané Garrincha?»

«Para qual delas, patrão? Ele nasceu em minha casa. Bom dia, Rodrigo, sobrinho do Mané».

A cena repete-se ao longo da manhã do Maisfutebol em Pau Grande. Todos, de uma ou de outra forma, têm um laço familiar com o Anjo das Pernas Tortas. Garrincha reconheceu 14 filhos e a árvore genealógica descontrolou-se.

Minutos depois conhecemos Júlia, tetraneta de Mané. Desistimos, nesse momento, de perceber por onde correm o sangue e o ADN da Estrela Solitária, nome sagrado do Botafogo.

Viramos à esquerda, numa rua estreitinha, e lá está ela: amarela, pequena e degradada, a casa de Garrincha.

«Estado, CBF e Botafogo: ninguém nos dá nada»

Aleksandra Mário, a neta mais velha de Mané Garrincha, abre-nos a porta. «Por favor, entre. O senhor está precisamente no lugar onde vi o meu avô pela última vez».

Garrincha viveu nesta casa com Nair, primeira mulher e mãe de Aleksandra. «Foi ainda antes de ele ir para o Rio e se envolver com a Elza [soares, cantora]. Veio cá visitar-nos antes de morrer, um mês antes. Estava cansado e sentou-se aí nesse muro. Os vizinhos vieram cá, viram-no inchado e amarelo. Percebemos que ele estava muito doente».

Com Aleksandra vive Leonardo, o marido, e o filho José Mário. Bisneto de Mané Garrincha. «Tem jeito para o futebol».

O muro onde Garrincha se sentou pouco antes de morrer

Há muitas perguntas para fazer. Onde está o Museu Mané Garrincha, de que nos tinham falado? O que tem feito a Prefeitura de Pau Grande para preservar o nome do venerável filho da terra?

«Pouco. Esta casa, por exemplo, foi oferecida ao meu avô em 1962, depois da Copa do Mundo, pelos donos da fábrica onde ele trabalhou. Era dele, da nossa família, e recentemente fui obrigada a comprá-la. Porquê? Não havia papéis, foi tudo apalavrado, e queriam tirar-nos o imóvel».

Com Garrincha era assim. Quanto menos papelada, melhor. Talvez seja essa a explicação para a inexistência de um museu, por mais pequeno que seja, em Pau Grande.

«Tivemos uma pequena sala aberta ao público. Com medalhas, fotos, troféus. Tivemos de fechá-la depois de uma tempestade. Precisamos de dinheiro para recuperá-la. O Estado, a CBF, o Botafogo, ninguém nos dá nada. Quer ir vê-la?»

Sim, claro.

«Tenho muitas saudades do Mané»

Em período de Jogos Olímpicos, e com o Rio a duas horas de distância, é assustador o alheamento destas gentes em relação à prova. Mané Garrincha não entra no torneio. «Há uns tempos disseram-nos que a tocha olímpica passaria por aqui, mas não».

Visitamos o pequeno acervo de Mané. Desorganizado, pequeno, mas com pérolas que na Europa seriam valiosíssimas. O paraíso de coleccionadores.

«A fama deu cabo dele. Escolheu ser alcoólatra para não ter de enfrentar a realidade. Nos últimos meses de vida foi oito vezes internado. Nunca quis saber de dinheiro».

Na rua passa Swing, velho camarada de copos e peladinhas. «O Mané? Foi feliz do jeito que quis. O futebol não era trabalho, era diversão. Quando vinha a Pau Grande, o primeiro sítio onde ia era ali ao botequim na esquina. Adorava pagar uns copos aos amigos. Tenho muitas saudades do Mané».

A vida passa devagar em Pau Grande. Um pequeno gato dorme na soleira da porta, protegido pela expressão risonha de Garrincha desenhada na parede. Despedimo-nos da neta, olhamos uma última vez a casa amarela, sentimos a pequenez e o esquecimento a que o eterno camisa 7 foi votado. Como se fosse nosso.

«Olha, moço, só lhe peço uma coisa: escreva bem sobre o meu avô, por favor».

Imagens do génio no pequeno museu encerrado