Geovanni continua a ter, aos 43 anos, um lugar guardado no coração dos benfiquistas: afinal de contas, o extremo brasileiro fez parte da equipa, orientada por Giovanni Trapattoni, que resgatou o título de campeão após onze anos de seca.
A viver em Belo Horizonte, após colocar um ponto final na carreira, o brasileiro conversou com o Maisfutebol e contou que continuar a viajar frequentemente a Lisboa, pelo menos uma vez por ano, aproveitando para dar um salto a Espanha.
Falou das amizades que deixou em Portugal, da cidadania espanhola, dos golos em Alvalade e ao Man. United como os mais especiais da carreira e da amizade com Luisão, que até aconselhou ao Benfica quando o central ainda era um miúdo.
Também falou do fracasso em Barcelona, que pagou 21 milhões de euros para fazer dele o substituto de Figo, e da época que passou no Manchester City com Eriksson, naquele que considera ter sido o início da grande equipa de hoje em dia.
Que memórias guarda do Benfica e de Portugal?
Muitas, felizmente. O Benfica é um clube muito especial e eu tive o prazer de dar uma importante contribuição para a sua enorme história: ia completar onze anos sem títulos e nós fomos responsáveis por aquela façanha. O Benfica era um gigante adormecido. Naquele ano fomos campeões e daí para cá a história do clube foi completamente alterada.
Ainda recebe muitos contactos de benfiquistas?
Sim, sim. Aliás, frequentemente vou a Lisboa, pelo menos uma vez por ano. Ainda aí estive há pouco tempo e consigo sempre perceber o carinho que as pessoas continuam a ter por mim. Como costumo dizer, a história ninguém apaga e o que eu fiz no Benfica está nos livros.
Sente que será para sempre um membro da família benfiquista?
Sem dúvida. Em quatro anos, ganhei três títulos importantes: o campeonato que o Benfica não ganhava há dez anos, a Taça de Portugal que não ganhava há oito anos e a Supertaça que não ganhava há dezasseis anos. É demasiado tempo para um clube grande como Benfica ficar sem ganhar. Mas eu ganhei isso e fui feliz aí. Por isso Lisboa é uma cidade que eu amo, não só pelo clube, mas também pela amizade dos portugueses e pelo carinho dos antigos companheiros. Foram quatro anos que me marcaram muito. A mim e à minha família.
Mantém contacto com esses antigos companheiros?
Que ainda estejam no Benfica, só o Luisão, que é o único do meu tempo. Mas comunico-me muitas vezes com o Ricardo Rocha, o Armando Sá, o Cristiano, o enfermeiro Duarte Pinto, que também ainda está no Benfica. Da última vez fui jantar a casa do João Coimbra, que é um grande amigo, por exemplo. Jantei com o pai deles, o senhor Carlos, com a mãe e a família.
O Geovanni até cresceu com o Luisão no Cruzeiro, certo?
Não diria que crescemos, mas jogámos juntos, sim. Eu subi à equipa principal em 97, com 17 anos, e o Luisão chegou em 2000 vindo do Juventus, de São Paulo. Aí estivemos praticamente dois anos juntos. Depois fui para o Barcelona, segui para o Benfica e no ano a seguir o Luisão chega também ao Benfica. Curiosamente ele jogou também com dois sobrinhos meus, o Wendel, que esteve muitos anos no Bordéus, e o Cristian.
No fundo o Geovanni é que o recebeu nos dois clubes que ele teve ao longo da carreira.
É verdade. O Luisão é um irmão que o futebol me deu. No Cruzeiro estávamos sempre juntos, no Benfica éramos colegas de quarto, agora imagina... tive de aguentar o gigante quase quatro anos. Por isso construímos uma amizade muito forte, saíamos muitas vezes juntos e partilhámos um tempo muito especial para mim. É um dos grandes amigos que fiz no futebol.
O Geovanni até aconselhou o Camacho e o Luís Filipe Vieira a contratá-lo, não foi?
É verdade, dei a minha opinião e não me enganei. Foram quinze anos, se não estou em erro. Quinze anos é uma vida, não é? Por isso ele é um dos maiores ídolos do Benfica. Não só pelo número de jogos e pelos títulos, mas também pela dedicação ao clube. Ele é um homem que respira Benfica, tem uma liderança muito forte e fico feliz que esteja a ser bem tratado.
Quando chegou ajudou-o muito?
