A História de Um Jogo é uma rubrica do Maisfutebol. Escolhemos um dos encontros do fim-de-semana e partimos em busca de histórias e heróis de campeonatos passados. Às quinta-feiras.

«Por virtude da reforma a que se procedeu no Estatuto e Regulamentos da Federação, os Campeonatos e Ligas de Portugal passaram a designar-se, respetivamente, Campeonatos Nacionais e Taça de Portugal.»

1938, anos de mudanças abruptas no futebol português, consignadas no artigo 6º do relatório e contas da Federação Portuguesa de Futebol para aplicação na temporada de 1938/39. E assim nasce a ‘Prova Rainha’ do calendário nacional, o torneio onde o clube grande bate à porta dos emblemas mais modestos e onde a expressão ‘tomba gigantes’ pontua o seu máximo esplendor.

As três eliminatórias disputam-se em maio e junho de 1939, apenas três meses antes do eclodir oficial da II Grande Guerra Mundial – 1 de setembro. 14 clubes participantes, goleadas jugulares, reviravoltas inverosímeis, os primeiros passos de um futebol ainda ingénuo. Mas já apaixonante.

Os heróis da Académica em 1939 (FOTO: Académica de Coimbra / OAF)

Para estragar o suspense, contamos já o fim. Na final das Salésias, a 25 de junho de 1939, a briosa Académica de Coimbra derrota o Benfica por 4-3. Os estudantes teriam de esperar 73 anos para voltar a vencer uma Taça de Portugal.

Académica de Coimbra, 4 – Benfica, 3. O score da primeira final de sempre da Taça de Portugal. Um modo revivalista de lançar a IV Eliminatória da edição 2020/21 da prova, que arranca na sexta-feira às 14 horas. Primeiro jogo? Adivinhem lá.

Académico de Viseu-Académica de Coimbra (claro).

Confusão a sério no Benfica-FC Porto da meia-final

Os oitavos-de-final em 1939 são jogados a duas mãos. O Belenenses, já grande, afasta o Vila Real de Trás-os-Montes (3-3 e 9-0), mas a maior goleada é aplicada pelo FC Porto – campeão nacional nesse ano – ao Vitória de Guimarães (11-1 depois de um 3-2 para os minhotos).

O Benfica elimina os alentejanos do Luso Beja (8-1 nas duas mãos), o Sporting replica a superioridade encarnada num duelo contra os leões do Farense (9-1 nos dois jogos) e o popular Carcavelinhos afasta o Barreirense num apertado 4-3.

A Académica, naturalmente, também passa com distinção: 5-1 e 3-2 ao Sporting da Covilhã. Tal como o histórico Académico do Porto, vencedor no duelo com o Casa Pia.

A obrigatória saudação fascista (FOTO: Académica de Coimbra / OAF

Nos quartos-de-final, o Nacional da Madeira junta-se à festa. Mas sai depressa: 0-9 e 0-4 nos jogos contra o Benfica. O Sporting afasta o Belenenses (3-1 e 1-1), o FC Porto despacha o Carcavelinhos (3-1 e 4-4) e a Académica de Coimbra segue formosa e segura: 5-3 e 2-1 sobre o Académico tripeiro.

Nas meias-finais, polémica e confusão nos dois Benfica-FC Porto. Uma rivalidade mais do que ancestral, como se vê. Os dragões aplicam um 6-1 aparentemente irrecuperável na Invicta, mas em Lisboa são destroçados: 6-0 e seguem as águias para a final das Salésias. Os portistas abandonam o jogo aos 75 minutos, numa história já contada ao pormenor pelo Maisfutebol.

Na outra semi-final, a Académica afasta o Sporting. Os leões vencem em casa por 2-0, mas em Coimbra mandam as capas negras: 5-2.

«Se fosse um poeta faria um soneto» (Octaviano, médio da Briosa)

Tarde de sol na Ajuda, final marcada para as 18 horas. Pequeno atraso e bola a rolar às 18h15, rezam as publicações da época. No favorito Benfica emergem os nomes de Valadas, Francisco Ferreira e Espírito Santo, craques numa época em que a moda e o pensamento eram unos e indivisíveis: meter a bola na baliza oposta.

O árbitro viaja de Setúbal e chama-se António dos Santos Palhinhas. Equipas alinhadas, a Briosa envolta em capas negras e a trajar de camisola e calções negros; o Benfica de camisola vermelha e calções brancos. Uns e outros obrigados à anacrónica e detestável saudação fascista, sinal da ditadura da União Nacional e da súcia encabeçada por Salazar.

Futebol. Oito minutos e o Benfica na frente: Valadas arranca e cruza, Rogério marca. Aos 37 minutos, 1-1 para a Briosa, golo do inquebrantável Bernando Pimenta. 1-1 ao intervalo, mas dois golos de rajada no reatamento, um para cada lado.

Alberto Gomes dá a vantagem à Académica, Rogério bisa e estabelece o 2-2, ainda com 40 minutos por jogar. Eis que surge um novo herói, Arnaldo Carneiro. Primeiro aproveita um mau atraso de João Correia e faz o 3-2, depois foge na esquerda e remata sem ângulo. O keeper António Martins atrapalha-se e – olha, olha - a Briosa faz o 4-2.

Alexandre Brito ainda reduz para 4-3 e daí em diante só dá Benfica no ataque. Mais Briosa e virtuosa do que nunca, a Académica fecha-se, qual fraternidade de camaradas, e aguenta o impacto. 4-3, os vivas soltam-se, o povo benfiquista junta-se à festa, há uma curiosa empatia entre adversários, talvez movida pela ligação de muitos benfiquistas à universidade de Coimbra.

As reações são disparadas a quente, ainda no relvado. Os arquivos da histórica Académica dão-nos pérolas discursivas e desabafos homéricos. «Tive uma sensação que nunca esquecerei. Se fosse poeta faria um soneto, só da sensação que senti», clama Octaviano, centurião o meio-campo da legião estudantil.

«O Benfica perdeu bem. Nós vencemos melhor. De há muito eu esperava esta final», grita Arnaldo Carneiro, o goleador de capa e espada, inclemente.

Alberto Gomes, outro dos avançados, faz o resumo perfeito do estado da nação negra: «Deve ser difícil ter na minha vida um momento mais emocionante.» A romaria sobe o país e aterra em Coimbra. A Cidade do Conhecimento é a Cidade do Futebol no dia da primeira final da Taça de Portugal.

VÍDEO: as imagens da primeira final da Taça de Portugal

FICHA DE JOGO:

Estádio das Salésias, em Lisboa
25 de junho de 1939
Árbitro: António Palhinhas (AF Setúbal)

ACADÉMICA: Tibério; José Maria Antunes, César Machado, Manuel da Costa, Alexandre Portugal, Nini, Carlos da Silva, Octaviano, Bernando Pimenta, Arnaldo Carneiro e Alberto Gomes.

Treinador: Albano Paulo

BENFICA: António Martins; Gustavo Teixeira, Gaspar Pinto, João Correia, Francisco Ferreira, Feliciano Barbosa, Francisco Albino, Espírito Santo, Rogério de Sousa, Alfredo Valadas e Alexandre Brito.

Treinador: Lippo Hertzka

Golos: Bernando Pimenta, Arnaldo Carneiro (2) e Alberto Gomes pela Académica; Rogério de Sousa (2) e Alexandre Brito pelo Benfica.

CRÉDITOS DAS FOTOS: arquivo da Académica de Coimbra/OAF