Na Alemanha, o futebol está a ser usado como meio de integração de refugiados na sociedade. Clubes e associações têm criado projetos e eventos para o efeito e os resultados começam a aparecer. O lado mais mediático, claro, é o daqueles que chegam ao profissionalismo, à Bundesliga.

Em Portugal, há quem faça idêntico, cuidando de quem precisa por cá, há mais de dez anos. O lado mais visível é, também, alguém que por lá passou e chegou ao futebol profissional. Melhor, ao Manchester United, que é como quem diz, a um dos maiores clubes do mundo no futebol.

Daniel (Coimbra), Francisco (Madeira), Igor (Gondomar), Ronaldo (Açores) e Fábio (Olhão) não conhecem o futuro, mas o presente leva-os até Manchester para disputarem o primeiro Europeu de Futebol de Rua, por onde andou Bebé, hoje no Eibar, depois de passagens por Old Trafford e Benfica, entre as mais sonantes.

A equipa que vai tentar vencer a prova foi apresentada nesta quarta-feira, no Estádio da Luz - a Fundação Benfica é um dos parceiros da CAIS no projeto – onde também realiza o estágio de preparação. É, desde logo, um tipo de futebol diferente. «Costumo dizer que o futsal é ténis e o futebol de rua é squash», atirou um dos selecionadores, Bruno Seco.

É diferente também no objetivo. Porque é pretexto para algo maior, «é o isco», conforme nos referiu o coordenador do projeto. Ainda assim, como qualquer futebolista, os de rua também querem taças e troféus.

A festa do Futebol de Rua em Beja (foto: Facebook Futebol de Rua)

A conferência de imprensa decorre e percebe-se que há um dos selecionados que se agita mais do que outros. Portugal foi quinto no Mundial de Futebol de Rua e quando alguém o recorda, uma camisola amarela agita-se e solta baixinho «queremos é o primeiro lugar».

Fábio é guarda-redes. E técnico de ar condicionado no Algarve, onde já foi campeão de futsal pelo Portimonense e venceu duas Supertaças, uma pelo clube já referenciado, outra pelo Sonâmbulos.

«Para jogar futebol estou sempre pronto», disse ao Maisfutebol, logo após a apresentação. «Para mim tem sido muito bom, a viver experiências novas. Vou levar grandes recordações, vou ser campeão da Europa e vão surgir mais oportunidades. Sei que posso crescer como pessoa», acrescentou, ambicioso.

Em cima: Franciso Seita (selecionador), Emanuel, Francisco, Fábio e Bruno Seco (selecionador); em baixo, Hélder Neto (CAIS), Ronaldo, Daniel, Igor e Gonçalo Santos (coordenador) - foto facebook Fundação Benfica

O lado pessoal é complicado de abordar. Só o facto de ali estarem indica que há uma vida de dificuldades, de desocupação do tempo.

O processo é este: da rua, do bairro, até à seleção. As entidades locais acolhem e apoiam, criam torneios e daí o mais comum é o promotor local criar uma seleção, a nível de distrito. Depois, como nas interassociações, jogam com outros selecionados regionais. Em 2016, a grande final foi em Beja.

Fábio, de Olhão no Algarve, sagrou-se campeão nacional e agora quer vencer em Inglaterra. No entanto, há uma coisa que adoraria fazer fora de campo - «ver Old Trafford!» - e outra que passasse do sonho à realidade: «Que chegassem e me dissessem: Tens 20 dias para vires treinar ao Manchester United

Fábio e a equipa do Algarve que se sagrou campeã nacional do futebol de rua (foto Futebol de Rua)

Essa ambição futebolística é, na maioria das vezes, aproveitada para o outro lado. Bruno Seco conhece muito bem o Futebol de Rua. É professor de desporto em Aveiro, numa IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social), as Florinhas do Vouga, e selecionador nacional desde 2011.

Ou seja, já lidou com muita gente e é-lhe mais fácil abordar as situações do que os próprios jogadores. «São pessoas com carências e conhecê-los enriquece-me, é uma aprendizagem mútua. O que acontece é que, muitas vezes, quando conseguem fazer algo no futebol, passamos isso para a vida regular. Se consegues alcançar o objetivo em campo, hás de conseguir fazer lá fora também.»

Nem sempre acontece, porém. «Lembro-me de um jogador que esteve preso oito anos, foi libertado e entrou no projeto do futebol de rua. Esteve um ano cá fora e depois voltou a ser preso, mas disse que a melhor experiência que alguma vez teve foi estar nesta seleção.» Talvez as sensações vividas ainda possam ajudar, por contraste com a situação corrente.

Bruno Seco considera que «não há obstáculos nenhuns» para trabalhar com estes atletas. «Por vezes, há personalidades mais vincadas, há quem pensa que é mau, mas fazemos ver que isso de ser mau nem sempre é assim», quer no campo, quer fora dele.

Na conversa com o técnico aproveita-se para perceber melhor, então, o que se passa dentro de linhas. «Encontramos jogadores muito bons tecnicamente, mas a nível tático nem por isso. Tivemos o melhor guarda-redes do último Mundial e, não digo num Benfica ou Sporting, mas creio que ele tem condições para defender numa equipa de nível no futsal. Claro que o campeonato de Futebol de Rua é diferente: são quatro para quatro e cada parte tem sete minutos. Costumo dizer que o futsal é ténis e o futebol de rua é squash.»

O Estado é um dos principais financiadores do projeto (A FIFA o outro) e está satisfeito com os resultados. Assessor da secretaria de Estado da Juventude e Desporto, Nuno Laurentino afirmou na conferência que este é «o projeto mais estruturante do Desporto para Todos», programa que tem como objetivo «a melhoria da condição física e psíquica, o desenvolvimento das relações sociais ou a obtenção de resultados na competição a todos os níveis».

Iniciado em 2004, já tocou cerca de dez mil pessoas, número avançado pelo coordenador do projeto, Gonçalo Santos.  

«Cerca de 90 por cento dos participantes são pessoas entre os 16 e os 24 anos. Homens são 88 por cento, mas o género feminino está a subir», acrescentou.

O máximo que se pode atingir no Futebol de Rua é chegar à seleção. Mas o trabalho não acaba aí. Há uma monitorização posterior, quer pelas organizações suporte da CAIS, quer por técnicos. E é neste número que a CAIS, o Estado e restantes parceiros se focam: «75 por cento ou reintegra a escola regular ou vocacional ou integra o mercado de trabalho.»

Para já, a seleção que vai a Manchester disputar o Europeu parece estar estável nesse aspeto: quatro estudam, dois trabalham. Todos querem o título.

E como 2016 ainda não acabou, até é bem possível que o tragam.