Héctor Bellerín, o mais recente reforço do Sporting, está em Portugal há três dias. Provavelmente, até já se pode ter cruzado com ele, mas não o reconheceu porque não lhe tirou a pinta de jogador. Provavelmente até o confundiu com um turista cool, uma personagem do ramo da moda, um jovem escritor ou com um fotógrafo profissional.
Se tiver sido esse o caso, não tirou, de todo, uma conclusão disparatada.
Na verdade, fora de um relvado, o jogador espanhol de 27 anos é tudo isso. E tem muito mais facetas invulgares, se assim podemos dizer, em comparação com o típico jogador de futebol.
Se fizermos uma pesquisa rápida sobre Bellerín na internet, encontramos fotografias do jogador a desfilar para a luxuosa marca Louis Vuitton, em Paris, ou mesmo fotografias que o próprio tirou com máquinas profissionais, algumas das quais vintage dos anos 80.
Não é à toa que Bellerín é considerado «um dos futebolistas com mais estilo do mundo».
«Fui criado entre bolas de futebol e máquinas de costura. A minha avó e o meu avô tinham uma pequena fábrica de roupa, a minha mãe trabalhava lá, então quando não havia pessoal para jogar futebol, davam-me 100 pesetas para varrer os fios no chão ou dar uma maõzinha», diz o jogador que chegou a co-desenhar os fatos sustentáveis que o plantel do Arsenal usou antes da final da Taça de Inglaterra, em 2020, enquanto recuperava de uma grave lesão.
Nesse período, ainda produziu uma sessão fotográfica com a equipa feminina do clube inglês. E não, Bellerín não aparecia nas fotografias: era mesmo o fotógrafo.
Como o mundo da moda ocupa boa parte da vida do jogador, tem um espaço considerável neste artigo.
Tem 15 milhões de euros na conta e só compra roupas em segunda mão
Bellerín expressa-se através do que veste. O defesa confessa que já foi «consumista», mas admite que deixou de comprar roupa de forma compulsiva. Já não gasta os rios de dinheiro que gastava nas marcas de luxo. De há uns tempos para cá, só adquire roupa em segunda mão, apesar de ter «mais de 15 milhões de euros na conta bancária e em património», como admitiu no programa espanhol La Resistencia.
Voltando à tal lesão no joelho esquerdo, que o afastou dos relvados quase um ano, esse momento levou-o fazer um documentário de nove episódios em que se revela como um jogador peculiar.
«Não se trata de sermos diferentes, trata-se de sermos nós mesmos. Não me importo com o que dizem sobre o que visto ou faço», afirma em todas as entrevistas que dá.
Os dez anos que passou em Londres, ao serviço do Arsenal, abriram-lhe a mente porque encontrou «um mundo mais livre do que em Espanha». «Ele está a quebrar o molde do futebolista típico», disse uma vez, a propósito disso mesmo, o antigo companheiro de equipa Rob Holding.
«Aos 20, 21 anos comecei a ter um interesse mais intenso por uma série de coisas, comecei a abrir-me, não queria ser aquele jogador que, no final da carreira, ou dá treinador ou não sabe o que fazer mais.»
Bellerín é quase viciado em aprender coisas novas, em explorar, em ler, em desenhar, em fotografar. Vai, com frequência, a livrarias de livros em segunda mão, exposições, museus ou galerias. Os restaurantes de luxo não são a sua praia. Quando há um mês, a revista GQ de Espanha o desafiou a escolher dez coisas sem as quais não podia viver, o agora jogador do Sporting mostrou uma agenda, na qual escreve reflexões que tem sobre a vida ou anota alguma ideia; um pequeno caderno que usa para desenhar; uma bolsa de lã feita à mão pela avó da namorada; um dos romances mais icónicos da escritora Isabel Allende: A casa de Espíritos; uma edição especial de uma câmara fotográfica analógica dos Jogos Olímpicos de inverno de 1980.
Por falar em Isabel Allende, o espanhol estabeleceu como projeto para este ano de 2023 só ler obras escritas por mulheres.
«Acho que um dia, quando me retirar, vou escrever um livro, mas ainda não sei sobre o quê», revelou.
