«É daqueles dias em que mais valia não ter saído de casa. Mas por outro lado, ainda bem que saí.»

O dia foi 19 de junho de 2021. Na manhã daquele sábado Eunice Mortágua dava início a mais um fim de semana a apitar jogos da AF Aveiro. Vários jogos, chegam a ser sete ou oito. Perto do final do primeiro encontro, um jogador sofreu uma pancada na zona abdominal e perdeu os sentidos. Com formação em suporte básico de vida, Eunice prestou-lhe assistência até chegar a ambulância. Foram momentos complicados. Depois daquilo, nem conseguiu almoçar. Mas teve de respirar fundo, porque havia outro jogo à tarde. E nessa outra partida, outro jogador entrou em choque após uma lesão e sofreu três paragens respiratórias. Eunice voltou a ajudar na estabilização do jogador. Agora, a árbitra portuguesa vai receber um prémio internacional de fair play pela forma como reagiu naquele dia.

Aos 48 anos, Eunice está a cumprir a última época na arbitragem, por atingir o limite de idade. Prestes a despedir-se dos relvados ao fim de 26 anos, viverá em Roma, na próxima quinta-feira, um momento especial. Vai trazer para casa o troféu «Spirit of fair play», atribuído pelo European Fair Play Movement. No final do ano passado já tinha sido distinguida pelo PNED (Plano Nacional de Ética do Desporto), depois o seu nome foi proposto para esta distinção internacional. E venceu. É um prémio que quer partilhar com todos os árbitros, diz ao Maisfutebol: «É um orgulho. É um orgulho para a arbitragem portuguesa receber esta distinção. O prémio não é só meu, é de todos os árbitros. Porque há muitas mais Eunices, há muitos mais Joões, há muitos colegas por aí que de uma maneira ou doutra já fizeram a diferença e ninguém soube.»

«Fiz o que tinha de fazer»

No caso de Eunice, soube-se depois de a AD Valonguense, clube do primeiro jogador que Eunice assistiu, ter publicado nas redes sociais um agradecimento à árbitra pelo «auxílio que prestou e que permitiu prestar» ao atleta. Essa mensagem tornou o caso público. «Eu fiz o que tinha de fazer, ponto», diz Eunice, que não esperava a repercussão que teve: «Infelizmente foram logo duas situações no mesmo dia e acho que foi isso que espoletou mais atenção.»

Em tantos anos de arbitragem, Eunice nunca tinha passado por nada semelhante como o que viveu naquele dia. «O que me tinha acontecido antes foram fraturas de pulso, às vezes uma cabeça aberta, em situações de jogo em que pode acontecer.»

Aquele preparava-se para ser um dia normal, com dois jogos de juniores na agenda de Eunice. Mas foi tudo menos isso. Começou logo de manhã, no jogo entre o Valonguense e o Taboeira. «O jogo estava a terminar quando um jogador do Valonguense sofreu um choque na zona abdominal. Ao sofrer esse impacto ele perdeu os sentidos. Depois veio a si e a seguir começou a ter convulsões», conta. Eunice recorreu aos seus conhecimentos e à presença de espírito para agir.

«Tive sempre perto de mim o treinador dele, o Márcio Ferreira, que também tem formação de suporte básico de vida. Ele ajudou-me e esteve junto comigo. Afastámos os colegas para não estarem ali perto e fizemos o que sabíamos. Colocámos o jogador na posição lateral de segurança e deixámo-lo acabar a convulsão própria da dor, digamos assim. Foi a pancada que recebeu que estava a provocar aquilo. Ele não falava, mas tentámos sempre que estivesse consciente até à chegada da ambulância. A ambulância ainda demorou um pouco, porque quem ligou não tinha dito que a situação era urgente. Deve ter demorado 20, 25 minutos. Quando chegaram, os bombeiros chamaram a ambulância do INEM. Foi estabilizado na ambulância e depois foi para o hospital.»

Mal ela sabia

Mais tarde, Eunice soube que o atleta recuperou bem e voltou para casa no mesmo dia. Ela procurou respirar fundo, mas não foi fácil. «Quando estamos com aquela adrenalina toda, somos capazes de tudo, digamos assim. Mas depois de o jogador já estar na ambulância, senti a descarga da adrenalina. Fui tomar banho, mas não consegui almoçar sequer. Ainda estava tão abalada de ter acontecido aquilo ao miúdo que não consegui comer. Mal eu sabia…»

Mal ela sabia. À tarde, Eunice tinha o jogo entre o Famalicão e a Juveforce para apitar.

