O telefone da casa dos Correia toca. Uma, duas, três vezes. A mãe de Luís atende e do outro lado da linha está Reinaldo Teles, chefe do departamento de futebol do FC Porto.

‘Luís, o senhor Reinaldo diz que tens de ir para o estágio da equipa’.

Era sexta-feira e eu estava a contar jogar pelos juniores no sábado à tarde. A equipa tinha seguido para estágio, mas o problema é que telefonavam para casa do Zé Beto e ninguém atendia. Não o conseguiram localizar. Até que ligaram para minha casa e a minha mãe atendeu.»

Correia fala ao Maisfutebol a partir da Ilha de Wight, no Canal da Mancha. Já lá iremos. Primeiro importa recordar o dia mais importante da sua carreira. O dia em que, pela enésima vez, ficou «na sombra» - a expressão é utilizada pelo próprio – de Vítor Baía.

O dia é 11 de setembro de 1988, jornada 4 do campeonato.

Mlynarczyck, campeão da Europa, do Mundo e dono da baliza do FC Porto, lesiona-se a dois dias da visita a Guimarães.

Zé Beto, o consagrado suplente, está afastado dos trabalhos da equipa por motivos disciplinares. Um desentendimento com o treinador Quinito tira-o dos treinos.

Restam os miúdos: Vítor Baía e Correia. Um com 19 anos, o outro com 18.

«Cheguei lá [ao estágio] e vi que só estava o Vítor. Eu estava tranquilo, porque sentia que não ia jogar. À partida seria ele, já era a segunda época do Vítor com o plantel principal», recorda Correia, à distância de 33 anos.

De repente, a serenidade dá lugar a uma angústia «que não se explica». «No treino do sábado de manhã, o mister Octávio Machado veio ter connosco e disse-nos que o Quinito ainda não sabia quem ia jogar. Mais tarde nesse dia, o mister Quinito veio ter comigo e perguntou-me como é que eu estava e se podia contar comigo. Aí sim, fiquei assustado (risos).»

Correia passa a noite em branco. Só no domingo de manhã, antes da ia para o Municipal de Guimarães, Quinito revela quem vai ao batismo.

Vítor Baía inicia nessa tarde uma história que chega aos 566 jogos pelo FC Porto – e às 80 internacionalizações por Portugal.

Luís Correia acaba por nunca se estrear pela equipa principal dos dragões em jogos oficiais.

«O mister Quinito optou pelo Vítor Baía e a História diz-nos que acertou», resume Correia, de bem com a vida e sem feridas por cicatrizar no mundo azul e branco.

O Vítor era mais velho do que eu um ano e jogava mais vezes do que eu, era normal. ‘É pena não haver duas balizas’, dizia o saudoso Costa Soares. Fui sempre o suplente dele, jogava de vez em quando. E fui o titular indiscutível dos juvenis quando o Vítor subiu aos juniores.»

«Fui sempre a ‘sombra’ dele. Nas camadas jovens e no primeiro ano de sénior. Depois ele teve tudo e eu não tive grande coisa. Mas já sabemos que no futebol isto pode acontecer.»

Para Correia (em cima, com as luvas na mão) tudo começa no FC Foz

A titularidade em Coimbra ao lado de Fernando Gomes e Madjer

Luís Correia nasce na cidade do Porto, mas dos quatro aos 12 anos vive na Alemanha, para onde o pai emigra. Volta à sua Foz do Douro a tempo de completar o ensino secundário e de iniciar um percurso nas balizas dos clubes do coração.

«Fui atrás de amigos meus às captações do FC Foz. Fiquei lá dois anos, até o FC Porto me contratar. O Boavista, o Benfica e o Sporting falaram com os meus pais, mas optei pelo meu clube do coração», conta Correia.

«Destaquei-me no torneio inter-associações. Não era normal o titular da baliza da seleção da AF Porto ser do Foz. Chamei a atenção do FC Porto aí, é verdade, mas o falecido Costa Soares já me tinha abordado no Campo da Ervilha. O FC Porto ganhava a toda a gente, foi ao Foz e não ganhou (risos).»

Correia antes de um Benfica B-Operário Lagoa no Estádio da Luz (arquivo pessoal)



Com 14 anos e milhares de sonhos por cumprir, Correia entra na Constituição e tem uma concorrência fortíssima: um tal de Vítor Baía, José Bizarro e José Carlos. Todos acabariam por fazer carreira na primeira divisão, ao contrário de Luís Correia.

«O Bizarro percebeu que ia ter dificuldades em jogar e foi para o Benfica. Ainda conseguiu ser campeão do mundo de sub20 em Riade. Eu ainda assinei contrato profissional com o FC Porto, mas só na época 88/89 é que fiz parte do plantel.»