Escolheu assinar pelo Betis depois de consultar uma aplicação de dados
Bellerín descreve-se como um «criativo, livre, fora da bolha». Até defende que os jogadores de futebol são as pessoas que «devem pagar mais impostos».
«Vivemos num mundo de capital, baseado em consumo, mas isso não nos leva a lado nenhum. Se já temos um carro, para que necessitamos de dez?», disse recentemente em entrevista ao diário ARA, da Catalunha.
Por falar em carros, já foi visto, várias vezes, a chegar ao treino do Barcelona a conduzir um SMART, e só conduz carros elétricos, em defesa de um mundo menos poluído.
«Ando muito de bicicleta, de metro, a pé. Dentro das possibilidades que tenho, faço o que posso.»
O lateral catalão viajou de Barcelona para Londres com 16 anos, e esteve 10 anos no Arsenal. Ao início, vivia com um amigo e colega em casa de uma família inglesa e rapidamente ganhou sotaque britânico. Há quem diga, em tom de brincadeira, que fala melhor inglês do que castelhano, ou até que é o não britânico com melhor sotaque britânico do mundo. É mais uma particularidade de um jogador de causas.
Não se define como um ativista, mas considera que em relação a temas como racismo ou homofobia o futebol «dá um passo à frente e dois atrás». «Se houver um jogador que é gay, tem de ser normal assumir. Não é fazer uma festa por isso. É algo que tem de ser normalizado, temos de viver as nossas vidas da forma mais feliz possível», defende.
Outras das paixões de Héctor Bellerín são as tecnologias. Foi através de uma aplicação de análises estatísticas, aliás, que o jogador encontrou o clube ideal para seguir a carreira após ter fechado o ciclo no Arsenal, em 2021.
Introduziu na aplicação as suas características como jogador, o tipo de treinador com o qual mais se identifica e a aplicação Big Data chegou à conclusão de que fazia match com o Bétis. O lateral acabou por assinar pelo clube de Sevilha e fazer uma grande época, conquistando a Taça do Rei.
Talvez tenha usado a mesma fórmula para escolher representar o Sporting nesta fase da carreira. (Ainda) não sabemos.
Aliviado por não ir ao Mundial do Qatar e não carregar com a culpa da morte de 6500 pessoas
Entretanto, Rúben Amorim, o treinador dos leões, já falou sobre a versão Bellerín fora dos relvados:
«Em relação à sua forma de estar na vida, quanto mais diferentes forem, às vezes é bom. Traz uma visão de tudo. Ele pode ser como quiser, mas dentro de campo terá de cumprir como os outros, e em jogo também. Há uma pessoa na nossa equipa técnica que o conhece muito bem».
Trata-se de Paulo Barreira, cientista de desporto, que trabalhou como fisioterapeuta do Arsenal e ajudou Bellerín na recuperação de uma grave lesão no joelho. São amigos e falaram antes de o espanhol assinar pelo Sporting.
Bellerín tem uma opinião fundamentada sobre vários temas sociais mesmo que esses temas se confundam com os seus sonhos. No ano passado, em novembro, recebeu o prémio de homem do ano da conceituada revista GQ, em Espanha, e fez um discurso marcante:
«Estou aqui com sentimentos contraditórios. Estar aqui significa não estar no Qatar, não estar na seleção. Não poder formar parte disso entristece-me. Mas uma parte de mim fica contente. Não sei se poderia desfrutar da carga de 6500 pessoas que morreram no processo. Pessoas de países como Bangladesh ou Paquistão, que procuravam uma vida digna para eles e para as suas famílias. No final o futebol é o reflexo da sociedade, da avareza, do egoísmo, não há limites.»
Durante o discurso, Bellerín não escondeu a emoção. Como também não disfarça a indignação quando comenta a guerra da Ucrânia.
«Custa-me ver que estamos mais interessados nesta guerra do que em outras. Não sei se é porque eles são mais parecidos connosco ou porque o conflito nos pode afetar mais diretamente economicamente, ou com os refugiados. A guerra na Palestina é completamente silenciada, ninguém fala sobre isso. Iémen, Iraque... o mesmo. Fazemos vista grossa», lamentou o defesa que também já abordou o tema no Twitter.
