A História de Um Jogo é uma rubrica semanal do Maisfutebol. Escolhemos um dos encontros da Liga portuguesa e partimos em busca de histórias e heróis de campeonatos passados. Às quinta-feiras, de 15 em 15 dias.

«Estou com a consciência tranquila. Os palavrões que disse não foram para insultar o árbitro, foram palavras que me saíram. Os meus pais sempre me deram boa educação. Até vos posso dizer o que lhe disse: ‘f……’ e ‘c……’. Qualquer um diz isso.»

O último Farense-FC Porto acaba assim. Hassan Nader, avançado dos algarvios, a dar na sala de imprensa do São Luís a sua versão sobre a expulsão no jogo, logo aos 18 minutos. Um amarelo, uns desabafos e o vermelho exibido por Bruno Paixão.

Em abril de 2002, os dragões de José Mourinho até vencem com facilidade. Hassan expulso, o guarda-redes Mijanovic também – vermelho claro, após derrubar o isolado Deco -, um bis de Clayton e Alenitchev a fechar os 3-0. Um cenário excecional num palco duríssimo.

Em 23 visitas a Faro para o campeonato nacional, o FC Porto soma cinco derrotas, seis empates e 12 vitórias. Ou seja, só consegue vencer em metade das vezes. Mas até 1994, o cenário é ainda mais sombrio na perspetiva portista: cinco derrotas, cinco empates e cinco vitórias.

Pitico com a camisola do Farense da época 88/89 (arquivo pessoal)

De 1988 a 1994, Pitico participa sempre nesses duelos. Rijos, jogados até ao limite, sempre equilibrados. O antigo extremo está, de resto, na origem da última vitória dos algarvios. 1-0 a 9 de janeiro de 1994.

«O Jorge Costa veio para fazer falta, eu usei o corpo e ele acabou por cair mal junto ao muro e aleijar-se. No livre batido da direita acabámos por marcar num bom cabeceamento do Stevanovic.»

No São Luís dos anos 90 é assim mesmo. Muros a não mais de um metro das linhas de jogo, claustrofóbicos e tantas vezes castigadores. Nesse FC Porto, a emprestar elegância a um cenário de quase barbárie, está Aloísio Alves.

«A imagem mais forte que tenho dos jogos em Faro tem a ver com os muros. O muro estava tão perto que parecia uma jaula. Jogávamos enjaulados. Isso e os berros do treinador deles, o Paco Fortes.»

Pitico concorda. O Farense de Paco Fortes joga para massacrar os visitantes. «Ficámos um ano e meio sem perder no São Luís. Curiosamente, perdemos mais vezes contra o Sporting. Dos três grandes era o que conseguia melhor resultados. O Benfica e o FC Porto dificilmente passavam cá. Tínhamos adeptos fantásticos, faziam um barulho tremendo durante os jogos, pressionavam muito. Era uma coisa fora do normal.»

A «mala» do Benfica que acaba por não chegar a Faro

Reta final da temporada 1993/94. Benfica e FC Porto ombro a ombro na classificação geral, as águias a visitarem Aveiro a 16 de maio e os dragões a jogarem a Faro três dias depois.

Pitico diz ao Maisfutebol que o plantel algarvio recebe um incentivo extra para esse jogo. O Benfica oferece um prémio de «valor incrível» ao Farense para derrotar o FC Porto, mas a «mala» acaba por não chegar ao São Luís.

«Em 1993 não havia ainda a proibição de os clubes oferecerem dinheiro a outras equipas, para motivar e ajudar a ganhar. Não era proibido como hoje. Lembro-me que tínhamos um valor incrível para ganhar ao FC Porto aqui em casa. Mas o Benfica jogava contra o Beira-Mar [três dias antes] e perdeu com um golo do Dino. Nós ganhámos ao Porto, mas já não recebemos o prémio. Perdemos um bom premiozinho de jogo.»

Vale a pena acrescentar que o ‘Pagar para Ganhar’ só se torna proibido em Portugal durante o ano de 2007. A prática está sancionada pelo Regulamento Disciplinar na sequência da aprovação da Lei 50/2007, sobre corrupção ativa e passiva, tráfico de influências e associação criminosa, que revoga a de 1991 e define a punição de prémio por vitória.

O FC Porto de Carlos Alberto Silva perde em Faro, mas acaba mesmo por sagrar-se campeão nacional. Pitico, que tantas vezes defronta os azuis e brancos, tem mais memórias sobre esse verdadeiro clássico dos anos 90.

