*Enviado-especial ao Brasil

Sai-se do Rio de Janeiro pela Avenida Brasil, rumo a Norte.  Ao fim de 20 minutos, ao longe, começam a ver-se as montanhas do Parque Natural da Serra dos Órgãos, a caminho de Teresópolis. A paisagem muda, e a parte final do percurso é feita em estrada de montanha, perto das nuvens. Casais domingueiros estacionam nos miradouros, para selfies apaixonadas com o Rio muito lá ao longe e os picos do Dedo de Deus e da Agulha do Diabo bem perto. 

 

Rodeada de chalés, neblinas e do verde da Mata Atlântica, a Granja Comary, às portas de Teresópolis, parece um pedacinho da Suíça transportado para 90 quilómetros do Rio de Janeiro. Atual sede da CBF e quartel-general das concentrações da seleção brasileira desde 1987, tem um clima que desconta no mínimo uns bons dez graus à temperatura do Rio, lá em baixo. É difícil acreditar que foi aqui mesmo, e nas povoações vizinhas, que, em janeiro de 2011, por conta das cheias, um gigantesco deslizamento de terras causou mais de 900 mortos e 30 mil desalojados. 

 

Hoje, os traços da tragédia são pouco percetíveis ao olhar destreinado. Menos ainda na Granja, onde o ar serrano se mistura com o do dinheiro fresco. Paredes meias com um condomínio de moradias de luxo, o espaço da seleção nasceu da divisão de uma antiga fazenda, propriedade da família Guinle, que no início do século XX esteve ligada à fundação do Fluminense e do Copacabana Palace, entre outras instituições cariocas.

É aí que, diariamente, centenas de adeptos se aglomeram à volta da guarita do segurança, aguardando a pé firme pela oportunidade de ver os craques de perto. Ela quase nunca chega: os jogadores têm tudo aquilo de que precisam dentro do espaço, e o privilégio da proximidade está reservado aos jornalistas credenciados, a horas certas. Mas a persistência impressiona e o número também: no Brasil é quase tudo em grande, e chegam a ser mais de mil os torcedores amontados no ponto mais próximo dos campos que a polícia lhes permite ocupar. 

 

Órfãos de Neymar

Foi o caso neste domingo, em que se celebrava o 123º aniversário da cidade de Teresópolis e a BR-116, única estrada de acesso para quem vem do sul, estava transformada em duas longas filas, para subir e para descer. À entrada do complexo, uma equipa da TV Globo tentava dar vida ao direto, organizando o coro e a coreografia do êxito «Tá Escrito», do grupo Revelação, hino informal da «família Scolari», promovido pelo próprio selecionador, desde o início do Mundial.

Mas até essa alegria parece forçada: desde sexta-feira que a «família Scolari» se assemelha mais aos órfãos de Neymar. A baixa forçada do «Menino da Vila» passou a pairar como uma sombra negra sobre o sonho do hexa. E há mais uma prova que chega, à hora marcada, quando Willian e Bernard assumem os seus lugares na tenda de imprensa e se preparam para enfrentar os mais de cem jornalistas que subiram a serra – um número moderado, para os padrões habituais. 

 

Rodrigo Paiva, o assessor da CBF que é também uma celebridade – em especial depois de ser castigado pela FIFA com quatro jogos de suspensão, depois de alegadamente ter agredido Pinilla no intervalo do jogo com o Chile – assume o púlpito e comanda as operações. A escolha de Willian e Bernard, os mais prováveis substitutos de Neymar, para as declarações do dia não é inocente: a perda do número 10 é um golpe duríssimo, mas a dois dias da meia-final começa a ser altura de virar a página.

É o que Bernard tenta fazer durante os seus 15 minutos de exposição: das 15 perguntas que lhe são feitas, 12 incluem a palavra Neymar. Quase não se fala da Alemanha, apesar de, ao primeiro pretexto, o jogador se mostrar impressionado: «Tem uma qualidade incrível, tacticamente é das melhores que eu já vi. E nos mata-mata qualquer erro pode ser fatal», diz.

