Jogar em Wembley faz parte do imaginário de qualquer futebolista britânico. Sempre fez.

Há mais de meio século, Dave Whelan era um promissor defesa esquerdo do Blackburn. Aos 23 anos tinha chegado ao ponto mais alto da carreira: à final da Taça de Inglaterra, em Wembley, claro está.
 
A tarde de 7 de maio de 1960 seria marcante para ele, mas não pelas melhores razões. A poucos minutos do intervalo, Whelan foi atingido por Norman Deeley, extremo do Wolverhampton que até viria a ser o herói do jogo, com dois golos. Paramos a cassete naquele frame em que o jogador é projetado no ar enquanto olha para a perna direita já torta. O resto? Nem queira imaginar.

Sem analgésicos nem respiração assistida, o defesa do Blackburn sucumbiu às dores agudas. Acordou no hospital com o médico cirurgião ao lado. «Abri os olhos e perguntei-lhe quantos é que o Blackburn tinha marcado. Respondeu: 'Desculpe. Perderam 3-0.' Comecei a chorar», disse há dois anos em entrevista à BBC, poucos dias antes do Wigan (equipa que comprou em 1995 e que acaba de entregar ao neto), ganhar a Taça de Inglaterra ao Manchester City. Mas já lá vamos!
 

Dave Whelan esteve 18 meses sem poder treinar e só dois anos depois recebeu alta para voltar a competir. Mas já não era o mesmo. Tinha perdido velocidade, força e tinha ficado com perna direita mais curta do que a esquerda. A lesão, essa, também não estaria totalmente curada. Num jogo pelas reservas da equipa, a perna voltou a ceder, no mesmo sítio. Era o fim.

Mudar de ramo depois do fim


Apesar da tenra idade, Whelan já revelava ser um homem precavido. Na primeira equipa do Blackburn nunca chegou a ganhar mais do que 20 libras por semana (cerca de 550 euros ajustados à taxa de inflação). Para subsistir, precisava de uma fonte alternativa de rendimento, pelo que decidiu abrir uma mercearia com a mulher.

Foi aí que começou a carreira no mundo dos negócios. Paralelamente, trabalhava duas vezes por semana no mercado de Blackburn, numa banca de venda de produtos de higiene e medicamentos, onde aprendeu mais sobre o fenómeno da multiplicação do dinheiro.

Após mais uma tentativa gorada para regressar ao futebol, num clube dos escalões secundários do futebol inglês, Dave Whelan decidiu pendurar de vez as botas. Recebeu um subsídio de 500 libras (€ 11 mil) pelas três épocas em que jogou na equipa principal dos Rovers e aplicou esse dinheiro nos negócios.

Mas não chegava. Dave Whelan apanhou um avião para os Estados Unidos. Objetivo: ver em que se baseava o conceito dos supermercados, na moda no outro lado do Atlântico e praticamente inexistentes em Inglaterra. Quando voltou a Inglaterra replicou o modelo de negócio. Vendia tudo e mais alguma coisa: comida, tapetes, aparelhos elétricos...

O sucesso foi tanto que no final da década de 60 já tinha dez lojas do género só no condado de Lancashire (noroeste do país). Acabou por vendê-las em 1971 por 1,5 milhões de libras (€ 25 milhões) a um poderoso empresário do ramo.
 

Mas o jogador que virou empresário por azar (ou, pelo menos, por antecipação) não se ficou por aqui. Rapidamente virou agulhas. Comprou uma loja de venda de produtos desportivos e gerou um império de 450 lojas espalhadas por todo o Reino Unido, a JJB Sports, que faliu em 2012, alguns anos após Whelan ter vendido as ações da família e ter investido numa cadeia de ginásios.

Da compra abortada do Manchester United ao Wigan


Estava tudo acertado para a compra do Manchester United. O valor em cima da mesa, acordado com Martin Edwards era de 11,5 milhões de libras. O então chairman
dos «Red Devils» queria vender 51 por cento das ações do clube para ajudar o irmão, que atravessava graves problemas financeiros decorrentes de negócios falhados na venda de barcos em Maiorca, Espanha.

Os dois selaram o acordo com um aperto de mãos e Dave Whelan correu até casa para contar a novidade à mulher. «Disse-lhe que tinha acabado de estar numa reunião onde tinha comprado o Manchester United, o maior clube do mundo, por 11,5 milhões de libras (hoje € 30 milhões). Mas, em vez de dizer que tinha feito um grande negócio, ela perguntou: 'Achas que todos os teus clientes que apoiam outros clubes vão continuar a fazer compras na JJB se fores dono do Manchester United?'. Respondi-lhe que ainda não tinha pensado nisso», contou em entrevista ao Mirror.

