Noventa minutos mais quatro de descontos em Caen, Gignac recebe a bola à entrada da área e faz o 2-1 para o Marselha. O avançado corre para o banco, faz menção de abraçar Marcelo Bielsa, mas o treinador empurra-o de volta para o campo. «Não percebi o que ele queria, não percebo francês», comentou o treinador argentino na sala de imprensa. Ainda não tinha acabado, acabou logo depois. Sétima vitória seguida, o Marselha é líder com cinco pontos de vantagem


«Houve gente a provocar-me no Twitter, a lembrar que uma vez dei uma palmada ao Elie Baup, agora és capaz de dar um abraço a El Loco? Tentei fazê-lo, mas foi porque estava com a adrenalina do momento», sorria Gignac no final.

É um instantâneo de uma equipa feliz, sob o comando de alguém especial. Marcelo Bielsa. El Loco foi a alcunha que se lhe colou, mas o argentino não encaixa nessa definição, dificilmente encaixa numa qualquer.

Bielsa encanta a França. Como antes conquistou corações em Espanha, ou na seleção do Chile ainda antes. E o Marselha está a cavalgar o efeito Bielsa, divulgando com frequência imagens de treinos e do balneário centradas no treinador. Como agora, no final da vitória sobre o Caen.


Caen 1-2 OM : la joie olympienne by olympiquedemarseille

Em Marselha Bielsa é Bielsa. Obsessivo, apaixonado, perfeccionista. Idealista, romântico. E desconcertante, muitas vezes.

Um ano depois de deixar o At. Bilbao, aos 59 anos, decidiu começar de novo, num campeonato que lhe era estranho, num desafio difícil. Treinar um clube de grande exigência, mas longe dos melhores tempos, num campeonato dominado nos últimos anos pelos milhões do PSG e também do Mónaco. O Marselha terminou no sexto lugar na época passada, falhou as competições europeias.

A chegada de Bielsa entusiasmou Marselha, mas as coisas não começaram logo a correr sobre rodas. Um empate e uma derrota a abrir o campeonato começaram a levantar questões. Bielsa continuou o seu trabalho e os resultados aconteceram. Desde 17 de agosto, nunca mais perdeu pontos.

Mas, como só Bielsa, também não deixou por dizer o que tinha para dizer. No início de setembro, depois do fecho do mercado, sentou-se na sala de imprensa, naquele seu jeito discreto, de olhos baixos, e assumiu que não tinha sido tido nem achado nas contratações. «Nenhum dos jogadores que veio para o Marselha foi iniciativa minha. Propus doze jogadores e nenhum se concretizou», atirou. A reação da assessora de imprensa diz tudo. 
E continuou a trabalhar. Muito. Os treinos de Bielsa são o coração do seu método, feitos de atenção minuciosa a todos os pormenores. A imprensa francesa, como antes dela a espanhola, ou a argentina, ou a chilena, publica por estes dias relatos dessas sessões, detalhando como todos os treinos são filmados, com enfoque individual na prestação de cada jogador, depois analisados e observados para correção de erros. Como faz treinos sem bola, para trabalhar movimentos e pressão, para que depois, em jogo, eles saiam «como um reflexo», conta a RMC, num trabalho que cita várias fontes do clube e do plantel, e relata ainda como os adjuntos de Bielsa, uma equipa de oito pessoas, veem nada menos que dez jogos de um adversário antes de cada confronto.

Em campo o Marselha é uma equipa à imagem de Bielsa, feita de pressão constante, recuperação rápida de bola, passe, mais pressão. Gignac, que renasceu com o novo treinador, resumia assim a ideia, ao LÉquipe: «Quando perdemos a bola recuperamo-la em dez segundos. Bielsa faz questão. Assim corremos menos, e corremos melhor. O pressing é intenso e difícil, mas é preciso fazê-lo para o bem da equipa.»

Gignac já tem nove golos esta época, mais de metade dos 16 que conseguiu em todo o campeonato na época passada, o seu melhor registo em cinco épocas no Marselha. Acaba de ser chamado de novo à seleção francesa, após longa ausências Bielsa fez de um plantel a que tinha sido colada uma imagem de desmotivado e desligado uma equipa coesa. Recuperou jogadores, lançou promessas. Como o médio Imbula, de apenas 22 anos, também de volta à seleção de Esperanças gaulesa.

Bielsa prepara tudo de forma obsessiva, mas depois é capaz de colocar tudo em causa, placidamente. «Bons treinos seguidos de maus jogos são maus treinos. O método utilizado não é relevante, o resultado é que é. Se o método é bom mas o resultado não, então é preciso encontrar outro método para melhorar os resultados», dizia em agosto, quando as coisas não estavam a correr bem.

E depois tem a capacidade de não se levar demasiado a sério. Pode escolher ver o jogo sentado na geleira da equipa, a beber café por um copo de plástico, e assim continuar impávido enquanto os jogadores festejam um golo.

Ou pode rir-se como uma criança feliz durante um treino:


Le grand éclat de rire de Marcelo Bielsa by olympiquedemarseille

Pode perder tempo a falar com adeptos, ou encontrar soluções fora da caixa para problemas práticos. Como em Guingamp, à quarta jornada. Na véspera do jogo, Bielsa precisava de um tradutor para a conferência de imprensa, uma vez que ainda não fala francês. Recorreu a um gerente de um hipermercado local, de origem espanhola, que nem queria acreditar no que lhe estava a acontecer.

Pode fazer uma conferência de imprensa lacónica, pode deixá-la prolongar-se a falar de tática, pode contar histórias. Como aquela que recordou ainda antes do jogo deste fim de semana, sobre a sua relação arrevezada com jornais e jornalistas. «Durante 16 anos Carlos Bilardo e César Luis Menotti estiveram à frente da seleção argentina, oito anos cada um. Eram formas opostas de ver futebol. Esses 16 anos corresponderam à minha formação. Na cidade onde vivia havia 10 ou 12 jornais. Na Argentina os senhores dos quiosques não gostam de ficar o dia todo dentro daquele espaço pequeno. Então eu ofereci-me a um deles para lhe tomar conta do quiosque, assim podia ler os jornais todos.»

Pode pôr tudo em causa, mesmo quando as coisas estão a correr bem. Assinou por duas épocas com o Marselha, mas há dias deixou em aberto não cumprir a segunda época. Logo se vê. Bielsa não se acomoda. Para não ir mais longe, recordemos Bilbau, quando deixou de aparecer nos treinos por causa dos atrasos nas obras do centro de estágios. De caminho assumiu que tinha agredido um empreiteiro e denunciou-se para que o homem pudesse processá-lo. 

Marselha fez crescer a legião de seguidores de Bielsa.


Fãs anónimos mas não só, ele é inspiração para muitos treinadores. Em março de 2012, na reta final da fantástica primeira época que fez em Bilbao, que terminou com a conquista da Taça do Rei e a presença na final da Liga Europa, Pep Guardiola fez-lhe este elogio: «Estamos perante o melhor treinador do mundo neste momento. Conseguiu em tão pouco tempo que os jogadores percebessem o seu modo de jogar e o pusessem em prática de forma tão fiel e honesta. Não interessa se estão a perder ou a ganhar por três, em casa ou fora, eles respeitam-no. Cada jogo do At. Bilbao é como um presente para os espectadores.» Na resposta, na sala de imprensa, Bielsa baixou os olhos: «Agradeço muito a Guardiola pelas suas palavras. Agradeço-lhe, é tudo o que posso dizer.»