Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias. O Maisfutebol traz-lhe a História de Um Jogo, desta vez com o euskal derbia, o dérbi basco entre Athletic e Real Sociedad

Há uma imagem comum na memória de quem viveu este dérbi. «Olhamos para a bancada e vemos um azul, um vermelho, um azul, um vermelho, todos misturados. Cada um respeita o seu clube e vão para o estádio para a festa. É um exemplo para qualquer dérbi em qualquer país, em qualquer campeonato.» A descrição é de Carlos Xavier, um dos primeiros estrangeiros a jogar o duelo entre Real Sociedad e Athletic. Neste fim de semana há dérbi basco em Bilbau e o antigo jogador português guia o Maisfutebol nesta viagem por um duelo com mais de 100 anos de história. Diferente.

San Mamés recebe no sábado o dérbi da 29ª jornada da Liga espanhola, que chega com a Real Sociedad na luta pelo acesso à Liga dos Campeões e com o Athletic a 11 pontos de distância e ainda de olho num lugar europeu. É tradicionalmente um confronto dividido, com vantagem clara para quem joga em casa. Mas a Real tem estado mais forte nos últimos anos e o Athletic só venceu dois dos últimos dérbis em San Mamés. Está muito em jogo, podemos esperar uma festa fora do estádio e um jogo intenso. Como sempre no duelo entre os dois maiores clubes do País Basco, rivais em campo mas com adeptos unidos na identidade comum.

«Eles adoram o seu país, a sua região. São muito patriotas com o País Basco. Estiveram muitos anos a tentar a independência. Têm a sua língua, que é muito característica. Eles próprios não sabem a origem dela. Têm os símbolos, o hino. Não ligam muito à seleção espanhola», diz Carlos Xavier: «Depois, cada um luta pelo seu ideal e quer que o seu clube ganhe, mas respeitam-se muito. Isso é incrível. Os bascos respeitam-se muito uns aos outros. Independentemente da cor do clube.»

Hegemonia dividida nos anos 80

A identidade basca atravessa a história do dérbi, que se jogou pela primeira vez em 1909, logo que a Real Sociedad nasceu. Têm raízes diferentes, o Athletic nascido numa cidade portuária, a Real na mais cosmopolita San Sebastián, com a sua romântica baía. Ambos se afirmaram entre os grandes de Espanha. Primeiro o Athletic, uma das primeiras potências do futebol espanhol, vencedor de Taças em série com nomes que entraram para sempre no imaginário. Como Rafael Moreno Aranzadi, alcunha Pichichi, a lenda que deu origem ao troféu de melhor marcador da Liga. O Athletic foi quatro vezes campeão espanhol nos anos 30 e é até hoje o único clube, ao lado de Real Madrid e Barcelona, que jogou todas as épocas na primeira divisão.

A Real cresceu mais tarde e a certa altura, na primeira metade dos anos 80, os dois clubes dividiram entre si a hegemonia em La Liga . A Real venceu dois títulos espanhóis consecutivos em 1981 e 1982, os únicos até hoje. O Athletic foi campeão nas duas temporadas seguintes, os últimos dos seus oito troféus de campeão espanhol.

A Ikurriña em campo

Ambos os clubes tiveram na origem influências britânicas, como tantos outros. Mas a sua afirmação fez-se como bandeiras da região, reforçada pela resistência a décadas de repressão dos símbolos e da cultura das várias regiões espanholas sob o Franquismo. Há um momento de enorme simbolismo a dar visibilidade a essa luta. O dérbi de 5 de dezembro de 1976, no antigo estádio de Atocha.

Franco tinha morrido, vivia-se um período turbulento, e os jogadores da Real e do Athletic uniram-se numa afirmação política. Foi tudo preparado cuidadosamente, em segredo. E conseguiram mesmo fazer chegar até aos dois capitães a Ikurriña, a bandeira da região, ainda proibida nessa altura. Inaxio Kortabarria e José Ángel Iribar entraram juntos em campo, ostentando a Ikurriña. Era a primeira vez que a bandeira aparecia em público, à vista de milhares de pessoas, desde a instituição da ditadura.

