Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias. Desta vez, a História de Um Jogo viaja pelo dérbi de Merseyside com a ajuda de Abel Xavier, que faz parte da história dos duelos entre Liverpool e Everton

O Everton venceu o líder Arsenal e ganhou um balão de oxigénio na fuga à descida, o Liverpool está a precisar desesperadamente de estancar uma espiral negativa e agora vão defrontar-se. De repente o dérbi de Merseyside ganhou novo ânimo para alimentar uma rivalidade umbilical. Uma rivalidade que Abel Xavier viveu por dentro, ele que protagonizou uma mudança direta entre os dois clubes e está até hoje na história do dérbi.

A ideia da ligação umbilical é literal. Este tem todos os ingredientes clássicos dos dérbis, desde logo a proximidade geográfica de duas equipas separadas por menos de dois quilómetros, com o Stanley Park pelo meio. Mas tem mais. Foi a partir de uma cisão do Everton, fundado em 1878 e que chamava casa a Anfield Road, que nasceu o Liverpool, década e meia mais tarde. Por essa altura, os azuis mudaram-se para Goodison Park e os vermelhos instalaram-se em Anfield.

É um dérbi feito dessa rivalidade ancestral, de animosidade mas também de familiaridade. Há quem lhe chame «dérbi da amizade», não só porque os dois clubes souberam pôr o antagonismo de parte em momentos críticos, mas também pela forma como na mesma família há muitas vezes adeptos dos dois clubes, que se sentam lado a lado no estádio, cada um com as suas cores.

«Tanto em Goodison Park como em Anfield há famílias que veem o dérbi juntas a torcerem pelas duas equipas. Acho que é algo que não se passa em muitos países. O dérbi tem uma rivalidade muito forte, mas há um respeito muito grande pelas famílias que torcem pelas duas equipas», nota Abel Xavier ao Maisfutebol.

Abel chegou ao Everton em 1999. Passou duas épocas e meia em Goodison Park e em janeiro de 2002 atravessou o Stanley Park para representar o Liverpool, depois de não ter chegado a acordo para renovar com o Everton. «Fui um dos poucos na história dos dois clubes, que é centenária, que jogaram nos dois clubes», observa o antigo internacional português e atual comentador da CNN, que passa a explicar a saída de um clube para o outro.

«Tive dois anos e meio fantásticos no Everton. Mas o clube passava por dificuldades financeiras, eu estava a seis meses de terminar o meu contrato e era uma negociação muito difícil. Não existiam negociações diretas entre os dois clubes. Portanto, tive de encontrar uma estratégia, respeitando o Everton, dando o direito de opção prioritário ao Everton para renovar. Eles não conseguiram renovar e tivemos de montar uma estratégia para que em janeiro fosse transferido, basicamente no último dia do mercado, para o Liverpool», recorda Abel Xavier: «Ou seja, na mesma época joguei para não descer de divisão e passado 15 dias estava a jogar a Liga dos Campeões. Em termos desportivos, pela minha carreira, tinha de tomar a decisão, mas o mais importante é que fiquei com o maior respeito pelas duas estruturas, pela forma como saí do Everton e pela forma como entrei também no Liverpool.»

«Não foi fácil, devido à rivalidade», continua. «Eu tive de pagar os seis meses de contrato para poder sair e na altura o presidente jamais pensava que eu podia ir para o rival. Quando o Liverpool percebeu que podia ter um jogador que preenchia várias posições - e na altura o Liverpool estava com problemas defensivos -, definiu uma estratégia. Acima de tudo o que me preocupava eram as questões de segurança na cidade», conta, acrescentando que Gerard Houllier, então treinador dos «reds», lhe garantiu que «tudo seria acautelado». «Tive de fazer algumas alterações durante os primeiros meses. Mudança de residência, andar com seguranças», recorda Abel, acrescentando que foi apenas uma questão de precaução. «Foi tudo pacífico, porque as pessoas lentamente respeitaram-me.»

«Obviamente, fui assobiado por alguns adeptos mais emocionais»

Três semanas depois de Abel Xavier chegar a Anfield houve dérbi. E o português foi titular. É até hoje o único jogador que alinhou no dérbi de Merseyside pelas duas equipas na mesma época. «A realidade é tão extrema entre as duas estruturas, adeptos e também jogadores, e passado 15 dias eu estava a jogar contra o Everton pelo rival. Tinha de ter uma estrutura forte mental para lidar com esta mudança. Mas foi tudo ponderado, pensado e também foi tudo protegido por parte do Liverpool», constata.

