Ter uma casa ou, no mínimo, um tecto, é fundamental - no futebol como na vida. Neste caso, um campo. Não existem campos perfeitos, nem jogadores que possam reclamar um campo como seu, tirando um ou outro praticante mais abastado capaz de plantar um relvado no quintal, mas há aqueles que se vão tornando nossos, tantas são as vezes que os pisamos.

Tal como os jogadores de snooker ou de matrecos (que saudades!) não gostam de jogar em mesas às quais não conheçam as inclinações e as manhas, também ao jogador de fim-de-semana convém dominar o piso onde põe os pés e esfola os joelhos e o dinheiro, a bem da qualidade de jogo e da própria estabilidade do grupo. Saber se a bola rola, se o taco prende no Verão ou escorrega no Inverno, se o sintético tem ou não areia, se há ou não balneários e bar, se o bar serve minis, se as minis são frescas… enfim, cada jogador e cada grupo sabe das suas prioridades e necessidades.

Há grupos que jogam no mesmo campo durante uma vida, grupos que vão saltitando de campo em campo e aqueles que se dissolvem precisamente quando têm de mudar de localização. Eu, que me passeei por dezenas deles ao longo das últimas duas décadas e meia, há muito que não tenho um terreno fixo. Gosto especialmente deste onde jogo há cerca de um ano, mas não o suficiente para reclamá-lo como meu ou apelidá-lo de casa.  

Na infância e adolescência (há meia dúzia de dias, portanto), quando os pavilhões eram uma raridade e os ringues um bem público e não um negócio, aí sim, tinha um campo, nas instalações da fábrica onde o meu pai trabalhava. Uma empresa têxtil com mais de mil empregados que, à semelhança de tantos outros edifícios do Vale do Ave, virou ruína, gigantes de cimento caídos às margens de um rio «mágico», tantas as vezes que mudava de cor. Incapazes de oferecer aos trabalhadores ordenados de sonho, construíram um ringue e uma piscina onde os filhos podiam fintar o tédio e o destino, pelo menos durante as tardes de Agosto. Entrava quem tivesse cartão. Quando me esquecia de levá-lo ou a minha fotografia se tornava irreconhecível, tantas as vezes que o deixava cair na água, enchia-me de coragem e dizia: «Sou filho do Alexandrino, o torneiro mecânico».

A dada altura a piscina fechou, mas alguém do nosso grupo do café foi falar com o senhor Virgílio, o feitor, e passámos a usar o campo todos os sábados. Juntávamo-nos no Avenida a seguir ao almoço e seguíamos em romaria, jovens e menos jovens, dezenas de homens a correr atrás da bola enquanto, em casa, as mulheres se escondiam atrás do aspirador. Chegámos a fazer três ou quatro equipas. Depois de algum tempo, acho que foram anos, não sei, deixámos de poder jogar lá. A piscina foi-se degradando, os mais velhos foram-se cansado. O café fechou. Mas abriu outro. E tudo voltou. Pelas 14h, 14h30, começávamos a contar as cabeças, alguém perguntava «onde vamos jogar?» e lá íamos nós, um, dois, três, quatro carros, em excursão, de aldeia em aldeia, à procura de um rinque.

Muita gente perguntava-se como é que a freguesia não tinha um rinque — só chegaria em 2009, já eu estava longe há mais de uma década —, a verdade que é a ausência de um terreno fixo tinha um encanto extra. Permitia-nos, ainda que de forma não consciente, cimentar a nossa amizade e explorar as fronteiras e idiossincrasias locais. Caso os campos estivessem ocupados, pedíamos ou desafiávamos a que jogassem connosco ou contra nós, duelos de «roda bota fora» que se prolongavam, invariavelmente, até ao pôr do sol.

Hoje que sou um homem e tudo menos saudosista — ao contrário do que estes textos possam dar a entender —, de vez em quando tenho vontade de agarrar nos meus colegas e irmos, também nós, de bairro em bairro, de rinque em rinque, à procura de um campo livre e ficar a jogar a noite toda. Não como se fosse sábado à tarde, ou como se tivéssemos 16 anos, mas assumindo precisamente as horas que são e idade que temos. Chegar a casa às sete da manhã como antes chegava às sete ou oito da tarde e dizer, sem receios ou justificações «sentem-se, meninas, o pequeno-almoço está na mesa», tal como a minha mãe dizia «anda filho, que o jantar está pronto».

«Jogador de fim-de-semana» é uma crónica literária de João Ferreira Oliveira, que escreve todas as segundas-feiras no Maisfutebol. O autor opta pelo Acordo Ortográfico antigo.