«O FC Porto tinha uma agressividade fantástica: Jorge Costa, Paulinho Santos, João Pinto, Fernando Couto, Geraldão, até o Aloísio. Imaginem isso. Uma vez o Paulinho bateu-me forte e eu fui ter com ele: ‘Paulinho, não precisas de bater tanto assim, porra’. Ele agarrou-me no braço e disse: ‘Pitico, se eu não bater assim, não jogo no FC Porto’. Isso diz tudo, não é? O Paulinho era uma fera no campo, mas fora do campo era dez estrelas, uma simpatia.»

Aloísio sorri ao ser confrontado com estes relatos. «Era muito assim, é verdade. O campo era pequenino e o Paco Fortes queria sempre que o Farense nos pressionasse. Eles paravam o nosso futebol como podiam, davam muita pancada. Nós aguentávamos bem, tínhamos jogadores incríveis e respondíamos também da mesma maneira.»

O dia em que Djukic levanta Fernando Couto pelos colarinhos

O grande Farense de Paco Fortes joga «como uma família». No pequeno relvado do São Luís entram 11 irmãos vestidos de branco da cabeça aos pés. E protegem-se uns aos outros, como recorda Pitico. Mesmo que do outro lado esteja uma ameaça chamada Fernando Couto.

«A minha filha quando era pequenina era apaixonada pelo Fernando Couto. Ele vinha passar férias ao Algarve, pegava na menina ao colo, era um tipo espetacular. Mas no campo… uma vez deu-me uma porrada das grandes. O Djukic viu aquilo e disse-me logo: ‘Pitico, deixa comigo’. E o Djukic era enorme. Foi a correr, pegou no Fernando Couto pelos clarinhos e os pés do Fernando nem tocavam no chão. Defendíamo-nos sempre lá dentro.»

Pitico, chegado a Faro em 1988, lembra-se também de «uma confusão com os adeptos do FC Porto» no final de uma vitória dos visitantes e acredita que no próximo domingo os campeões nacionais voltam a passar «um mau bocado».

«Mesmo sem adeptos, o espírito é diferente no São Luís. Não tem nada a ver com o Estádio do Algarve e os resultados provam isso. O São Luís continua a ser um inferno, só faltam os diabinhos na bancada.»

Pitico e Aloísio têm 57 anos. O pirmeiro é treinador do Almancilense e tem uma empresa no ramo da jardinagem. Fornece e faz colocação também de relva sintética. Vive na freguesia de Santa Bárbara, perto de Loulé. Aloísio tem uma empresa de agenciamento de atletas e vive em Porto Alegre, no Brasil.

O ÚLTIMO FARENSE-FC PORTO: 0-3

Estádio de São Luís, 6 de abril de 2002
Árbitro: Bruno Paixão

FARENSE: Mijanovic; Hugo Gomes, Seba Herrera, Fernando Porto, Carlos Fernandes, Bruno Mestre (Paulo Ferreira, 49), Nabor André (João Pereira - GR, 44), Rodri, Carlos Costa, Hassan Nader e Everson (Ferreira, 50).

Não utilizados: Cavaco, Laranjo, Mozer e Komol
Treinador: Paco Fortes

FC PORTO: Vítor Baía; Secretário (Ibarra, 70), Ricardo Carvalho, Jorge Costa, Fredrik Soderstrom, Costinha, Pavlin, Deco (McCarthy, 66), Alenitchev, Capucho e Clayton (Pedro Nuno, 76).

Não utilizados: Paulo Santos (GR), Ricardo Costa, Joca e Cândido Costa
Treinador: José Mourinho

Cartões vermelhos: Hassan (18) e Mijanovic (43)
Golos: Clayton (12 e 59), Alenitchev (63)

A ÚLTIMA VITÓRIA DO FARENSE SOBRE O FC PORTO: 1-0

Estádio de São Luís, 9 de janeiro de 1994
Árbitro: Pinto Correia

FARENSE: Zé Carlos; Portela, Stefan, Miguel Serôdio, Jorge Soares, Hugo (Pitico, 62), Sérgio Duarte, Hajry, Stevanovic, Djukic (Lima, 89) e Hassan.

Não utilizados: Luís Manuel (GR), Paixão e Armando
Treinador: Paco Fortes

FC PORTO: Vítor Baía; João Pinto, Aloísio, Fernando Couto, Jorge Costa, Secretário, André, Semedo, Timofte (Jorge Couto, 56), Drulovic e Kostadinov (Domingos, 74).

Não utilizados: Cândido (GR), Rui Filipe e Folha
Treinador: Tomislav Ivic

Golo: Stevanovic (85)