O dérbi ficou, claro, marcado por alguma tensão em relação a Abel. «Antes de mais, eu marquei um golo logo no primeiro jogo com a camisola do Liverpool (numa vitória sobre o Ipswich). Joguei dois anos e meio pelo Everton e nunca marquei, e no primeiro jogo pelo Liverpool marquei. Isto teve um reflexo muito grande, nomeadamente para os adeptos do Everton. Depois veio o dérbi. Obviamente fui assobiado por parte de alguns adeptos mais emocionais do Everton», recorda, acreditando que a receção não tenha tido maior impacto pelo facto de esse dérbi ter sido em Anfield e não em Goodison Park. Abel acredita que não ficaram ressentimentos daquele tempo: «Hoje em dia vou à cidade e sou respeitado tanto pelo Everton com pelo Liverpool, sou convidado pelos dois clubes para marcar presença em jogos de lendas, por exemplo.»

Uma rivalidade potenciada nos loucos anos 80

O Everton já tinha descolado do pelotão da frente da Premier League, de que foi um dos fundadores, quando Abel Xavier chegou. Hoje, a sua dimensão desportiva é bem diferente da do Liverpool. Mas não foi sempre assim. Durante décadas o Everton foi o principal emblema da cidade. É ainda o quarto clube com mais títulos de campeão inglês, é até hoje o clube com mais presenças de sempre no primeiro escalão do futebol inglês – desde 1888 só falhou quatro épocas, a última delas em 1953/54. É também recordista de jogos e golos marcados entre a elite britânica.

Foi só a partir da segunda metade do século XX que o Liverpool começou a equilibrar as contas, até superar o palmarés do rival e dar de caminho à cidade uma preponderância no futebol inglês que ainda se mantém. São 28 títulos de campeão, entre os 19 do Liverpool e os nove do Everton, número que apenas foi igualado por Manchester na época passada, com o campeonato do City. Londres tem no total 21 títulos, entre Arsenal, Chelsea e Tottenham.

Os Reds superaram claramente os rivais em dimensão internacional com as conquistas europeias. Para contrapor, nesse plano, o Everton tem apenas a Taça das Taças, que venceu em 1985. Podia ter sido diferente, não fosse a tragédia do Heysel e a sanção imposta pela UEFA aos clubes britânicos que impediu os Toffees, num dos seus melhores períodos desportivos, de tentarem afirmar-se no palco europeu. O que alimentou, claro, a animosidade. Leia mais sobre isso aqui

O dérbi do condado de Merseyside era então o grande duelo do futebol britânico. Os anos 80 foram os tempos áureos, com ponto alto na temporada 1985/86, quando Liverpool e Everton lutaram entre si pelo título inglês até ao fim e ainda se defrontaram na final da Taça de Inglaterra.

Foram tempos intensos no dérbi e eram tempos loucos no futebol inglês. Estas imagens do exterior do Estádio de Wembley no dia dessa final dão uma ideia.

O Liverpool venceu a final por 3-1 com um bis de Ian Rush, apesar de o Everton se ter adiantado, num golo de um tal de Gary Lineker, que vestia então a camisola dos Toffees. Os Reds também foram campeões, mas na época seguinte foi o Everton a levar o título inglês.

Hillsborough, solidários na tragédia

Dois anos mais tarde aconteceu outra tragédia que marcou para sempre o futebol inglês, mas também a relação entre os dois clubes. Depois do desastre de Hillsborough, o Everton solidarizou-se de imediato com o rival. Daqueles dias de abril de 1989 fica a imagem tocante do mar de cachecóis que se estendeu de Goodison Park até Anfield, em homenagem às vítimas. Nesse ano, a final da Taça de Inglaterra entre as duas equipas foi particularmente emotiva.

Mais tarde, em 2012, o Everton fez questão de assinalar o momento em que foi feita finalmente justiça para os 96 adeptos do Liverpool que morreram em Hillsborough. Antes de um jogo com o Newcastle, duas crianças usando camisolas com as cores de Everton e Liverpool e com um 9 e um 6 nas costas subiram ao relvado do Goodison Park.

