À segunda-feira a noite, os The Cold Blooded Hearts juntam-se no estúdio da banda, em Watford. Louis ‘Chalky’ na bateria, Ron Campbell no baixo, Lee van Sargent na guitarra e Gaz na voz. São momentos sagrados de hard rock, a puxar pelos loucos anos 80, refrões orelhudos e cervejas mornas.

O último ensaio teve de ser cancelado. Por bons motivos, porém. Gaz, na verdade Gareth Ainsworth, tinha uma justificação forte. A sua equipa defrontou o Tottenham na FA Cup e o treinador teve de pedir desculpa públicas aos músicos pela falta: «Na próxima semana lá estaremos, rapazes.»

As paixões de Gareth Ainsworth são o futebol e a música, não necessariamente por esta ordem. É treinador dos Wycombe Wanderers, que competem no interessantíssimo Championship, e frontman nos The Cold Blooded Hearts. Cabeça no mundo da bola, coração entregue aos espíritos do rock n’roll.

O Wycombe caiu aos pés dos Spurs de José Mourinho, mas só nos últimos cinco minutos. O português elogiou o treinador Gareth e ficou curioso em saber mais sobre o vocalista Gaz. «Ele levou o clube da League One ao Championship, só pode ser bom. Quero ver um concerto da banda dele quando a pandemia acabar. Subir ao palco? Não, não, isso estragaria tudo.»

Gareth tem 47 anos, é treinador do Wycombe Wanderers desde 2012 e foi futebolista profissional entre 1991 e 2013 – foi treinador-jogador durante uma temporada. Preston North End, Cambridge, Lincoln, Port Vale, Wimbledon, Walsall, Cardiff, QPR e, claro, Wanderers.

Onde ficou a música no meio de tantos clubes e tanto futebol?

VÍDEO: os The Cold Blooded Hearts no estádio do Wanderers

«‘O gajo de cabelo comprido que é treinador de futebol’»

Gareth Ainsworth é uma personagem invulgar no desporto britânico. Conduz um Ford Mustang cor de laranja, tem Jim Morrison e Mick Jagger como ídolos maiores e cita frequentemente Kurt Cobain nas entrevistas que dá.

«Prefiro ser detestado pelo que sou do que odiado pelo que não sou.» Gaz adora Nirvana, The Doors e até é tratado por Wild Thing – canção dos The Troggs, mediatizada no final dos 60’s por Jimi Hendrix -, mas nunca negligenciou a ligação ao futebol.

«Subimos todos os escalões profissionais sem gastar um cêntimo a contratar jogadores», revelou ao The Guardian o treinador-rockeiro. «Este é um clube especial, com um sistema diferente. Sou eu que ainda trato do sistema de irrigação nos relvados, porque os funcionários não são profissionais. E está a ver estas cortinas aqui no meu gabinete? Ontem estavam na minha sala de jantar, em casa.»

Os The Cold Blooded Hearts em palco (Facebook da banda)

O orçamento é o mais reduzido do exigente segundo escalão britânico e os Wanderers de Wycombe seguem no último lugar. Têm 15 pontos e figuras como Adebayo Akinfenwa no plantel. Nunca, na história mais do que centenária, o clube estivera numa divisão tão alta.

A exigência é superlativa, Ainsworth admite, mas a relação com a música nunca esteve em causa. «Cresci em Blackburn, no noroeste. Passei a adolescência em festas de garagem e a curtir no mundo da acid house [estilo de música eletrónica]. O rock acabou por vencer e aos 15/16 anos comecei a ter as minhas bandas. Ao mesmo tempo jogava futebol nas camadas jovens dos Rovers.»

Os anos passam e Gaz mantém o cabelo comprido e o look de rock star dos 80s. Podia perfeitamente estar no palco com os Bon Jovi, os Aerosmith, os Def Leppard e ninguém o reconheceria.

«Este cabelo é a minha imagem. Já muitos dirigentes me disseram que se o cortasse podia estar agora num clube maior. Mas não seria eu e quero fazer as coisas à minha maneira. Com tempo e paciência. Não quero trabalhar para alguém que se refira a mim como ‘o gajo de cabelo comprido que é treinador de futebol’.»

E se esse convite chegasse de algum clube da Premier League? «Acreditem em mim, não haverá nenhum corte de cabelo.»

O cabelo longo é a imagem de marca de Gareth no banco (Foto: AP) 

«Prefiro o Mick Jagger ao Lionel Messi»

O toque do telemóvel de Gareth Ainsworth deixa a icónica Back in Black dos AC/DC no ar. É mais um ato simbólico de resistência do treinador à ditadura do clean and pure, que Gaz contesta no mundo do futebol britânico.

«Eu e os rapazes estamos a tentar lançar um CD, temos várias músicas novas. Isso jamais interferirá com os meus pensamentos, com o meu trabalho e com o meu balneário. O futebol está à frente e o resto da banda sabe isso.»

Gareth explica que a música o ajuda a esquecer o futebol «três horas por semana». 

«Preciso desse refúgio. A minha mãe, Christine, foi cantora profissional nos anos 60 e 70. O meu pai era o maior fã dos The Who. Apaixonei-me pelo rock antes de me apaixonar pelo futebol. Quando me perguntam se gostaria de ser o Mick Jagger ou o Messi, a resposta é sempre igual: ‘Prefiro o Mick ao Messi e preferia ser como o Mick’.»

Enquanto os antigos colegas jogavam golfe ou videojogos, Gaz aproveitava os tempos livres para ensaiar ou ir a concertos. «Vi os Sex Pistols e os The Who quando já era profissional», recorda, acrescentando mais uma prova da sua paixão pelos palcos e pelos discos.

Nas próximas semanas, Gareth Ainsworth tentará tirar os Wycombe Wanderers do último lugar do Championship. O sonho da FA Cup ficou para trás e morreu, por muito pouco, às mãos de José Mourinho.

Na próxima segunda à noite, já sabem. Gaz despe o fato de treino, veste a tshirt negra justa e os jeans coçados pelo tempo. Os The Cold Blooded Hearts juntam-se em estúdio.

VÍDEO: Gareth Ainsworth com os The Cold Blooded Hearts