O livro «O essencial dos Mundiais para ler em 90 minutos», escrito pela redação do Maisfutebol, começa com o golo de Maradona à Inglaterra, em 1986. E termina com este. O génio individual e a perfeição coletiva, entre um e outro tudo o que falamos quando falamos de Mundiais. No espaço da rubrica Anatomia, publicamos hoje na MF Total mais um capítulo do livro, escrito como uma conversa que condensa as melhores histórias e momentos do Campeonato do Mundo. Senhoras e senhores, o outro melhor golo de sempre. Brasil, 1970.
Dos onze jogadores brasileiros no relvado do Azteca apenas dois não tocam na bola. O guarda-redes Félix, cuja farda azul lhe reserva um papel de polícia distante e o central Brito, cujo nome de funcionário público recomenda o mergulho no anonimato. De resto, tudo começa numa recuperação defensiva do ponta-de-lança Tostão, no lado esquerdo da defesa canarinha. O toque ligeiro sobre um italiano dá sentido ao carrinho de Everaldo, cujo esforço permite a Tostão o atraso tranquilo para Piazza. A partir daqui, estabelecidas as bases da revolução, é altura de construir.
Piazza dá a Clodoaldo, um trinco que nunca o foi. Pelé entra na cena para dar um toque curto na direcção de Gérson, que devolve a Clodoaldo. Com a equipa equilibrada, o médio decide introduzir um pouco de humor rodopiando e trocando as pernas sobre quatro italianos. Para quê? Para o mesmo que as pessoas usam o humor nas suas vidas: para ganhar tempo, enfrentar as injustiças da vida, preparar o futuro.
O futuro, neste caso, é um passe para Rivelino, na lateral esquerda, sobre a linha do meio-campo. E aqui o absurdo traz-nos o grão de loucura necessário para todas as histórias felizes: trinta metros à frente, Jairzinho espera, colado à linha do mesmo lado. Que o extremo-direito espere tranquilamente pela bola, no ponto oposto ao das suas obrigações e da lógica, eis o que desencadeia o desequilíbrio definitivo na conservadora Itália: Jairzinho começa a correr em paralelo à linha da grande área, dá sete toques na bola até encontrar Pelé, um pouco antes da meia-lua. Tostão faz um movimento para o interior, arrastando a marcação de Rosato e Facchetti. E pela cratera aberta com a mudança de flanco de Jairzinho e a simulação de Tostão entra, a todo o vapor, a última personagem desta história: o lateral-direito Carlos Alberto, que o início do filme apanha junto à grande área do Brasil, a passo, com a indolência de quem rói uma maçã e que agora acelera em direcção à História.
Pelé trava o movimento, faz suspender o tempo com a arrogância dos imortais e solta-lhe uma bola que de tão lenta e perfeita transporta toda a sabedoria do mundo. Carlos Alberto beneficia de um pequeno ressalto num tufo de relva, uma fracção de segundo antes do contacto: a bola sobe o suficiente para ser agredida no ponto exacto, aquele que a solta com a força e a precisão desenhada nas estrelas.
As redes abanam, Carlos Alberto prossegue a corrida para trás da baliza de Albertosi, trava o passo, abre os braços para o céu e grita, marcando bem as consoantes: «Pppputtttta qqque pppppariu!» E nenhum outro comentário poderia ilustrar melhor o que realmente aconteceu naqueles 30 segundos de comunhão com o absoluto.
Entre o génio solitário de Maradona e a perfeição sorridente e sábia do colectivo canarinho, desmontando o previsível a golpes alternados de lógica e absurdo, competência e arte, rigor e fantasia, mora tudo aquilo que nos faz sonhar durante uma vida. É disso que se fala quando falamos de Mundiais.