Sim, tinha de ser, não é? Eu sabia das dificuldades que ele ia encontrar. Tinha passado dois anos no Barcelona, tinha seis meses em Portugal e estava mais adaptado ao futebol europeu, no qual os defesas jogam sempre com uma linha alta e ficam muito expostos. No Brasil antigamente os defesas jogavam na sobra, agora já não é tanto assim, mas por isso eu sabia que ele ia ter dificuldades no início. Mas também sabia que ia ser uma questão de tempo, porque a qualidade estava lá: muito bom no posicionamento, nas bolas aéreas e que sabia sair a jogar. Era uma questão de adaptação e ele adaptou-se até mais rápido do que eu esperava. Ao fim de seis meses ou oito meses ele já estava perfeitamente adaptado.
Qual foi o melhor momento da sua passagem pelo Benfica: o golo ao Sporting ou ao Manchester United na Champions?
Na verdade, o golo ao Sporting em Alvalade, praticamente no fim do jogo, deu-nos a vitória que nos apurou para a Liga dos Campeões. Foi um momento muito especial, sem dúvida. Mas num jogo da Taça de Portugal, em que empatámos 3-3 com o Sporting em casa, eu também fiz dois golos. O golo ao Manchester United foi um grande golo, de cabeça, e ajudou-nos a vencer em casa um gigante europeu, que tinha Ronaldo, Rooney, Giggs, Van Nistelrooy. E depois também houve um golo ao FC Porto, lá em casa deles, no ano em que fomos campeões, que nos permitiu empatar. Acho que o Benfica não empatava lá há muitos anos.
O que só confirma que os adeptos tinham razão quando diziam que o Geovanni aparecia mais nos momentos especiais.
É, principalmente nos clássicos eu gostava de deixar a minha marca, vamos dizer assim.
Mas de todos esses momentos, qual foi o mais especial?
[Pausa] Eu acho que fico com o golo contra... É difícil. Entre o golo ao Sporting em Alvalade e o golo ao Manchester United não consigo escolher.
O que não esqueceu dos tempos passados no Benfica?
É amizade das pessoas, aquela amizade que todos nós tínhamos no clube. O roupeiro Zé Luís, que já faleceu, e o filho dele Paulo, por exemplo, parece que sentiam a minha falta e quando chegava de manhã cedo ao parque de estacionamento já lá estavam à minha espera. Aí entrávamos, íamos tomar café, falávamos do Benfica, da vida, de tudo. Outra vezes pegava neles e íamos almoçar. Esses são os momentos que nunca esqueci, porque são os momentos de verdadeira alegria. Essa amizade com eles, com os colegas, com as famílias, so sempre o mais importante, porque significam que estamos a aproveitar a vida.
Porque é que um ano depois de ser campeão deixou o Benfica e voltou ao Brasil?
Inicialmente eu queria ficar. Tinha mais um ano de contrato e estava a negociar para renovar por mais três anos. Mas então pedi para deixar a renovação para a última época e, nesse espaço, aconteceram umas coisas que me fizeram querer voltar ao Brasil. Falei com o Benfica: Vocês libertam-me para voltar e eu abro mão do ano de contrato que ainda tenho. O Benfica não queria, começou uma luta, mas aí pedi mesmo: Eu quero ir embora, por favor, eu quero ir para o Brasil. Eu tinha perdido a minha mãe quando já estava em Portugal, um ano e meio depois perdi o meu pai, e aí fiquei com saudade. Da minha casa, da minha terra, da minha gente.
Um ano depois, no entanto, voltou à Europa...
Sim, o Cruzeiro deu-me três anos de contrato, mas só fiquei um. Depois realizei meu sonho de jogar na Liga Inglesa. Mas o Benfica vai estar sempre no meu coração. A minha esposa ama Lisboa, um dos meus filhos nasceu em Portugal e eu agradeço por tudo que que eu vivi nesse país fantástico.
Como é que foi para si transferir-se tão novo para um gigante como o Barcelona?
Vestir a camisola do Barcelona é o sonho de todos os jogadores, não é? Mas eu creio que fiz o caminho inverso ao que devia ter feito. Pela experiência que ganhei e pela maturidade que hoje tenho percebo que devia ter ido primeiro para o Benfica e depois para o Barcelona. Aí a adaptação ia ser mas fácil, falando o mesmo idioma e tendo uma cultura mais próxima da brasileira. Mesmo a habituação ao estilo de jogo europeu ia ser mais simples.
Sente que chegou demasiado cedo ao Barcelona?
É verdade. Eu tinha 21 anos e expetativa em torno da minha contratação era enorme: estava muito bem no Brasil e tinha acabado de ser convocado para seleção pelo Scolari, que um ano mais tarde seria campeã do mundo. Mas enfim, hoje sinto-me um jogador realizado porque tive a oportunidade de jogar duas épocas no Barcelona, ao lado de grandes estrelas como Rivaldo, Xavi, Iniesta, Riquelme, Overmars, Kluivert, Luís Enrique, Saviola, enfim.
