A viagem do «dragão» teimoso ao limite do sofrimento

Está completo o trevo de ouro do futebol português. Depois de três Taças dos Campeões e uma Taça das Taças, a Taça UEFA já tem, também, uma equipa lusa no quadro de honra. Em Sevilha, cidade de paixões e drama por excelência, o F.C. Porto foi capaz de ir ao limite extremo do sofrimento para, após 120 minutos de loucura e emoção em doses bárbaras, derrotar o Celtic por 3-2 e conquistar o seu segundo troféu europeu.

Coragem, força e talento foram por esta ordem os argumentos necessários para um triunfo épico, tornado maior pela tremenda demonstração de capacidade do Celtic, e por um ambiente electrizante, justo corolário para uma festa em crescendo, que começou nas ruas de Sevilha há vários dias.

Tanto, tanto, tanto azar!

Simplesmente inacreditável o encadeamento de contrariedades que forçaram o novo campeão nacional a encontrar dentro de si o que, pela lei da lógica, já não podia ter. Aos nove minutos, o F.C. Porto já sofrera dois tremendos rombos de sorte. O primeiro, ainda antes do jogo começar, com a indisponibilidade de Jankauskas, que privava Mourinho de uma importante opção de ataque. O segundo, à passagem dos 6 minutos, quando, depois de um início francamente bom dos portistas, Costinha ficou caído no relvado a contorcer-se com dores musculares.

Mourinho não perdeu tempo a lamentar-se e respondeu rápido, lançando Ricardo Costa para lateral-direito e passando Paulo Ferreira para o meio-campo. Depois de alguns instantes de adaptação, a equipa reagiu bem, mantendo o domínio a meio-campo e a pressão sobre a pouco ágil defesa do Celtic, que quando ameaçada tinha grandes problemas para saber o que fazer com a bola.

Até aos 20 minutos, o azar não deixara marcas no F.C. Porto, indiscutivelmente melhor em todos os aspectos e único a conseguir chegar perto da baliza. Mas nesta altura da época não era possível manter uma disponibilidade física tão grande durante todo o tempo, e o Celtic conseguiu sacudir a pressão. Larsson, fatalmente muito recuado, deu os primeiros sinais para que o público escocês pudesse acordar e chamar seu, por momentos, ao estádio Olímpico da Cartuja.

Dragão reencontra-se por cinco minutos

Mas o empolgamento não durou muito. O jogo caiu bastante, com sucessivos maus passes a porem a nu o indecente estado do relvado. O Celtic, libertando-se do colete de forças, não soube dar o passo seguinte e mandar declaradamente nos acontecimentos. Foram os 20 minutos mais aborrecidos e silenciosos de há muitos dias a esta parte, em Sevilha, apenas salpicados com uma meia oportunidade de Deco (defesa fácil de Douglas, aos 33 minutos) e de uma resposta imediata do Celtic, com Sutton a não chegar por muito pouco a um cruzamento de Agathe.

Parecia que o intervalo ia chegar sem novidades, mas Deco, que tinha sido o principal responsável pelos melhores lances portistas, voltou a puxar dos galões e alimentou cinco minutos de alto nível dos dragões que mesmo à beira do intervalo desbloquearam o duplo impasse (o seu próprio e o do jogo), com um golo de recarga do até aí discreto Derlei. Na origem do lance, mais uma vez Deco, a descobrir Alenitchev na esquerda com um passe iluminado, antes da defesa incompleta de Douglas.

Porta aberta para a loucura

Como quem fura uma barragem de emoções, o golo de Derlei provocou uma explosão de irracionalidade num jogo até aí previsível. Parecia que o F.C. Porto tinha recuperado a confiança - e Baía quis ilustrá-lo, ao alinhar na brincadeira com um adepto britânico que não teve medo de exibir em público as suas insuficiências e invadiu o campo como Deus o pôs ao mundo, só que em mais feio, e com uma bola.

Parecia, por outro lado, que o Celtic tinha perdido os nervos com o golo ao cair do pano - uma cena bem feia no túnel dos vestiários, no regresso à cabina, era a ilustração dessa aparência, que o recomeço do jogo desmentiu.