Carlos Xavier e Oceano entre os primeiros estrangeiros da Real

Essa identidade é cultivada de várias formas. Como o princípio de acolher apenas jogadores bascos. O Athletic mantém essa política, com algumas «nuances». A Real Sociedad foi alterando a lógica, começando por abrir portas a estrangeiros no final da década de 80. Entre os primeiros estiveram os portugueses Carlos Xavier e Oceano, duas épocas depois de o inglês John Aldridge, seguido de alguns compatriotas, ter quebrado essa barreira.

Chegaram em 1991 pela mão do galês John Toshack, que se tornou referência da Real Sociedad depois da passagem por Alvalade, em 1984/85. «Quando o Toshack esteve pela primeira vez na Real Sociedad, a Real ainda não tinha aberto as portas a estrangeiros. Ele foi para o Real Madrid e quando voltou para a Real Sociedad já lá estavam três ingleses. Ele correu com eles e veio-me buscar a mim, ao Oceano e ao Kodro. Foi assim que fomos lá parar», recorda Carlos Xavier, a explicar por que não hesitou em assumir a mudança: «Foi numa altura em que no Sporting as coisas não estavam a correr muito bem. Na altura os jogadores da casa eram os mais prejudicados. Eram os que ganhavam menos, eram os que jogavam menos. Na atura quem vinha de fora é que jogava mais. Então foi altura de optar. Optei por três anos em Espanha e voltei ao Sporting para acabar a carreira.»

Foram três épocas em San Sebastián, que Carlos Xavier recorda com saudade. «Se soubesse que vinha acabar a carreira como acabei tinha lá ficado, e se calhar hoje ainda estava a trabalhar na Real Sociedad. Deixei lá muitas amizades», diz, recordando como se sentiu valorizado: «O que ficou acima de tudo é a importância que me davam como jogador e como eu me sentia uma estrela daquela equipa. O Toshack perguntou: ‘Qual é o número que tu queres e qual é a posição em que preferes jogar?’ E eu disse: ‘Quero o 10 e quero jogar por trás do ponta de lança. Fazer assistências. E realmente foram os melhores anos que tive na vida. Sentir aquele ambiente, fazer uma jogada ou um passe bonito e ser aplaudido, ser acarinhado.»

Um parêntesis e uma camisola de Maradona

Na primeira época da dupla portuguesa, a Real terminou no quinto lugar e apurou-se para as competições europeias. Desse tempo ficam muitas memórias, algumas especiais. Um parêntesis, para falar de Diego.

Maradona já tinha sido Deus em Nápoles e estava na fase descendente da carreira quando chegou a Sevilha, em 1992. Mas ainda era a estrela planetária que arrebatou o mundo. E tem uma história com Carlos Xavier. «Joguei duas vezes contra ele. Estava ele no Sevilha, tinha ido para lá para acabar a carreira, praticamente. Quando fui jogar a Sevilha, antes do jogo disse-lhe que já tinha uma camisola dele do Nápoles e se não se importava de trocar outra vez. E ele disse: ‘Sem problema nenhum’. Mas antes de acabar o jogo o Carlos Bilardo, que era o treinador do Sevilha, tirou-o do campo e ele veio a chamar os nomes todos ao treinador, até sair. E eu pensei: ‘Pronto, já foi a camisola à vida.’ Mas ele no final do jogo tinha a camisola na mão. Foi um gesto único. Para mim ele foi o número 1 do mundo, no meu tempo.»

Antes de fechar o parentesis, esta foto. Carlos Xavier, Diego Simeone e lá atrás Maradona. 

Pronto, siga o dérbi. Carlos Xavier viveu a transição do Estádio de Atocha para o novo recinto da Real Sociedad, o Anoeta. Eram ambientes diferentes, conta. «Jogámos dois anos em Atocha e um em Anoeta. Eu gostava mais de jogar em Atocha, com o público ali em cima. Sentia-se muito a energia que eles nos davam.» Muitos adeptos sentiram o mesmo na primeira versão do novo recinto, onde a pista de atletismo aumentava a distância das bancadas para o campo. O estádio seria renovado mais tarde: «Mandaram tudo abaixo, para o público estar mais próximo da equipa e o ambiente ser diferente.»

San Mamés é também hoje um estádio novo, que herdou o nome do anterior recinto. Na altura, conta Carlos Xavier, era já «um estádio mais moderno» do que Atocha. E com grande atmosfera. «É um ambiente difícil, porque eles fazem barulho do princípio ao fim. Eu já lá tinha jogado com o Sporting. Mas era realmente um ambiente intimidante no bom sentido, o público sempre a puxar pela equipa.»

