Eusébio da Silva Ferreira levanta-se e vira-se para trás. Grita, sente que a eliminatória está ganha. As 34 mil almas inglesas levam as mãos à cabeça, em Highbury Park ecoa o grito dos 1500 portugueses: «Benfiiiiiccccaaaaaa!»

O Arsenal-Benfica de 1991 [6 de novembro] é tudo o que o adepto idealiza numa grande noite europeia: futebol de ataque, incerteza, golos, o coração aos solavancos, um estádio mítico a rebentar pelas costuras e, claro, a vitória na eliminatória.

Esta é a última edição da saudosa Taça dos Campeões Europeus. E um ensaio para a Liga dos Campeões do ano seguinte. Benfica e Arsenal defrontam-se bastante cedo na prova, logo na segunda ronda, e o vencedor segue para a fase de dois grupos: o vencedor de cada agrupamento joga a final – no caso, Sampdoria e Barcelona.

Folhear o álbum sagrado, lembrar a conversa à mesa do café sobre o Arsenal-Benfica, evocar o quizz das boas memórias desportivas, abrir a enciclopédia dos grandes feitos na página feita.

O Maisfutebol começa por aqui o reencontro entre águias e gunners, agendado para… Roma.

O '11' do Arsenal a 6 de novembro de 91 
O '11' do Benfica com Paneira a lateral direito

«Bebemos todos cerveja e champanhe na viagem de regresso a Lisboa»

O 1-1 na Luz não abre boas perspetivas para Londres. Isaías, na melhor forma da carreira, ainda abre o marcador, mas Kevin Campbell empata logo a seguir. O otimismo desaparece, o empate nas Antas não ajuda a motivar as tropas e a direção do presidente João Santos decide improvisar: o prémio de jogo é aumentado para 5000 contos – 25 mil euros, uma fortuna à época.

O treinador Sven-Goran Eriksson parte para Londres, também ele, com dúvidas. William, Paulo Sousa e Rui Águas ficam em Lisboa, lesionados, e o centro da defesa acaba por ser entregue a dois meninos da formação: Paulo Madeira e Rui Bento. No banco fica Pedro Valido.

VÍDEO: o 1-1 no Estádio da Luz

O génio de Vítor Paneira fica remetido ao lugar de lateral direito, António Veloso joga na esquerda e, na baliza, Neno. Silvino é o guarda-redes suplente. Daí para a frente, muita qualidade: Vasily Kulkov e Jonas Thern a agarrarem o jogo no meio, Stefan Schwarz a fazer o corredor esquerdo, Rui Costa (em estreia europeia) a cair para a direita e Sergei Yuran isolado na frente, pau para toda a obra.

Falta mencionar Isaías, o homem que está em todo o lado. No centro do ataque, nos flancos, a ajudar os médios, a decidir. É ele que recorda ao Maisfutebol, os pormenores dessa «vitória impossível».

«Chegámos a ser sufocados pelo Arsenal. Não fui só eu, toda a equipa aguentou bem a pressão do Arsenal. Depois, o Kulkov marcou o segundo golo e eu bisei. Foram golos belíssimos, todos eles, e uma verdadeira lição aos que não acreditavam em nós. E eram muitos. Todos, aliás, desde dirigentes a adeptos. Ninguém sentia ser possível vencer o Arsenal em Londres.»

Isaías sabe do que fala. Estaria a pensar, certamente, nas duas bolas nos ferros de Neno até ao minuto 90 e em mais uma já no prolongamento. É tudo verdade, mas o Benfica reage muito bem a uma entrada tremida e a um golo do Arsenal (Colin Pates) aos 19 minutos. Empata antes do intervalo (Isaías, claro) e parte para uma segunda parte segura, a expor-se menos aos piques de Campbell e das bolas lançadas à procura da cabeça do gigante Alan Smith.

Kulkov e Rocastle, ambos já falecidos, na batalha de Highbury (FOTO: SL Benfica)

No prolongamento, tudo sai bem. César Brito desequilibra na ala direita – boa aposta de Eriksson – e o 1-2 aos 100 minutos deixa o Benfica numa posição de grande conforto. Isaías arranca, Iuran recebe e, já na área, deixa para o pontapé fatal de Kulkov.

Vasily Kulkov, um médio de grande inteligência, recém-falecido, é outro dos heróis dessa grande noite. Ao nosso jornal, em 2012, deixa pormenores deliciosos.

«Tivemos total liberdade nessa viagem. Fomos fazer compras à cidade, comemos e bebemos o que bem nos apeteceu. Acho que só os jogadores sentiam ser possível fazer o que fizemos. No avião, já de regresso a Lisboa, bebemos todos cerveja e champanhe. Tivemos uma receção maravilhosa em Portugal.»

VÍDEO: o prolongamento do jogo em Londres (imagens RTP)

«Isaías, um brasileiro com a classe de Pelé e Eusébio»

Highbury Park a abarrotar, o Arsenal a jogar já em desespero e o profeta Isaías a impor os seus mandamentos. A dez minutos do fim, recebe ainda longe da área, arranca e faz tudo sozinho. A bola entra na baliza de David Seaman e é a loucura.

Eusébio de pé, Mats Magnusson – não convocado – aos saltos, o menino Rui Costa a saber o que era o Benfica europeu dos 60s e 80s. É um jogo extraordinário, uma grande noite europeia, daquelas que tantas vezes nos chegam só pela telefonia.

O Daily Mirror acaba o jogo a comparar Isaías a Pelé e Eusébio: «Um Arsenal triste ficou lavado em lágrimas por culpa de Isaías, um brasileiro com a classe de um Pelé ou de um Eusébio e que expôs a falta de ‘certificado de classe’ dos gunners

A Bola fala n’«O Regresso do Glorioso», o Record diz que a equipa de Eriksson tem «A Europa a seus pés». A quente, ainda a quente, este jogo faz de facto lembrar o grande Benfica de épocas passadas, à semelhança do que faria em março de 1994 o 4-4 de Leverkusen.

O Benfica lá segue para a fase de grupos, mas o encanto de Londres esmorece. Acaba atrás de Barcelona e Sparta Praga, apenas com uma vitória (5-0) sobre o Dínamo Kiev.

O Arsenal-Benfica de 91 faz parte dos jogos imortais do futebol português. Se Jorge Jesus e restante staff se lembrarem de forrar as paredes do balneário com as imagens desse jogo, o plantel 2020/21 só pode sentir inveja dessa grandeza.

Voltará o Benfica algum dia a ser assim na Europa?

FICHA DE JOGO:

Highbury Park, Londres, 35815 espetadores
Árbitro: Aron Schmidhuber (ALE)

ARSENAL: David Seaman; Lee Dixon, Tony Adams, Nigel Winterburn e Colin Pates (Steve Bould, 106); Anders Limpar (Perry Groves, 74), David Rocastle e Paul David; Kevin Campbell, Alan Smith e Paul Merson.

Não utilizados: Alan Miller (GR), David O’Leary e David Hillier
Treinador: George Graham

BENFICA: Neno; Vítor Paneira, Paulo Madeira, Rui Bento e Veloso; Rui Costa (César Brito, 80), Jonas Thern, Vasily Kulkov e Stefan Schwarz; Isaías e Sergei Yuran (José Carlos, 119).

Não utilizados: Silvino (GR), Valido e Pacheco.
Treinador: Sven-Goran Eriksson

Golos: Colin Pates (19), Isaías (35 e 109) e Kulkov (100)