As mãos de Cláudia trataram Zico, cuidaram de Cláudio Adão, Nunes, Adílio e Jorginho. Ajudaram Júnior e Andrade, Leandro e Rondinelli. Todos figuras sagradas do Flamengo, todos pacientes da fisioterapeuta que se apaixonou há três anos pela cidade do Porto.

Cláudia Rodrigues Cardoso chegou em 2003 ao Mengão e por lá ficou até 2018. Foi coordenadora de todos os profissionais de fisioterapia, acompanhou o futebol, a natação, o judo, o futsal, até a ginástica.

Mas não só. Cláudia é nora de Gilberto Cardoso Filho, ex-presidente do Flamengo no final dos anos 80 e depois em 2002, que por sua vez é filho de Gilberto Cardoso, o homem que liderou o gigante da Gávea nos anos 50 e o único a merecer uma estátua ao lado de Zico - «fica na avenida que vai ter ao Maracanãzinho».

Cláudia ao lado do lendário Cláudio Adão (arquivo pessoal)

Perante uma ligação emocional tão forte ao Flamengo, como é que Cláudia veio parar ao Porto e ao seu gabinete na zona do Pinheiro Manso, bem perto do Estádio do Bessa? A conversa começa por aí.

O meu filho tem 12 anos e o nascimento dele mudou tudo. Eu era a coordenadora dos fisioterapeutas e tinha um ritmo diabólico de trabalho. Ia com várias modalidades para todo o lado, estava cansada. Além disso, havia a violência, nós já não nos sentíamos seguros.»

A violência, a violência que faz da Cidade Maravilhosa a Cidade Perigosa. «Todos os dias víamos as mesmas notícias: crime, morte, assalto. A partir de 2016 passei a pensar seriamente em sair do país», conta Cláudia ao Maisfutebol, após dispensar o último paciente do dia.

«A minha ideia inicial era mudar-me para Itália, mas o país dificultou muito a emissão de um visto. Então, em 2017, acompanhei uma delegação da federação brasileira de ginástica a uma prova internacional em Cantanhede e o Porto apareceu na minha vida.»

Cláudia só conhecia Lisboa mas, a conselho de dois amigos, quis ver com os próprios olhos se a Cidade Invicta era tudo o que lhe diziam. Parecia demasiado bom para ser verdade, mas a realidade suplantou as expetativas.

«No final dessa prova em Cantanhede tirei dois dias para visitar o Porto e ver o que achava da cidade. Apaixonei-me mal cheguei à Ponte da Arrábida. Sou louca pelo Porto. Falei com o meu marido e decidimos logo: ‘temos de ficar aqui’. Nem avisei o Flamengo logo, porque sabia que eles iam fazer tudo para eu continuar lá.»

Cláudia ainda com o uniforme do Flamengo (arquivo pessoal)

«No Brasil andávamos sempre aflitos»

Cláudia instalou-se no Porto, abriu o projeto Cuidar – na Rua Joaquim Leitão, em Ramalde – mudou «radicalmente» todos os seus hábitos. Anda a pé para todo o lado e, mais importante do que isso, fica de coração sossegado sempre que o filho sai para a escola.

«No Brasil andávamos sempre aflitos. A segurança não tem comparação possível e isso não tem preço. Um dos maiores prazeres é andar a pé na cidade. Passo por várias zonas e digo ‘é aqui que quero morar, é aqui que quero morar’. Eu quero morar no Porto inteiro», brinca Cláudia Rodrigues Cardoso.

Sempre que vou ao Brasil faço questão de ir ao Flamengo. Digo que vou lá um bocadinho e fico sete horas. Falo com todos, do presidente aos senhores da limpeza. Mas não troco o Porto por nada. Empobreci e, ao mesmo tempo, ganhei qualidade de vida.»

O piloto Gonçalo Gomes é um dos pacientes de Cláudia (arquivo pessoal)

No gabinete do Cuidar, Cláudia trata e acompanha «muitos futebolistas famosos» - «não posso divulgar os nomes, muitos procuram-me sem o conhecimento dos clubes» -, mas também judocas, praticantes de crossfit, tenistas, pilotos de automóveis e, antes da pandemia, bastantes pessoas de idade mais avançada.

Este último segmento de clientes foi, de resto, «o maior desafio». «O tipo de lesão comum em Portugal é muito diferente, por causa do clima. Do frio. As lesões que eu encontrei aqui são muito raras no Brasil: encurtamento da via anterior, retificação da coluna cervical, espondilite anquilosante – lesões que no Brasil afetam um habitante em um milhão e que aqui são muito comuns.»

«Não entendo nada de futebol, só de lesões de futebol»

Pouco depois de Cláudia Rodrigues Cardoso fugir da confusão do Rio de Janeiro e abandonar o Flamengo, Jorge Jesus chegou ao clube. Não se cruzaram por pouco.

«Numa das minhas visitas ao Fla tentei conhecê-lo, mas ele estava de férias em Portugal. Cruzámo-nos no ar e não tive o prazer de conhecê-lo», conta Cláudia, uma excelente conversadora, sempre com mais uma história para contar.

Sou muito fã do Zico, apesar de eu não entender nada de futebol. Só entendo de lesões de futebol. Quando tratei o Cláudio Adão [campeão paulista em 1978 e 1979, campeão brasileiro em 1983 – ano em que chegou a treinar no Benfica, antes de voltar ao Fla] eu não fazia ideia quem ele era. O Nunes a mesma coisa, nem o Júnior eu conhecia.»

Cláudia criou uma amizade grande a todos esses craques do passado do Mengão e o último encontro até teve lugar num aeroporto. «A equipa de Masters (veteranos) estava a dar autógrafos e viram-me. Vieram todos a correr para mim, com toda a gente olhar e a perguntar quem eu era. Essa é a minha ligação ao Flamengo.»

Cláudia rodeada pelos veteranos do Flamengo no aeroporto (arquivo pessoal)

No Porto, Cláudia prefere não estar ligada a nenhum clube, apesar dos «vários pedidos». Por ora, a profissional de saúde dedica-se em exclusivo ao seu gabinete de atendimento, aos passeios pela cidade e, à frente de tudo, ao filho.

«Ele joga futebol, sempre jogou no Flamengo. Aqui já esteve nas escolinhas do FC Porto e do Boavista, mas gostámos mais da Escola Hernâni Gonçalves. Já falei com pessoas do Flamengo para procurar abrir uma escolinha do clube aqui na cidade.»

Zico, Andrade, Júnior, Adílio e Nunes são a melhor carta de referência de Cláudia Rodrigues Cardoso. A carioca que se deixou enamorar pelas ruas do Porto.