Correia treina toda a época às ordens de Quinito e, mais tarde, de Artur Jorge.

«Jogava pelos juniores e no campeonato de reservas. Era o quarto guarda-redes, digamos assim. E fui o titular no Torneio Internacional de Coimbra. Jogámos contra a Académica de Coimbra e o Estrela Vermelha. O Artur Jorge deu-me a titularidade nesse torneio, ao lado de monstros como o Fernando Gomes e o Rabah Madjer.»

VÍDEO: Correia titular do FC Porto num torneio em Coimbra

A experiência no mundo das flores e a chegada ao Canal da Mancha

A conversa com Luís Correia surge por motivos completamente diferentes. Mas ganha vida própria. A história da antiga «sombra» de Baía é tão forte que o pedido de avaliação sobre Diogo Costa - e a comparação entre ele o antigo 99 - passa para segundo plano.

O que é feito de Correia, o guarda-redes que esteve a um passo (a uma opção) de ser titular do FC Porto no campeonato nacional?

«Estou desde 2013 em Inglaterra, mais especificamente na Ilha de Wight. Fica no Canal da Mancha, a 30 minutos de ferry de Southampton e Portsmouth», revela o ex-guarda-redes, «completamente afastado» do mundo do futebol.

«Trabalho numa empresa que tem 14 hotéis no Reino Unido. Sou o gerente do restaurante do hotel que temos na Ilha de Wight, o Bembridge Coast Hotel.»

Correia (ao meio) na festa de Natal do Bembridge Coas Hotel - arquivo pessoal

Luís Correia vive a dez minutos do hotel e, quando o clima o permite, dá-se ao luxo de ir a pé para o trabalho. Acorda todos os dias às seis da manhã e trabalha em dois turnos: das sete às 12 horas e das 16h30 às 21h30.

«Chego ao escritório, vejo o número de pessoas que temos a trabalhar e tenho de lhes organizar todo o trabalho. O hotel é grande, temos 500 clientes por dia e não pode falhar nada», descreve Luís Correia.

O clima «horrível» é o único ponto negativo a apontar. «É muito agreste mesmo, mas tenho alma de emigrante, como o meu pai já tinha. Aliás, vivo fora de Portugal desde 2005. Vivi oito anos em Venlo, na Holanda, onde fui chefe de produção numa empresa produtora de flores.»

VÍDEO: o regresso às Antas, na baliza do Penafiel

A loja de móveis em Lavra e o «presente envenenado» em Leça

Da baliza do FC Porto à floricultura e daí ao mundo da restauração. Mas não é só. Antes da primeira experiência fora de Portugal, Luís ainda se aventura no mundo dos móveis. Até uma gigante cadeia sueca estragar tudo.

«Deixei o futebol muito cedo, aos 30 anos. Comecei a trabalhar inicialmente com o meu antigo sogro no mundo do mobiliário. Depois divorciei-me e acabei por abrir um negócio meu em Lavra, nesse ramo. Aguentei-me até à abertura do Ikea. A partir daí o negócio não sobreviveu.»

Correia tem muito para contar, uma vida bem vivida. Só falta saber o que fez, afinal, no futebol profissional. Voltemos rapidamente à época 88/89.

«O Mly recuperou rapidamente, o Zé Beto foi reintegrado e as coisas voltaram à normalidade. No final da época, já com o treinador Artur Jorge, o FC Porto quis emprestar-me ao Vianense. Os clubes fizeram um protocolo e o objetivo passava por subir à 1ª divisão.»

Luís Correia passa de Viana de Castelo para Amarante e o contrato com o FC Porto expira em 1991.

«O Leixões fez-me um bom convite para jogar na nova 2ª Divisão de Honra, pedi ao presidente Pinto da Costa e eles lá me deixaram sair, apesar de haver má relação entre os clubes. O senhor Reinaldo Teles foi fundamental para que isso fosse possível.»

Aos quatro anos de bom nível em Matosinhos seguem-se mais dois anos em Penafiel e, finalmente, o regresso à 1ª Divisão Nacional em 1996, em forma de «presente envenenado».

«O Leça do treinador Rodolfo Reis foi contratar-me ao Penafiel, com a promessa de jogar regularmente. Estavam a tentar vender o Vladan ao FC Porto, mas ele ficou e eu não fiz um único jogo. Foi uma péssima opção para a minha carreira. Eu já conhecia o Rodolfo dos sub19 do FC Porto, sabia que ele não era uma pessoa fácil. A relação não foi boa.»

Da Ilha de Wight, no Canal da Mancha, com vista privilegiada para o passado.

E se naquele dia 11 de setembro, em 1988, Quinito tivesse apostado em Correia? «Nunca vamos saber a resposta, não é? Jogou o Vítor, o melhor de todos os guarda-redes que vi.»