Um século de história. Não há ponta de exagero, ora vejam bem: o primeiro FC Porto-Sporting registado nos arquivos do futebol nacional data de 4 de junho de 1922. A União Portuguesa de Futebol (predecessora da FPF) coloca os campeões distritais de Porto e Lisboa olhos nos olhos, numa final a duas mãos. Objetivo: definir um campeão de Portugal.

É tarde de verão, quente, e o sol bate de frente com o muro do Campo da Constituição. Três metros azuis e brancos e o inconfundível Foot-ball Club do Porto a legendar o símbolo revisto e atualizado, por esses dias, por um artista gráfico de nome Simplício.

Reza o Almanaque do FC Porto, obra de Rui Miguel Tovar, que esse clássico – nesse jogo de estreia não enverga ainda esse estatuto – acaba com 2-1 para os portistas e que o goleador da partida se chama Tavares Bastos. Epíteto de craque, está bom de ver.

O bom do Tavares Bastos bisa para o FC Porto, Emílio Ramos até marca primeiro para o Sporting, mas o herói da tarde é outro. Chama-se João Nunes e joga ao lado de Tavares no ataque da equipa orientada por Adolphe Cassaigne, um francês rendido aos prazeres da bola na Invicta.

Porquê João Nunes? Nos primórdios da modalidade, muito antes de os craques serem milionários e os profissionais viverem embalsamados numa pele de semideuses, os jogadores de Porto e Sporting são só homens. Cidadãos comuns e amadores. E os plantéis não são bem plantéis. São grupos de uma dezena e meia de amigos, no máximo. Não há bancos de suplentes, não há equipas B.

João Nunes é o quinto a contar da esquerda

Ora, o primeiro FC Porto-Sporting da história tem o azar de coincidir com a romaria do Senhor de Matosinhos. A festividade, religiosa e pagã, mantém dimensão e influência social até hoje, mas em 1922 ainda mais.

João Nunes, um dos avançados do monsieur Cassaigne, participa no desfile matosinhense e acaba por se atrasar no caminho para a Constituição. O Sporting quer jogar, o senhor árbitro Barley – requisitado à coroa britânica a dias da partida – quer jogar, mas o FC Porto bate o pé: enquanto o João não chegar, não há bola para ninguém.

O Livro de Ouro do FC Porto menciona a existência de «mal-estar e ânimos incensados» entre os clubes. Porquê? Por culpa da federação e de um jogo da Seleção Nacional agendado para Lisboa, com a Invicta a ficar de fora e a direção azul e branca a lamentar o «sabor acre de centralismo peçonhento» que, diz, vigora no nosso país.

Não há armistício, e muito menos paz, nesse futebol ainda tão pequeno. O conflito não se limita a Norte vs Sul, mas também a futebol vs política. O FC Porto não aceita que o desabrochar cultural (Teatro de São João, Estação de São Bento, Paços do Concelho) esqueça a maior instituição da cidade. Exige um estádio condizente com os pergaminhos do emblema azul e branco.

A equipa do Sporting em 1922

Voltemos ao Clássico. Cinco, dez, um quarto de hora de espera. São 16h30 e não há forma do rapaz aparecer. O juiz Barley encosta-se à barraca de comes e bebes, os espetadores ameaçam um plano de fuga, e eis o herói do primeiro clássico que ainda não é clássico. João Nunes, ofegante, a correr de Matosinhos à Constituição, só para vestir o equipamento e saltar lá para dentro.

Os 22 nomes históricos utilizados pelos treinadores (Charles Bell é o técnico do Sporting) são os seguintes:

FC PORTO: Lino; Júlio Cardoso e Artur Augusto; Mota, Carneiro e Floriano; Brito, Balbino, Alexandre Cal, Tavares Bastos e João Nunes.

SPORTING: Amadeu Cruz; Joaquim Ferreira e Jorge Vieira; João Francisco, Filipe dos Santos e Henrique Portela; Torres Pereira, Jaime Gonçalves, Francisco Stromp, Emilio Ramos e José Leandro.

Entra primeiro o Sporting, camisola dividida a verde e branco, a encimar calções negros. Das bancadas, mais aplausos do que assobios.

Vem atrás o FC Porto, muito atrasado, e a querer resolver tudo desenfreadamente. É mau sinal e o Sporting, mais defensivo, surpreende: passe longo de Jorge Vieira, Ramos isola-se e cala a Constituição.

Mas há jogo e há emoção. Antes do intervalo, Balbino entrega a Tavares Ramos e este faz o 1-1. Tudo se decide no segundo tempo. Já perto do fim, mais um passe do valioso Balbino, drible de Tavares Ramos a enganar Amadeu e golo.

2-1 na Constituição na primeira-mão e 2-1 no Campo Grande, com o Sporting a empatar a final. Tudo acaba por ser resolvido no Campo do Bessa: 3-1 para os dragões, golos de Balbino, Brito e João Nunes, o rapaz da romaria matosinhense.