Whelan abortou a compra do clube de Old Trafford, que naquela altura (1990) já era treinado por Alex Ferguson, uma decisão da qual viria a arrepender-se. Em 2005, o Manchester United foi comprado pelo empresário americano Malcolm Glazer por cerca de 800 milhões de libras (mais de mil milhões de euros). «Pensei que cidades como Londres, Liverpool e Leeds não aceitariam de bom grado que eu estivesse envolvido no Manchester United e na JJB Sports. Provavelmente estava enganado», escreveu na sua autobiografia intitulada Playing to Win
( Jogar para Vencer
, em tradução literal).



Em 1995, um diretor do Wigan, então na quarta divisão, precisava de 760 libras para pagar os vencimentos semanais dos jogadores. Dave Whelan, nascido e criado naquela cidade dos subúrbios de Manchester, foi a solução. Para os salários e para o clube, que acabou por comprar.

Em pouco tempo, o Wigan trocou um estádio de 1 500 lugares por outro com capacidade para 25 mil espetadores e em 2015 estreou-se na Premier League.
  Com Alex Ferguson em 1999, na inauguração do Estádio do Wigan

Estima-se que o empresário possua um património líquido na ordem dos 190 milhões de euros: é 25.º na lista dos desportistas e ex-desportistas mais ricos. No Reino Unido, só perde para David Beckham, com cerca de 315 milhões de euros.

As polémicas recentes e o passar da pasta

Mas nem só de bons momentos viveu a passagem de Dave Whelan pela presidência do Wigan. Em 2013, o clube desceu de divisão após oito anos seguidos no principal escalão do futebol inglês e corre agora sérios riscos de descer para o terceiro escalão.

O empresário esteve ainda debaixo de fogo após algumas gaffes nos últimos tempos. Em novembro, foi acusado de antisemitismo após uma entrevista ao jornal Guardian, onde foi confrontado sobre alegadas mensagens xenófobas enviadas pelo novo treinador do Wigan, Malky Mackay, visando judeus e chineses: «Ninguém gosta de um judeu que vê o dinheiro escorregar-lhe entre os dedos», terá escrito o treinador, segundo o Daily Mail, referindo-se a um empresário de futebol.

Whelan não só defendeu o técnico escocês como partilhou algumas das suas ideias. «Penso que os judeus perseguem dinheiro mais do que ninguém», disse ao Guardian. Na mesma entrevista ainda se referiu ao povo chinês com a palavra «chink», um termo pejorativo usado para designar cidadãos do leste asiático. «Nunca insultaria um judeu. Tenho centenas e centenas de amigos judeus. (...) Se alguém se sentiu insultado, peço que aceite o meu sincero pedido de desculpas», disse em sua defesa.



Na sequência de uma inquérito lançado pela federação inglesa, foi suspenso por seis semanas e multado em 50 mil libras, cerca de 70 mil euros. «Aquela acusação magoou-me. A mim e à minha mulher, porque nós não somos racistas», disse há dias em entrevista à Sky Sports.»

Os últimos meses têm sido uma roda viva para Dave Whelan, de 78 anos. Esta semana anunciou que vai deixar a presidência do Wigan, 20 anos depois de chegado ao clube. O sucessor é o neto, David Sharpe, que aos 23 anos já conta com uma experiência falhada no mundo empresarial. No ano passado teve de fechar um restaurante por falta de clientes. O valor investido (e perdido) no negócio foi superior a 1,5 milhões de euros.
 
Whelan tranquiliza os mais céticos e explica que o neto esteve 12 meses a preparar-se para o momento: «Penso que ele está pronto para dar este passo agora e asumir a responsabilidade», disse ao jornal Wigan Today.

O momento mais alto de Dave Whelan no clube aconteceu em 2013, com a conquista da Taça de Inglaterra. Na final, os «Latics» derrotaram o Manchester City por 1-0 em Wembley, precisamente onde, 53 anos antes, a carreira de Whelan praticamente chegou ao fim. «Sempre senti que tinha negócios pendentes naquele campo», desabafou dias antes do jogo. A 11 de maio de 2013 estavam, finalmente, saldadas as dívidas.

Valeu a pena.


Fique com o discurso do adeus de Dave Whelan este fim de semana antes da receção ao Leeds United. O «chairman» deixou uma provocação à equipa adversária: «Não ganham a taça há 25 anos.» O Leeds venceu o jogo por 1-0.