A História de Um Jogo é uma rubrica semanal do Maisfutebol. Escolhemos um dos encontros do fim-de-semana e partimos em busca de histórias e heróis de campeonatos passados. Todas as quinta-feiras.

A polémica anda de braço dado com o futebol português há décadas. A pergunta que se deve colocar é, aliás, outra: poderá o nosso campeonato subsistir sem polémica? Os casos, a suspeição, as acusações e as ofensas fazem parte da composição sanguínea da liga nacional, do ADN dos nossos clubes e dos populares debates de café.

Há 30 anos, por exemplo, a narrativa oficiosa dos acusadores é esta: Carlos Manaca, lateral direito do Vitória de Guimarães, faz de propósito um autogolo e entrega o campeonato nacional de 79/80 ao Sporting, o clube onde jogara de 1965 a 1978, com algumas interrupções pelo meio.

À falta de imagens que ajudem a compreender o momento, passemos à história completa. O dia é 25 de maio de 1980 e o Sporting visita Guimarães – tal como no próximo fim-de-semana – na frente do campeonato, ombro a ombro com o FC Porto. É a penúltima jornada e os leões têm vantagem no confronto direto. Como se percebe, qualquer erro nessa altura seria fatal.

O FC Porto vem da conquista do bicampeonato, é o grande favorito, mas deixa a 18 de maio um ponto na Póvoa de Varzim: 0-0. No domingo seguinte, os dragões recebem o Boavista nas Antas (2-0, bis de António Frasco) e ficam a rezar às alminhas por uma escorregadela do Sporting.

Nada feito. Treinado por Fernando Mendes, o Sporting passa em Guimarães com uma vitória por 1-0. Autogolo do infeliz Carlos Manaca, ainda na primeira parte. Cai o Carmo e a Trindade segura-se por pouco. Na última ronda, os leões confirmam o roubo do então inédito ‘tri’ ao FC Porto com um 3-0 ao União de Leiria – os dragões perdem em Espinho.

Afinal, quais os motivos das acusações a Carlos Manaca? O FC Porto tem razões para desconfiar do profissionalismo do defesa, além da óbvia e legítima ligação ao Sporting no passado?

Manaca (terceiro em cima, a contar da direita) numa foto oficial do Sporting

«Há um cruzamento e eu salto de costas para a baliza»

Carlos Manaca tem 74 anos e está radicado no Canada desde 1986. Deixa de jogar um ano antes, no Peniche, mas habitua-se às perguntas sacrificiais a partir do preciso dia de toda a polémica:

. O autogolo foi propositado?
. O Sporting pediu a sua ajuda?

Manaca fala dezenas de vezes na comunicação social sobre o lance. E defende-se, claro. «Vou levar com essa pergunta até ao fim da vida. Disparates, é tudo disparates. Olhe, quantos autogolos já se marcaram em Portugal esta época?», responde ao jornalista Rui Miguel Tovar, já em 2016. Como acontece o autogolo?

É um cruzamento e eu salto, de costas para a baliza, entre o Manuel Fernandes e o Jordão. Insisto: de costas para a baliza. Ouça, é um autogolo como qualquer outro. O FC Porto quer é um bode expiatório. Eu próprio já fiz autogolos no Sporting.»

Carlos Manaca diz, de resto, que esse autogolo serve para «distrair o povo português» e abre espaço para a entrada de «20 anos de vergonha, mentira e negócios obscuros» no nosso futebol.

«Em Portugal, tudo é possível, pois a justiça está no cemitério. O país é o que é e vai continuar a ser. Esse é um assunto que vem sempre à tona quando falam comigo, mas o que posso dizer é que foi uma situação absolutamente normal... foi a forma que o FC Porto encontrou para justificar o insucesso. Se não tivessem empatado em casa do Varzim na jornada anterior, nunca teriam falado disso.»

Manaca, afastado de Portugal e do futebol, diz-se de «consciência limpa».

Manaca (de meias para baixo) num Oriental-Sporting (Facebook de Carlos Manaca)

«Tudo para cima das costas de um só jogador é uma injustiça»

As palavras mais fortes surgem de responsáveis do FC Porto. O professor Hernâni Gonçalves diz, na altura dos eventos, que o autogolo de Manaca é «contranatura», «digno de um ponta-de-lança».

«Vê-se perfeitamente que Manaca, tendo a possibilidade de golpear a bola para qualquer um dos lados, optou por cabeceá-la para a sua própria baliza», protesta, ainda em 1980, o eterno professor Bitaites.

Na impossibilidade de consultar as imagens, resta-nos também o discurso de defesa feito pelos antigos colegas de Manaca no Sporting, Eurico e Manuel Fernandes.

«É claro, também houve o Manaca, que foi comprado pelo Sporting. Mas não foi somente ele, o sr. Pinto da Costa está a ser injusto, esquecendo-se dos três jogadores vimaranenses que intervieram no lance do golo: o Ramalho, que deixou o Manuel Fernandes cruzar, e o próprio Melo [guarda-redes], que tinha obrigação de defender aquela bola. Tudo para cima das costas de um só jogador é uma injustiça», refere, em tom irónico, o antigo defesa central, Eurico Gomes – em 1982, ele próprio troca o Sporting pelo FC Porto.

E Manuel Fernandes, co-protagonista da infeliz jogada de Manaca, o que invoca? «Há indivíduos, realmente, sem vergonha, que não devem medir certas palavras que disparam. Sobre o Sporting ter tentado subornar o Manaca, um profissional honesto, decerto esse senhor [Hernâni Gonçalves] devia estar a ver-se ao espelho.»

Conclusões? Nenhumas. Carlos Manaca carrega há três décadas o estigma de uma acusação nunca provada. Uma acusação que faz parte da rica história deste excitante Vitória Sport Club (de Guimarães)-Sporting.

Na Cidade-Berço, para o campeonato nacional, há o registo de 75 jogos entre os dois clubes. O Vitória tem 15 triunfos, o Sporting soma 37 e há ainda 23 empates. Sábado, pelas 20h30, há a edição 76ª. Isto é um verdadeiro clássico.

FICHA DE JOGO:

25 de maio de 1980
Árbitro: Raúl Nazaré

VITÓRIA: Melo; Manaca, Fernando Festas, Ramalho (Dinho, 88), Tozé, Alfredo (Vítor Manuel, 46), Ferreira da Costa, Gregório Freixo, Abreu, Mundinho e Joaquim Rocha.

Treinador: Cassiano Gouveia

SPORTING: Fidalgo; José Eduardo, Barão, Eurico, Vitorino, Paulo Meneses, Ademar (Freire, 75), Fraguito (Zezinho, 87), Manoel, Manuel Fernandes e Rui Jordão.

Treinador: Fernando Mendes

Golo: Manaca (36, própria baliza)

VÍDEO: imagens de Carlos Manaca ao serviço do Sporting