Bernard, que na definição de Scolari tem «alegria nas pernas», tenta injetar alegria nas respostas, mas as coisas não lhe saem com convicção: «Neymar é importante dentro e fora do campo, mas agora temos de ter tranqulidade e maturidade. Infelizmente, aconteceu a vontade de deus, e sabendo que a qualidade do futebol do Neymar vai fazer falta temos que passar por cima», diz, antes de admitir que não sabe qual é o plano B de uma seleção que apostou todas as fichas no camisa 10. «Ninguém esperava, nem adeptos, nem jogadores nem o professor, chegarmos nessa situação sem Neymar. Então isso não ficou definido, mas a obrigação de jogador é estar preparado, porque as oportunidades não avisam», diz.

Willian Amarildo, conhece?

As respostas andam em círculos, e não é difícil imaginar que o mesmo acontece com os cálculos de Scolari, dividido entre manter a estrutura desenhada para a peça principal, sem a ter, ou mudar drasticamente o desenho, assumindo que sem Neymar vai ter de ser outro Brasil. No dia a dia já é, admite Bernard: «É lógico que o grupo sentiu uma perda, não só pelo jogador mas pela pessoa, Neymar traz uma felicidade incrível ao grupo, sempre sorrindo e sempre passando mensagem positiva. E mesmo ontem, dentro da tristeza, ele passou-nos força total e energia positiva», garantiu o criativo do Shakhtar Donetsk.

Sai de cena Bernard, entra Willian, para os mesmos 15 minutos de perguntas, 12 dos quais dedicados a Neymar e ao peso da sua substituição. Uma questiona-o sobre se já pensou passar a chamar-se Willian Amarildo, em alusão ao substituto de Pelé no Mundial de 1962, que saiu da reserva para brilhar com golos decisivos. A pergunta é criativa, mas a resposta nem tanto: «Procuramos sempre estar prontos, se acontecer, seria incrível para mim», diz.

Alguém ensaia uma variante: sem Neymar, o Brasil deixa de ser favorito e tem menos pressão, certo? «Bom, Neymar faz a diferença e chama a responsabilidade. Sem ele é difícil, mas o grupo é forte. Temos jogadores que podem fazer a diferença como ele fazia, e continuar o sonho», diz, como quem recita uma oração.

Uma ideia reforçada quando, mais à frente, defende o papel de Fred, sobre quem, nas últimas duas semanas, incidiu quase toda a criatividade humorística dos brasileiros (exemplo avulso: «sem Neymar, sobra para os dois super-heróis do escrete, Hulk e o Homem Invisível»). Mas a conversa continua a girar em círculos cada vez mais apertados em redor de Neymar. A entrada de Zuñiga, por exemplo, que comentário merece aos jogadores? Vê-se que Willian mede bem as palavras quando ensaia a resposta: «É difícil dizer se foi maldade. Ele foi muito infeliz naquela entrada, mas acho que ele não pensaria que iria quebrar as costas de Neymar, ninguém pensaria uma maldade tão grande. Foi um lance desproporcional, mas agora é esquecer isso e pensar no mais importante.»

Isso: o mais importante é descobrir um Brasil com argumentos para lá de Neymar. É isso que a família Scolari se tem dedicado a treinar, nas poucas sessões que lhe restam até terça-feira. Com e sem Fred. Com e sem três centrais. Com e sem substituto direto para o craque que, dizem os mídia brasileiros, tenta por todos os meios clínicos uma cartada desesperada, que lhe permita jogar a final, caso o Brasil lá chegue. Vem à memória o sucedido com Diego Costa, na final da Champions, e percebe-se, ao falarmos de uma fissura numa vértebra, quanto de desespero e de fé há nesta busca de um milagre, que o próprio médico da CBF, José Luiz Runco, vem descartar horas mais tarde.

Willian vai-se embora no momento em que uma rajada mais forte faz abanar a estrutura da tenda de imprensa. «Tá um vento do apocalipse», desabafa um jornalista da Globo. Não é certo que esteja a falar do tempo ou da seleção.

Lá fora, na guarita do segurança, continua a alegria falsamente espontânea para o direto da Globo. «Tá escrito», e o coro canta o refrão: «Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé/Manda essa tristeza embora/Basta acreditar que um novo dia vai raiar/Sua hora vai chegar!». Chegará?