Hamse Muse é um jovem de 21 anos, que viajou com a família da Somália à procura de melhores condições de vida. Chegou ainda criança, com a mãe e quatro irmãos mais novos. O destino levou-os para a Guarda, onde se estabeleceram até hoje.

«A minha mãe veio a fugir à guerra na Somália, chegou com o estatuto de refugiada em 2005. Eu e o meu irmão mais novo ficámos com a minha avó, porque não podíamos vir. Quando recebemos o visto de entrada, viemos ter com ela a Lisboa.»

Hamse tinha na altura em que viajou para Lisboa 11 anos. Três anos depois, a família de cinco pessoas foi colocada pela Segurança Social na Guarda.

«O que nos disseram é que a vida em Lisboa é muito cara e era mais fácil se vivêssemos no interior. Quando cá chegámos, ficámos surpreendidos com as pessoas. Mesmo muito. São muito unidas e gostam de ajudar, há um grande sentido de comunidade.»

Durante sete anos a vida correu normalmente para Hamse Muse. Integrou-se bem, completou o ensino secundário e começou a estudar no Politécnico da Guarda.

«A integração não foi difícil. No início tivemos a dificuldade da língua, mas começámos a estudar, começámos a interagir com as pessoas e fomo-nos integrando.»

Até que há cerca de um mês, porém, o mundo dos cinco irmãos desabou.

A mãe faleceu de doença e a família ficou sem nenhum sustento. Hamse Muse sentiu-se então na necessidade de assegurar a sobrevivência dos irmãos. Arranjou emprego a servir às mesas para juntar ao apoio da Segurança Social que não chega para tudo.

«A responsabilidade agora passou para mim, eu ainda tenho o estatuto de refugiado e fiquei como o cabeça de família. O apoio que recebemos não chega para tudo, até porque temos de pagar o arrendamento e todas as despesas da casa», refere.

«Felizmente temos recebido muita ajuda. As pessoas da Guarda têm apoiado imenso a minha família. Dão-nos comida, roupa, tudo o que é preciso para os miúdos.»

A verdade é que comunidade do concelho da Guarda não conseguiu ficar indiferente ao drama de Hamse e desde então tem-se desdobrado em iniciativas.

Grupo de cidadãos uniu-se para financiar funeral da mãe

O próprio futebol tem tido um papel importante nesta fase difícil da vida do jovem.

«Logo na altura surgiu um movimento de um grupo de cidadãos da Guarda para ajudar no funeral, porque eles são muçulmanos e o corpo tinha de ser sepultado numa mesquita. Era preciso pagar o transporte para Lisboa e as pessoas juntaram-se para arranjar o dinheiro para isso», conta ao Maisfutebol Luís Alberto Tomé.

Refira-se que os cidadãos aqui mencionados são o Grupo de Emergência da Guarda, um grupo solidário que foi criado no início da pandemia por COVID-19, que conta com mais de 40 mil inscritos e que continua a realizar várias ações solidárias.

Em menos de uma hora recebeu cerca de 150 doações e angariou mais de 2500 euros. A onda de solidariedade foi tão grande que foi decidido não aceitar mais dinheiro: o valor da angariação pagou todas as despesas do funeral e ainda sobrou para os filhos.

Posteriormente, foi também feita uma recolha de roupa que foi um sucesso.

Ora Luís Alberto Tomé é o presidente do Grupo Desportivo Casal de Cinza, o pequeno clube dos distritais da Guarda em que joga Hamse Muse.

«Ele joga connosco há três anos. É um rapaz muito simples, muito brincalhão, toda a gente gosta muito dele. No primeiro jogo oferecemos-lhe o valor da receita da venda de rifas, que fazemos sempre nos jogos em casa», acrescenta.

«Mas, entretanto, fomos contactados por muita gente que queria ajudar e não podia ir ao jogo. Por isso acabámos por divulgar o NIB da conta do clube, para onde as pessoas começaram a fazer doações de dinheiro. Já juntámos mais de 700 euros, que agora lhe vamos entregar. É pouco, mas para aquela família é muito importante.»