As redes sociais de Bellerín são uma mistura de vídeos a jogar futebol, que é afinal de contas a sua profissão, a desfilar, a pousar para revistas, a comentar o flagelo das alterações climáticas, ou a defender causas sociais.
«Eu sempre fui muito vocal, de expressar a minha opinião. Nós temos a oportunidade, com a visibilidade que temos, de gerar debate. A sociedade está muito polarizada hoje em dia.»
Aconselha a todos fazer terapia, tornou-se vegan por causa do ambiente e da saúde
O jogador já foi mais ativo do que é hoje no mundo da internet, e até já houve um período de seis meses em que não fez qualquer publicação. «Foi o melhor verão da minha vida, estive só a desfrutar desse tempo com a minha família, muitas vezes deixava o telemóvel em casa. Há pessoas que confundem a vida real com as que veem através de um telemóvel, submergidas numa mentira.»
Esse eclipse das redes sociais teve uma explicação... mental.
«Quando cheguei ao Arsenal, ninguém esperava nada de mim. Depois, comecei a jogar e entrei numa bolha de positividade, já era ‘o melhor lateral do campeonato inglês’ e tal. Comecei a ficar viciado naquele pensamento de ‘ui, que bom que sou’. Depois, quando as coisas começaram a correr pior, passei muito mal. Estive com um psicólogo do Arsenal durante vários anos, a falar desses temas, e percebi que ir à terapia era muito saudável.»
Um outro hábito que Bellerín mudou aos longos dos anos foi o da alimentação.
Há sete anos, abordou um nutricionista sobre a possibilidade de, sendo profissional de futebol, se tornar vegan. Esse clínico disse-lhe que «o homem precisa de carne» e, na altura, o jogador seguiu a indicação, mas, dois anos depois tudo mudou, após uma conversa com David Hay, pugilista britânico campeão mundial de pesos pesados.
«Sou vegan há cinco anos. Ao início queria só experimentar, depois comecei a perceber os benefícios que tinha no meu corpo. Depois fui sendo mais consciente de tudo o provoca o consumo de carne. Fui capaz de provar que ser vegan no mundo do futebol não era um problema e não tomei essa decisão não só pelo meio ambiente, mas também pela minha saúde.»
Uma decisão pessoal que estende aos negócios. Bellerín é o segundo maior acionista do Forest Green, que atua no terceiro escalão em Inglaterra, considerado o «clube mais verde do mundo do futebol» e o «primeiro clube de futebol neutro em carbono».
Joga num estádio feito quase inteiramente em madeira, onde só servem comida vegana. Os equipamentos são feitos com uma mistura de plástico com carvão de bambu e o relvado é completamente orgânico.
Em linha com esta postura, o jogador, há três anos, prometeu plantar 3000 árvores para cada vitória do Arsenal durante o resto da temporada. A iniciativa chegou às 58 mil árvores na Amazónia, graças ao apoio de outras instituições que depois se associaram.
Aos 27 anos, Bellerín mostra-se um homem livre, aberto, moderno, intelectual e um futebolista disruptivo, de constrastes. Mostra-se quem verdadeiramente é, sem olhar a estereótipos ou julgamentos da sociedade. Aprendeu, sobretudo nos dez anos em que viveu em Inglaterra, a ser mais transparente, mais altruísta e mais verdadeiro.
O que tem a dizer, diz, o que tem a fazer, faz.
Em Espanha, olham para o jogador como um ícone cultural e sexual. É seguido por mais de quatro milhões de pessoas no Instagram, visto como alguém capaz de influenciar uma legião de jovens e até colegas de equipa.
Borja Iglesias, avançado internacional espanhol e antigo companheiro de Bellerín no Bétis, já assumiu que pinta as unhas por influência do agora jogador do Sporting.
É bem provável que passe a ser um ícone no plantel do Sporting. Se não for pelo que faz em campo, é por tudo aquilo que está neste artigo. E há curiosidades de sobra para fazer um perfil extra sobre Héctor Bellerín.