O F.C. Porto nem teve tempo de saborear a vantagem e gerir a posse de bola, como as circunstâncias aconselhavam: um cruzamento de Agathe na direita encontrou Larsson emboscado ao segundo poste, e o sueco, saltando mais do que Ricardo Costa, cumpriu com requinte as ténues ameaças que deixara no primeiro tempo, cabeceando fora do alcance de Baía.

Tudo voltava ao início, menos o ascendente psicológico, que agora estava do lado escocês. O F.C. Porto ameaçava ficar estrangulado pelo abraço de urso (nada subtil, mas muito poderoso) do Celtic, mas Deco, outra vez, encontrou uma saída genial para a crise, cozinhando em lume brando a defesa do Celtic antes de oferecer um passe com dedicatória a Alenitchev (soberbo!), que concluiu com classe (54 m).

Pareceu xeque-mate, mas era ilusão de óptica. Os que não acreditam que a história se repete devem ter mudado de ideias ao ver, dois minutos depois, após um canto na direita, o pequeno Larsson voltar a cabecear, num latifúndio de espaço, sem hipóteses para Baía. Um tipo de golo primitivo, inapropriado para uma final europeia: Larsson estava tão à vontade, que nem deu para perceber quem era suposto marcá-lo.

À beira do KO

Tudo se tornava possível, até mesmo que Paulo Ferreira estivesse a um palmo de fazer o 3-2 no lance do recomeço. Mas o Celtic era agora mais forte, tão mais forte quanto o F.C. Porto o havia sido no primeiro tempo. Os portistas pareciam esgotados, abalados pelos golos infantis e, claro, pelo tremendo azar, que voltava a entrar em cena aos 70 minutos, quando Jorge Costa teve de pedir a substituição, por problemas musculares. Um defesa central, um trinco e um ponta-de-lança a menos. Não parecia faltar mais nada para quebrar a espinha vertebral do dragão.

Faltava ainda qualquer coisa, apesar de os últimos 20 minutos deixarem a ideia de que a equipa de Mourinho já não tinha como regressar das trevas. O prolongamento era o mal menor, perante um Celtic mais fresco e confiante, e foi com alívio que ele chegou, apesar de Alenitchev ter tido o golo nos pés no último lance dos 90 minutos.

Os jogadores estavam de rastos, o público também. O jogo tinha sido, a partir do primeiro golo, uma montanha russa de emoções e volte-faces. O que poderia acontecer daí em diante era imprevisível, mas os indícios eram quase todos contrários aos jogadores do F.C. Porto, que bem pediam ao seu público para levantar a voz, mas não conseguiam furar a muralha escocesa de pernas e som.

Deco e Derlei duplamente decisivos

Até aos cinco minutos do prolongamento, continuou a parecer que a má fortuna ia ser mais forte, mas Deco, com as forças a fugir-lhe, conseguiu lançar um contra-ataque que apanhou Derlei em velocidade. O avançado brasileiro, que depois do golo não voltara a brilhar, adiantou a bola e foi derrubado por Balde, que aos 80 minutos escapara à merecida expulsão por uma falta ainda mais dura sobre Deco. Desta vez Lubos Michel não perdoou o segundo amarelo, e num ápice a sorte do jogo teve uma nova mudança de sentido. Desta vez sem retorno.

A superioridade numérica do F.C. Porto permitiu-lhe equilibrar as operações - até aí era o Celtic quem parecia jogar com mais - e recuperar um último fôlego, que a entrada de Marco Ferreira para o lugar de Capucho veio acentuar.

Com Deco a puxar pelas últimas forças e a empurrar a equipa, veio o desequilíbrio final. Um passe de Maniche para Marco Ferreira, que esbarrou em Douglas, mas fez a bola sobrar para Derlei. Pela terceira e última vez, o número 11 das Antas voltava a ser decisivo, pela terceira e última vez, o F.C. Porto encontrava a saída para o labirinto de sofrimento, que acabou de ruir depois de intermináveis minutos de compensação, que ainda passaram pela expulsão sacrifical de Nuno Valente, num esforço terminal para travar o último assomo de reacção escocesa.

Arbitragem deficiente de Lubos Michel, com erros para os dois lados, os maiores dos quais um fora-de-jogo mal assinalado a Sutton, num lance muito perigoso, e a expulsão perdoada durante 15 minutos a Baldé.