Em Portugal há um futebolista que conhece por dentro o Bayer Leverkusen, adversário do FC Porto na Liga Europa. O lado bom e o lado negro. Falamos de Carlinhos, médio de 25 anos, atualmente emprestado pelo Standard Liège ao Vitória Futebol Clube, de Setúbal.

Em 2013, com apenas 17 anos, Carlinhos ganha o bilhete da fortuna. Pérola do Desportivo Brasil, o menino recebe o convite para jogar na Alemanha e o plano perfeito para abandonar o apartamento «estreito, degradado, com mofo nas paredes» que divide com a família numa favela em São Paulo.

A mudança do Brasil para Leverkusen é acompanhada ao pormenor no documentário Mata Mata - Spiel des Lebens, realizado por Jens Hoffmann e Cleo Comino. A abordagem do emblema alemão, a complexidade no momento da assinatura do contrato, as dificuldades de adaptação a um país escuro e a uma língua estranha.

O Maisfutebol aproveita estes dois jogos entre o Bayer e o FC Porto para conversar com Carlinhos e lembrar esses dias de 2012 e 2013, dias de sensações antagónicas. De um lado, o «privilégio de jogar num grande da Europa», do outro as «grandes dificuldades de adaptação».

«Não entendi bem as exigências profissionais do Bayer»

No documentário de Hoffmann e Comino, as primeiras imagens mostram a mãe de Carlinhos a fazer a mala do filho, orgulhosa pela aventura que começa ali. «Esta é a camisola [do Bayer] que mudará a nossa vida.»

A mãe de Carlinhos, como todas as mães, tem razão. A casa da família é renovada e ampliada, há uma nova televisão e uma aparelhagem de som ultra-moderna. As ruínas e a pobreza ficam para trás, Carlinhos ajuda toda a família a olhar com esperança para a vida.

Vale a pena o sacrifício de jogar na Alemanha, longe da família e dos amigos, só com 17 anos?

O filme Mata Mata, altamente recomendável, dá uma visão ampla da experiência sócio-desportiva do atual futebolista do Vitória de Setúbal.

A dada altura, sabe-se que dois dos amigos mais próximos de Carlinhos morrem. Um por overdose e outro num acidente com um carro roubado. É disto que Carlinhos foge no Brasil. Sim, o Bayer Leverkusen vale muito a pena.

«Cheguei a Leverkusen com 17 anos. Fui contratado antes de ser maior de idade ainda. Foi marcante, claro. Tinha uma carreira muito pequena, ainda a começar, e passei logo para um grande da Alemanha», lembra o jogador sadino em conversa com o Maisfutebol.

«Foi a primeira vez que fui confrontado com a exigência do profissionalismo. Senti uma enorme honra por ter trabalhado e jogado lá em Leverkusen. Foi uma aprendizagem tremenda. Eu era só um menino e acabei por encontrar dificuldades com a língua e com o frio. Foi difícil para mim, até porque eu era demasiado imaturo e não entendi bem as exigências profissionais do Bayer. Mesmo as questões táticas. Mesmo assim foi um privilégio ter passado por lá.»

Oito anos depois, Carlinhos é um atleta muito mais maduro. Mesmo na forma como mede as palavras. Em 2013, ainda no olho do furacão, os desabafos são mais excruciantes.

«Não tenho nada a dizer, eles não gostam de mim. Sinto que podia matar ou morrer», chora Carlinhos, com a cara enterrada no travesseiro e as persianas de casa fechadas, como se vê no filme de Hoffmann / Comino.

«Cheguei a uma cultura diferente e foi um baque»

Na primeira metade da época 2012/13, Carlinhos ainda faz três jogos pela equipa principal do Bayer Leverkusen. Todos na Liga Europa: Rapid Viena, Metalist e Rosenborg. No início de 2013, acaba por ser emprestado ao Jahn Regensburg, da II Bundesliga.

A luta pela manutenção e a neve revelam-se adversários demasiado fortes. Carlinhos não aguenta e volta para São Paulo no verão de 2013. Sobram as memórias de uma experiência desportiva única, o lado bom, lá está, de uma aventura complexa em Leverkusen.

«É verdade, todos os jogos que fiz no Bayer foram na Liga Europa. Para mim foi único ter entrado logo em jogos da UEFA. Realizei um sonho, só com 18 anos. Na altura um dos médios estava castigado e o treinador optou por mim. Foi uma enorme surpresa, claro, porque eu não estava a ser utilizado. Era muito novo, não era fácil ser opção. Esperei, tive calma e aproveitei esses três jogos na Liga Europa», diz Carlinhos ao nosso jornal, a dois dias da visita do seu Bayer ao Estádio do Dragão.

Desse plantel de 2012/13, os resistentes são Lars Bender e Karim Bellarabi. Carlinhos, nos verdes 18 anos e a fugir de uma pobreza insuportável no Brasil, lembra também os nomes de «Dani Carvajal e Renato Augusto», dois dos que lhe eram mais próximos e que têm uma carreira riquíssima para apresentar. O primeiro no Real Madrid e na seleção de Espanha, o segundo fundamentalmente na seleção do Brasil.

«Não me adaptei à Alemanha. Saí muito novo de casa, cheguei a uma cultura diferente e foi um baque. Despertei disso mais tarde. Não sinto vergonha em assumir isso. Nunca tinha abandonado a minha família, qualquer jovem sentiria essa dificuldade. Mas foi essa experiência na Alemanha que também me deu estabilidade para responder melhor quando voltei mais tarde à Europa [2015, Aarau].»

São Paulo-Leverkusen-Suíça-Estoril-Liège-Setúbal

O evidente talento de Carlinhos chega a Portugal em janeiro de 2017, pela porta do Estoril-Praia. As coisas correm-lhe tão bem que, meio ano depois, o Standard leva-o para a Bélgica. 35 jogos depois e uma curta passagem pelo Brasil [Guarani] pelo meio, o atleta chega a Setúbal.

Carlinhos leva 25 jogos e três golos pelo Vitória, é uma peça de grande influência para Júlio Velázquez e carrega no currículo o peso do Bayer Leverkusen.

«É um clube de topo, dos maiores da Alemanha. Já esteve em finais da Liga dos Campeões e isso diz tudo. Tem condições de trabalho maravilhosas, proporciona um ambiente de conforto e luxo aos jogadores. Vivi momentos lindos no Bayer, só tinha de me preocupar em jogar futebol. O estádio é lindo, dos mais belos que vi na vida», lembra agora.

A história de Carlinhos é igual à de tantos meninos brasileiros. A necessidade leva-os a partir, quiçá, demasiado cedo para países radicalmente distintos. Impreparados, acabam por falhar e voltar ao ponto de partida.

É isso que se pode ver em Mata Mata – Spiel des Lebens. Uma lição.

VÍDEO: o trailer de «Mata Mata» com Carlinhos