Quando no meio da festa no relvado, logo após o apito final, Rafael Leão chamou Gonçalo Ramos para juntos fazerem o gesto de imitar uma pistola com os dedos para a câmara de televisão, não estava apenas a divertir-se com o colega.

Estava a dizer ao mundo que agora já não tem razões para não conhecer aquele festejo.

No fundo a apresentação planetária de Gonçalo Ramos foi apenas um pormenor, no meio daquele turbilhão de emoções que foi a goleada da Seleção, mas foi um pormenor delicioso.

Como são todos os nascimentos, aliás: esta noite nasceu uma estrela, e assistir a todo esse processo chega a ser fascinante. Sobretudo para nós, que já o conhecemos relativamente bem.

Olhar para Gonçalo Ramos a entrar em campo com a cara fechada dá por exemplo para perceber a tensão que sentia. Não era para menos: não só ia ser titular pela primeira vez num Mundial, como o fazia para substituir uma lenda viva como é Cristiano Ronaldo.

O peso sobre os ombros do miúdo de 21 anos era seguramente brutal. Percebeu-se quando aos dezasseis minutos abriu o marcador com um golaço, correu para a linha lateral, disparou para o ar e foi abraçado pelos colegas. Depois abriu o sorriso e deu a impressão que se tinha livrado de uma pedra de duzentos quilos que carregava sobre as costas.

Foi um alívio enorme que soltou Gonçalo Ramos para uma noite lendária e que lançou a Seleção Nacional para uma vitória inesquecível. Mas já lá vamos.

Antes disso é preciso dizer que a primeira imagem de Gonçalo Ramos no aquecimento mostrou-o a trocar impressões com Bruno Fernandes. Os dois pareciam combinar movimentos, num sinal de união da equipa: todos com as mesmas preocupações, a remar para o mesmo lado.

Gonçalo Ramos foi captado várias vezes pelas câmaras a falar para os colegas. No aquecimento e até no túnel de acesso ao relvado, antes de entrarem para o protocolo dos hinos.

Gritou, por exemplo, qualquer incentivo a Otávio que não se percebeu, e se calhar não era para perceber. Era só para contrariar a ansiedade.

Da residência do Seixal para o Mundial: uma parceria especial

Entretanto o jogo começou e o avançado correu como se não houvesse amanhã.

Aos dois minutos tentou fazer um movimento de rutura para receber o passe de Pepe, mas estava em fora de jogo. Aos quatro minutos tentou fazer outro movimento igual, mas William Carvalho preferiu não fazer o lançamento longo. Aos sete minutos fez um longo sprint para pressionar o guarda-redes. Pouco depois João Félix foi apanhado em contrapé ao tentar chegar a um cruzamento e foi Gonçalo Ramos quem correu como um louco a preencher o espaço que ficou vazio na esquerda do ataque, para impedir a saída da Suíça por aí.

Os primeiros minutos mostraram logo ao que vinha Gonçalo Ramos. Até podia acabar a noite sem ter a felicidade de fazer um golo, mas ninguém o poderia acusar de não ter dado tudo. Como faz sempre, aliás. Quem vê os jogos do Benfica sabe que não havia ali novidades.

Até que aos 16 minutos, recebeu dentro da área um passe de João Félix, desviou-se do central e atirou um míssil a 106 quilómetros por hora ao ângulo. Um golaço a lembrar o melhor Eusébio. Fabuloso.

A partir daí nada mais foi igual.

Gonçalo Ramos, como já se disse, ficou levezinho, solto, solto, solto, e pelo caminho soltou também João Félix. Curiosamente os dois foram colegas na residência do Seixal, sem nunca terem jogado juntos, e mostraram esta noite ter uma ligação especial também dentro de campo.

Senão, veja-se. 22 minutos: recebeu de João Félix, ganhou o ressalto e disparou à figura do guarda-redes. 27 minutos: recebeu de costas e tocou para Félix. 31 minutos: fugiu para a área, Félix tentou colocar-lhe a bola na cabeça e Schar cortou para canto in extremis. 34 minutos: tocou para João Félix, não chegou ao cruzamento do colega, foi recuperar a bola e sofreu falta.

A primeira parte, é verdade, foi muito de Gonçalo Ramos e João Félix. Se calhar até mais deste último, que com liberdade para surgir em vários espaços do terreno soltou o génio.

Pelo meio, refira-se, ainda houve mais Ramos. Primeiro quando recebeu de Raphael Guerreiro e ajeitou para o remate de Otávio, depois quando, num canto de Bruno Fernandes, fugiu do centro da área para o primeiro poste, arrastou um defesa e abriu espaço para Pepe entrar fulgurante de cabeça a fazer o segundo golo de Portugal.

Se calhar nem toda a gente vai reparar em Gonçalo Ramos nesse golo, mas o movimento dele foi fundamental para dar a Pepe a oportunidade de finalizar.

Antes do intervalo, aos 42 minutos, ainda foi isolado por Bruno Fernandes na cara de Sommer e rematou para defesa do guarda-redes.

À saída para o intervalo as câmaras procuraram o ponta de lança, acompanharam-no até ao balneário e o jovem parecia fazer um esforço para manter uma cara séria e não sorrir antes de tempo. É verdade que podia até ter feito mais golos, mas a primeira parte parecera um sonho.

Estão a ouvir? É o som da história a acontecer

Ora o segundo tempo, refira-se, não mudou nada nesta narrativa.

Gonçalo Ramos continuou a correr, a lutar, a pressionar, a compensar os colegas na cobertura do espaço quando era necessário e a ser decisivo. Aos 50 minutos, por exemplo, Diogo Dalot fugiu na direita, cruzou para o primeiro poste e o avançado marcou com o pé esquerdo, à ponta de lança, fazendo a bola passar por baixo das pernas de Sommer. Cinco minutos depois, João Félix saiu da pressão com talento, deu para Ramos e este assistiu Guerreiro para o terceiro golo.

Em menos de uma hora, o jogador do Benfica tinha feito dois golos e uma assistência. Notável.

Mas ainda havia mais. Aos 57 minutos, na sequência de um canto defensivo, deu um toque na bola que assistiu Akanji para o golo da Suíça. Enfim, estava tão inspirado que era peça fundamental em todos os golos: até nos golos do adversário.

Aos 65 minutos, porém, recebeu mais uma assistência de João Félix e tocou por cima do guarda-redes para completar o hat-trick. Pouco depois saiu para entrar Cristiano Ronaldo, mas a noite já era dele para sempre: três golos e uma assistência na estreia a titular num Mundial.

No fim Portugal soltou o grito e é impossível não gostar deste som ensurdecedor da história a acontecer à nossa frente.