A final que a pandemia traiu

O tempo de Carlos Xavier no País Basco ainda se cruzou com a era da ETA, a organização independentista cuja atividade terrorista ainda estava ativa por essa altura. «Ainda havia uns resquícios de alguns atentados, nomeadamente fora do País Basco. O último foi em Madrid, nós ainda lá estávamos», conta. Não era algo que estivesse muito presente em San Sebastián, segundo recorda. «Na cidade nunca senti nada de mais. Houve uma ou outra manifestação, mas tirando isso nunca senti qualquer tipo de mal-estar, não poder andar na rua, nada disso. Muitas pessoas já estavam contra a ETA, havia manifestações contra. Depois passados uns anos houve a dissolução.»

Passaram três décadas. A Real chegou a descer à II Divisão, em 2007. Voltou três anos mais tarde e cresceu. Até voltar a ganhar um troféu, em pleno dérbi. É bem recente este outro marco importante na história do euskal derbia.

As duas equipas chegaram à final da Taça do Rei em 2019/20, a primeira vez que se defrontavam na decisão, ambas à procura do primeiro grande título desde aqueles tempos de ouro dos anos 80, se excluirmos a Supertaça de Espanha ganha pelo Athletic em 2016. Mas a pandemia roubou a possibilidade de os adeptos dos dois clubes levarem a sua festa à final. A decisão foi adiada, mas acabou por se jogar em abril de 2021, em Sevilha, ainda sob as restrições impostas pela covid e sem público nas bancadas. Carlos Xavier tinha bilhete. «Era para ter ido a Sevilha, mas não pude ir.»

A Real Sociedad venceu, um golo de Oyarzábal a garantir a segunda Taça do Rei para o seu palmarés. Mas só deteve o título por duas semanas. Com a sobreposição do calendário provocada pela pandemia, a final de 2020/21 jogou-se logo a seguir, de novo com o Athletic em campo. Desta vez foi o Barcelona a vencer, por 4-0. O Athetic, que tem 23 Taças do Rei no palmarés, voltava a ver fugir o troféu.

Os foguetes, as tradições e ligações para sempre

Hoje, Athletic e Real Sociedad continuam a ser referências do futebol espanhol. Ambas treinadas por homens da casa. Em Bilbao está Ernesto Valverde, basco não de nascimento mas de criação, que vestiu a camisola do Athletic e foi adversário de Carlos Xavier nos anos 90. O treinador da Real é Imanol Alguacil, ex-companheiro de equipa do português em San Sebastián. «Eles aproveitam muito as figuras dos clubes. Ainda falo com o Imanol, mandei-lhe mensagem a dar os parabéns porque está a fazer um trabalho fantástico. Quando ganhou a Taça em Sevilha falei com ele ao telefone e foi uma festa.»

Os dois clubes continuam a cultivar as tradições que reforçam a sua identidade. Como os foguetes que a partir do velho estádio de Atocha anunciavam aos marinheiros embarcados como ia o marcador. «Havia muitos pescadores que estavam no mar. Um foguete anunciava que era golo da equipa adversária. Quando lançavam dois era da nossa equipa», recorda Carlos Xavier.

Também se lembra do ambiente que antecedia os dérbis, com momentos de celebração no relvado. «Antes dos jogos havia sempre os grupos musicais tradicionais, as danças. Entravam as duas equipas com a Ikurriña. Eram muito fortes nesse apego ao país.»

Karlos Xabier, tantos anos depois uma homenagem em euskera

Carlos Xavier voltou várias vezes a San Sebastián, mantém contacto com gente do seu tempo. Antigos jogadores, dirigentes e adeptos txuri-urdin. Um deles deu mesmo o seu nome ao filho, adaptado para euskera. Nasceu em 2021 e chama-se Karlos Xabier. «Ele vai-me mandando fotografias do miúdo a crescer.»

O calor humano faz parte da cultura basca, diz. «São pessoas dadas, muito empáticas.» E depois há muito mais a condimentar a ligação e as memórias. «Na gastronomia não há sítio melhor do que o País Basco. Aliás, é lá que estão os maiores chefs Michelin. Eu adoro cozinhar e lembro-me que ia treinar de manhã e dava um programa de culinária do Karlos Arguiñano, que é um cozinheiro famoso. Eu punha a gravar e quando voltava do treino ia ver o que ele tinha feito.»