«Sempre que houve causas importantes os clubes estiveram unidos. A cidade está muito bem vincada, as identidades dos dois clube está muito bem marcada. Portanto, quando existem coisas marcantes, como foi a tragédia, a cidade sabe que se deve unir e foi o que aconteceu», observa Abel, que analisa um pouco mais as características de cada um dos rivais: «O Liverpool foi sempre um clube mais eclético, mais diversificado culturalmente, o Everton assenta mais nas raízes anglo saxónicas.»

Recorde de cartões, a «snifadela» de Fowler e os craques «Reds» que eram azuis

Em campo, a rivalidade foi sempre intensa. Teve decisões de títulos, teve momentos bem rasgadinhos – o dérbi de Liverpool é ainda o jogo com mais cartões vermelhos na história do futebol inglês, 28 no total. Também teve provocações. Há momentos icónicos nas memórias do futebol britânico associados ao dérbi. Como o festejo de Robbie Fowler em 1999. Cansado de provocações dos adeptos rivais, que o acusaram se se drogar, o então avançado do Liverpool festejou um golo no dérbi de Anfield, em abril de 1999, a usar a linha para fingir que snifava cocaína. A brincadeira custou-lhe quatro jogos de suspensão e uma multa então recorde de 32 mil libras.

Fowler era adepto do Everton em criança. Como muitos jogadores que se tornaram referências do Liverpool, de Michael Owen a Ian Rush. Também Jamie Carragher. O antigo defesa que fez toda a carreira no Liverpool diz que era mesmo fanático pelos Toffees e contou na sua autobiografia, citada pelo site Pundit Arena, que no dia em que foi pela primeira vez para o banco num jogo do Liverpool não resistiu, quando ao intervalo passaram os resultados dos outros jogos e viu que o Everton vencia, a fazer um sinal com o polegar para cima na direção do pai, que estava na bancada.

Carragher também conta como foi perdendo a paixão pelo Everton, relatando um episódio que diz ter sido decisivo e que ilustra bem a rivalidade entre os dois clubes. Uma noite, depois de uma derrota dramática do Liverpool com o Manchester United, Carragher dirigiu-se ao pub do costume para se juntar aos amigos. Mas, diz, em vez de palavras de consolo, riram-se dele. «Amigos, pessoas com quem tinha viajado pela Europa a seguir o Everton, não pensaram duas vezes em tratar-me como qualquer outro tipo do Kop», lamenta-se.

«Na cidade há mais adeptos do Everton do que do Liverpool»

Os anos passaram e, mesmo com os dois clubes distantes em termos de ambições desportivas, a rivalidade não se perdeu. De novo Abel Xavier: «Não, não. Às vezes as pessoas não têm essa perceção, mas eu acho que na cidade de Liverpool há mais adeptos do Everton do que do Liverpool. O Liverpool tem muitos adeptos internacionais. Há muita gente que viaja para ver jogos em Anfield. Os adeptos do Everton são em maior quantidade na cidade. É um dérbi vivido e antecipado durante semanas, desde as pessoas com pequenos negócios a grandes empresários. Isso respira-se na cidade. Está muito enraizado, independentemente da tabela classificativa.»

Nas últimas décadas, o Liverpool ganhou ascendente no dérbi. O Everton tem apenas uma vitória no dérbi desde 2010: em 2020/21, 2-0 em Anfield. O dérbi da primeira volta desta época terminou num nulo. Desde então, o Liverpool entrou numa crise de resultados, está na oitava posição, o Everton penou lá no fundo, agora substituiu Frank Lampard por Sean Dyche e pode recuperar alguma expectativa para o que resta da época. O dérbi de segunda-feira tem, portanto, todos os ingredientes de que se fez esta história.

«Este jogo vem num momento muito importante», analisa Abel Xavier. «Vai ter uma carga de pressão mais relevante. O Everton alterou o treinador e ganhou em Arsenal, o que é obviamente um alento muito grande para o dérbi. O Klopp tem sido um pouco contestado, mas tem feito um grandíssimo trabalho e tem sido castigado por uma série de lesões de jogadores importantes. Eu espero que o Liverpool possa chegar à Liga dos Campeões. E obviamente que o Everton também se possa manter.»