Foi penalizado por lhe exigirem que fosse o substituto de um ícone como Luís Figo?
Pois, mas olha só: eu nunca tinha jogado na posição do Figo. No Brasil jogava como segundo avançado, eles adaptaram-me a extremo e eu tive de aprender tudo. A verdade é que aprendi, e depois quando fui para o Benfica joguei sempre nessa função. Mas quando cheguei a Barcelona foi muita coisa nova ao mesmo tempo.
Além disso, aquele período pós-Figo foi muito complicado...
Muito, muito complicado. O Figo foi um dos grandes jogadores daquela época, talvez um dos melhores extremos da história, e substituir um Luís Figo ia ser difícil para qualquer jogador. Mesmo assim chegámos às meias-finais da Liga dos Campeões e fomos eliminados pelo Real Madrid, que venceu a final frente ao Bayer Leverkusen. Perdemos em casa 2-0 e empatámos no Bernabéu. Se tivéssemos passado aquela eliminatória e chegado à final, talvez a minha história tivesse sido diferente. O Barcelona não era campeão europeu há dez anos e fizemos uma grande participação na Liga dos Campeões. Infelizmente batemos na trave, mas é assim.
Ainda lhe pesa que as coisas no Barcelona não tenham corrido bem após ter sido uma aposta tão grande?
Não, nada. Acima de tudo tive um enorme prazer em jogar num clube assim e por ter aprendido tanto. São coisas que a gente leva para vida toda. O Barcelona foi escola para mim, não só o clube, mas a cidade, as pessoas, a cultura. Ainda hoje estou muito agradecido a Espanha, até porque tenho passaporte espanhol e com ele pude realizar o meu sonho de jogar em Inglaterra.
Como é que conseguiu o passaporte espanhol?
Por causa do tempo que vivi em Espanha, dos impostos que pague e de tudo isso, dei entrada com o pedido e consegui o passaporte espanhol em 2007. Foi um momento muito especial para mim. Por isso a Espanha é um país que está no meu coração, sempre que viajo para a Europa também visito Barcelona e fico lá uns dias. Estou muito grato a Deus por tudo o que fez na minha vida, pela minha história, os países onde morei, os clubes em que joguei. Sou um privilegiado pela vida que construí no futebol.
Conheceu Espanha, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos...
E durante uma grande parte da minha carreira, a melhor parte, na verdade, eu só joguei em grandes clubes. Cruzeiro, Barcelona, Benfica, Manchester City.
No Manchester City foi treinado por um ícone chamado Sven-Goran Eriksson.
Foi ele que me levou para lá. Na verdade, o grande Manchester City começou ali, com o Eriksson, e foi um privilégio fazer parte dessa história.
Ele ainda falava português?
Sim, falava. Mas connosco comunicava sobretudo em espanhol. Do Eriksson só tenho grandes coisas a dizer, foi uma grande pessoa e ajudou-me muito também. O futebol inglês é um sonho.
Para um brasileiro também é um sonho?
Claro. O país é muito frio, mas as bancadas são sempre muito quentes. O que me chamou mais atenção foi o fim do ano, quando o futebol pára em todo o mundo. Eles jogam sempre. Estava habituado a ir de férias a 22 de dezembro e só voltar a 2 de janeiro, mas ali jogava a 25, a 26, a 1 de janeiro, e com os estádios sempre cheios. Para além disso a família gostou muito de Inglaterra, hoje os meus filhos são fluentes em inglês, por isso foi uma bênção.
O que é que o Geovanni faz hoje?
Hoje sou empresário, represento jogadores juntamente com o Cléber Monteiro, que jogou oito anos no Nacional da Madeira, e é um grande amigo que tenho desde 2014. Estou muito feliz com a minha vida, até porque sou pastor aqui em Belo Horizonte. Há dez anos que parei de jogar, mas estou adaptado à minha nova vida e tenho essa ligação forte com a Igreja Evangélica.
Essa ligação já existia em Portugal?
Começou quando fui jogar para Espanha e em Portugal desenvolveu-se. Ia muitas vezes à igreja e os pastores ajudavam-me muito. Foram uns pais para mim.
Mas já era pastor em Portugal?
Não. Eu já tinha sido ungido e seis meses depois de sair de Portugal fui ordenado pastor. Acho que foi um chamamento de Deus para a minha vida. Deus direcionou-me para cuidar de pessoas e a minha alegria é hoje cuidar da minha família e cuidar também daquelas pessoas que Deus coloca nas minhas mãos. Estou muito feliz, muito feliz. E grato por Deus me ter dado essa tarefa.