«Aí foi uma coisa que ninguém está à espera que aconteça. O jogador sofreu uma pancada no tornozelo. Foi assinalada a falta, foi mandada a assistência, ele saiu do campo, estava a ser assistido, pôs-se em pé e quando começaram a falar para ele, não reagia sequer. Estava de olhos abertos, a olhar para o infinito.» O jogo ainda não tinha terminado, e Eunice procurou gerir a situação ainda em campo: «O meu assistente dava-me feedback através do auricular. Perguntei se era preciso parar o jogo, ele disse: ‘Para já não.’ Ele estava a ser ajudado, deitaram-no no chão.»

Nesse campo estava uma enfermeira, mãe de um jogador, que acudiu também à situação. Quando apitou para o fim do jogo, Eunice foi ajudar. «O jogador de repente parou de respirar, do nada. Foi aguentar até chegar a ambulância. Não foi preciso fazer a manobra de suporte básico de vida em si, mas fazíamos o toque no peito a carregar com força e ele reagia, novamente na posição lateral de segurança. Estava assim durante alguns minutos e tornava a parar de respirar. Aconteceu isso três vezes até à chegada da ambulância.»

Além da assistência ao jogador, nos dois casos Eunice focou-se também nos outros jogadores, evitando que presenciassem o que se passava. Neste segundo jogo, estava ainda para mais em campo um irmão do atleta. «Estava um irmão dele a jogar também, um irmão mais velho. Mandámos os miúdos das duas equipas tomar banho e só depois é que foi chamado o irmão. Ele ficou aflito, mas lá o conseguimos acalmar. Dissemos-lhe que estávamos à espera da ambulância. A situação naquele momento era grave e ele tinha de ir para o hospital.»

Também neste caso, o jogador voltou a casa nessa madrugada. Teria sido ansiedade, aliada ao facto de o atleta sofrer de asma, a desencadear a crise. «Não detetaram nada e ele estava bem, veio embora. Ainda bem», diz Eunice.

A importância da formação em «minutos que podem salvar vidas»

O que aconteceu reforça a importância de ter noções básicas de primeiros socorros para quem anda no futebol, defende a árbitra: «Acho que devia ser mesmo, se calhar vou usar a palavra, obrigatório. Tanto nos clubes como na arbitragem, porque nós lidamos com centenas e centenas de jogos, centenas e centenas de miúdos e graúdos.» Muitas vezes, falta esse conhecimento, sobretudo no futebol de base: «Há clubes que nem massagistas têm. Quando acontecem estas situações assim mais graves e não está ninguém presente se calhar o pior pode acontecer. Não estou a dizer que fosse diferente estando eu presente, ou outro colega com a mesma formação. Mas pelo menos estava ali a fazer alguma coisa. São minutos que podem salvar uma vida.» Também é raro existirem nos campos meios adicionais, como desfibrilhadores. Ou pessoas com conhecimento para os operar: «Há clubes, muito poucos, que já têm desfibrilhador. Mas nem toda a gente o pode usar, têm que ser pessoas certificadas.»

Além da formação que tem, Eunice consegue manter-se calma perante situações de crise. «Tenho essa característica», diz. «Uma colega já me disse várias vezes que não sabe como é que eu consigo manter-me com tanto sangue frio. Uma vez, num jogo, um menino fraturou o pulso. A fisioterapeuta do clube virou as costas, não conseguiu ajudar o miúdo, e eu agi: ‘Dá-me isto, dá-me aquilo.’ Dessa vez também pedi ajuda do massagista da equipa da casa. Quando o INEM chegou já o menino estava com o pulso estabilizado e pronto para entrar na ambulância. Quando é assim, se estiverem pessoas para ajudar, não vou querer fazer tudo sozinha. Muitas vezes temos lá pessoas mais credenciadas. Já temos apanhado clubes que têm enfermeiros. Se estiver num jogo e me disserem que está lá um bombeiro, entra. Primeiro está o bem-estar físico do jogador. O que interessa na altura é podermos ajudar.»