Entretanto a ajuda veio até do adversário.

No último domingo, o Casal de Cinza recebeu o Sporting Clube de Mêda, um clube a cerca de 60 quilómetros da Guarda, que também disputa o campeonato distrital.

«Isto é um meio pequeno, todos nos conhecemos. Por isso tínhamos conhecimento da situação do Hamse, que perdeu a mãe e ficou com quatro irmãos mais novos para cuidar, incluindo três deles menores de idade e ainda a estudar no secundário. Falei com a equipa de seniores do nosso clube, para ver se podíamos fazer alguma coisa para ajudar», conta Nuno Dias, dirigente do Mêda e delegado ao jogo com o Casal de Cinza.

«Eles disseram logo que sim. Fizemos uma recolha de dinheiro entre todos os jogadores do plantel e no final do jogo entregamos-lhe esse dinheiro.»

Mêda diz que é preciso apoiar para cuidarmos uns dos outros

As iniciativas não vão, de resto, ficar por aqui.

Nuno Dias revela que, como o próximo jogo do Mêda é em casa, o clube conta também com a solidariedade dos seus adeptos para ajudar.

«Já estamos a preparar um cartaz para este domingo, que jogamos em casa, para quem quiser ajudar com roupa para as crianças. Vamos tentar juntar o máximo de roupa que conseguirmos e vamos também partilhar o NIB do Casal de Cinza, para onde todos podem dar os seus donativos para ajudar esta família.»

Por isso, e muito naturalmente, o plantel do Mêda recebeu do árbitro o cartão branco.

A verdade, no entanto, é que ajudar não é nada de novo para este clube dos Distritais da Guarda. As iniciativas de solidariedade no natal, por exemplo, também são tradição.

«Ainda na altura deste último Natal fizemos a semana solidária, em que pedíamos a quem fosse ao estádio para levar bens alimentares. Ao mesmo tempo deixámos um carrinho numa superfície comercial para as pessoas doarem alimentos para ajudarmos as pessoas mais necessitadas aqui da nossa região», conta Nuno Dias.

«Temos 130 atletas, todos aqui da zona, o que já é muito para um clube desta dimensão. Mas temos muito mais gente à nossa volta, porque por detrás de cada atleta há uma família. Todos juntos somos uma grande família e temos de olhar uns pelos outros. Temos de nos lembrar que se não fossem estas pessoas, o clube não existia.»

O Casal de Cinza, um clube de uma aldeia com menos de 500 habitantes a 13 quilómetros da Guarda, agradece toda a ajuda possível.

Até porque não lhe é fácil fazer muito mais.

«Já fizemos outras ações parecidas no passado, as pessoas normalmente aderem e ajudam. Mas estamos a falar de valores pequenos. Temos 200 sócios e normalmente estarão 100 pessoas nos jogos em casa. Somos um clube amador. Mas não é um amadorismo encapotado, é mesmo cem por cento amador. Ninguém ganha absolutamente nada: nem prémios, nem remuneração, nada, nada, nada. Os atletas vêm ter connosco, começam a treinar e jogam, mas apenas porque gostam.»

Foi o que aconteceu com Hamse Muse. Começou a jogar logo que chegou, no Guarda Unida ainda como iniciado, passou pelo Núcleo Desportivo e Social da Guarda nos juvenis e juniores, até que nos seniores foi à procura de clube fora da cidade: encontrou esse local no Casal de Cinza, ali a poucos quilómetros de casa.

Um pequeno clube de um campeonato com muito coração.

Hoje, e para além de disso, de dar a toda a gente que tem paixão pelo jogo um clube onde o fazer, o Casal de Cinza tem outro desígnio: ajudar cinco irmãos que ficaram sem rede.

Até porque para eles isto só faz sentido se cuidarmos dos nossos.

Nota: a pedido dos clubes, e para ajudar Hamse Muse, pode entrar em contacto com o Casal de Cinza ou com Mêda através do Facebook.