E no dia seguinte, começar de novo

Mas isso não quer dizer que não se fique afetado. Voltando ao sábado em que tudo aconteceu. «Quando cheguei a casa, a minha cabeça…. Não me apetecia nada, não apetecia comer, não apetecia dormir. No dia seguinte tinha que ir fazer mais jogos e pensava: ‘Se isto torna a acontecer…’ Foi uma descarga de adrenalina que não consigo explicar. No fim desse dia liguei ao meu presidente para me tirar os jogos o dia a seguir. Mas ele disse: ‘Eunice, não consigo. Não temos árbitros que cheguem, tens de ir.»

E foi. «Graças a Deus os jogos correram todos bem, não houve nada de mais…»

Não se livrou foi das piadas dos colegas. «Sempre a gozarem comigo: ‘Tu não podes apitar. Sempre que apitas vai uma ambulância para o teu campo!’»

É a vida de árbitro no futebol distrital. «Fazermos sete, oito jogos por fim de semana é normal. Dos benjamins até aos seniores», diz Eunice. Quem o faz, fá-lo por gosto. No seu caso, a arbitragem é uma paixão e vem de família.

Paixão de família e uma carapaça para o que se ouve das bancadas

«O meu pai também era árbitro. Ao fim de semana ele ia para os jogos e eu ia com ele e começou a ficar o bichinho. Independentemente dos nomes que chamavam… Eu adorava aquele ambiente. E assim que pude tirar o curso tirei.» Foi evoluindo como árbitra: «Estamos sempre a aprender. Quando comecei era mais tímida, mais insegura. Depois ao longo dos anos a pessoa começa a ficar mais madura e a sentir muito mais segurança a apitar um jogo.»

Também se ganha uma carapaça em relação ao que se ouve nos campos de futebol. No caso de Eunice, agravado por ser mulher. Ela continua a ouvir tiradas machistas vindas das bancadas: «’Vai lavar a louça, vai coser meias…’ Isso infelizmente continua. Mas nós dizemos: ‘Deixa. Olha, vêm para aqui descarregar a semana’… É deixá-los falar, como costumamos dizer.» Não mudou ao longo dos anos, diz: «Acho que não mudou nada. Acho que hoje em dia ainda é pior. Ainda nos tratam muito mal. E quem nos trata pior são as mulheres.»

«Apesar de o árbitro ter evoluído tanto, as pessoas ainda não veem que o árbitro também é um ser humano e que erra como outros erram. E que um árbitro também trabalha, também treina todos os dias, faz observação dos jogos como os treinadores fazem da equipa com que vão jogar. Um árbitro faz isso tudo. O problema é que o árbitro não pode errar.»

Pelo dinheiro não é

Há 26 anos que Eunice concilia a arbitragem com a vida profissional. Agora faz trabalho doméstico, depois de já ter trabalhado com crianças e com idosos. Faz também parte da direção da APAF e o tempo que dedica à arbitragem é muito: «No domingo passado saí de casa eram sete e meia da manhã e cheguei às sete da noite. É chegar a casa e preparar as coisas para o dia a seguir. Depois apanhar chuva, frio… É mesmo por amor à camisola, não é por mais nada.»

Não é também pela compensação financeira que os árbitros recebem, diz. Na AF Aveiro, um árbitro recebe no máximo 32 euros por jogo como prémio de transporte. «E estamos a falar de um jogo Sabseg (Divisão de Elite Distrital)», diz Eunice. Daí para baixo os valores são ainda mais reduzidos, e menores ainda para os assistentes. Com as despesas, pouco fica. «Na AF Aveiro o prémio de transporte é o mesmo quer eu faça um jogo a cinco quilómetros de casa, em Aveiro centro, quer vá a Castelo de Paiva ou Arouca. Se ao final do mês tirarmos ao dinheiro que recebemos o que gastamos na gasolina, nas portagens, nos pneus, no óleo, nos travões, não ficamos com quase nada. É o que eu digo: nenhum árbitro anda aqui pelo dinheiro, é mesmo pela paixão que temos pela arbitragem.»

Eunice não pretende desligar-se por completo no final da época, quando terminar a carreira. Em nome dessa paixão, vai continuar a sair de casa. «Já disse aos meus colegas que independentemente de ser a minha última época vou andar atrás deles», ri-se: «Se for preciso, até de bengala.»