A Federação Inglesa revelou esta terça-feira o último dos quatro primeiros nomes do Hall of Fame do futebol feminino, o qual destaca uma história acima de todas: Fara Williams, a inglesa que viveu sete anos na rua, antes de ser salva pelo futebol quando já era uma adulta.

Hoje coleciona prémios, títulos e é a jogadora mais internacional de sempre na história da seleção.

Foi a primeira a ser eleita para o Hall of Fame, num reconhecimento pelo muito que fez pelo futebol. Mas Fara Williams faz questão de sublinhar que o futebol também fez muito por ela.

«Eu tive sorte de ter futebol. Muitas meninas sem-abrigo não têm nada», disse ao The Guardian.

Antes disso, antes de ser resgatada pelo futebol, Fara Williams cresceu no sul de Londres, num dos vários bairros sociais de Battersea, onde jogava futebol num rinque com rapazes.

A bola cresceu com ela, portanto, e com um temperamento inflexível e desafiador. Provavelmente também por influência da desestruturação familiar. Os pais separaram-se quando ela era criança, a mãe voltou a juntar-se com outro homem, mas mais uma vez as coisas não correram bem.

Fara não tinha relação com o pai nem com o padrasto.

«Nunca foi fácil para minha mãe. Éramos uma família monoparental com quatro filhos. A minha mãe apoiou-me o máximo que pôde, mas foi muito difícil conseguir comprar-me as minhas primeiras chuteiras, por exemplo», acrescentou Fara Williams nessa mesma entrevista.

Durante uns tempos viveu com os avós, até que com 17 anos regressou a casa da mãe. Não iria durar muito, porém. Pouco depois a mãe deu abrigo a uma tia de Fara, o que precipitou o fim.

«Era típico da minha mãe levar a minha tia para morar connosco. Mas eu e a minha tia dávamo-nos realmente mal. Discutíamos o tempo todo. Um dia a minha tia gritou para eu desaparecer e eu disse: ‘OK, eu vou’. Tinha 17 anos e pensei que ficaria bem. Mas na verdade não percebi quão grande era aquele passo. Aquilo atingiu-me com força. Tinha vergonha de contar a alguém e não queria voltar para casa da minha mãe. Para mim isso seria visto como uma fraqueza.»

Durante sete anos, Fara Williams viveu sem um lar. Vagueava entre as ruas e os albergues de sem-abrigos. Nessa altura jogava no Chelsea e era internacional inglesa. Pouco tempo antes, aliás, com 15 anos, entrou como suplente utilizada num jogo da seleção sub-18 frente à Ucrânia: foi lançada quando estava 0-0, fez dois golos, duas assistências e a Inglaterra venceu 4-0.

Fara Williams tinha 15 anos, repete-se, e foi pela primeira vez notícia. Tudo porque um jornalista, de nome Tony Leighton, estava nesse jogo. Por isso, quando em abril Fara pendurou as chuteiras a primeira pessoa a quem agradeceu foi a Tony Leighton e ao muito que fez pelo futebol feminino.

Mas voltando atrás, interessa dizer que a então adolescente, na qualidade de internacional, podia ter assinado contrato com a Federação Inglesa, que lhe daria um subsídio suficiente para arrendar uma casa, por exemplo. Mas a verdade é que ela desconhecia isso e não falava com ninguém.

«Na primeira noite tive medo. Via um sem-abrigo vir na minha direção e pensava: 'Caramba, estou com medo. Ele é louco. Ele é louco’. Até que um rapaz me disse que, para impedir que as pessoas cheguem perto deles, os sem-abrigo agem como se estivessem loucos. Eles fazem barulho para intimidar as pessoas, mas na verdade eles estão mais intimidados do que as pessoas. Então eu comecei também a fazer barulho, para me proteger, e costumava virar quando caminhava. Andava cem metros e girava. Também parecia louca.»

A vida na rua durou meses, até que no fim de um jogo da seleção sub-19, no regresso a Londres, todas as colegas seguiram para casa de imediato, menos ela. A selecionadora Hope Powell perguntou-lhe para onde precisava de ir e ela respondeu que não tinha para onde ir.

A selecionadora levou-a então a um albergue de sem-abrigo e certificou-se a partir daí que a jovem não voltava a dormir na rua. Até lhe ofereceu um saco-cama.

«Pode parecer patético, mas quando estamos a dormir numa cama dura com os lençóis de outras pessoas, isso significa muito.»

Fara Williams tornou-se, pouco depois, internacional, num jogo frente a Portugal. Mudou do Chelsea para o Charlton, tornou-se escolha habitual na seleção principal e nunca deixou os albergues. King’s Cross, Victoria, passou por vários, sendo uma das maiores jogadoras inglesas.

«Acho que uma coisa destas não seria possível no futebol de agora, porque há suporte para as jogadoras necessitadas, mas na altura o futebol feminino não era profissional.»

A vida de sem-abrigo só terminou quando foi contratada pelo Everton. Tinha 25 anos. Foi nessa altura que a treinadora Mo Marley lhe arranjou trabalho no clube, como treinadora da comunidade local, para além de um contrato. O que mudou para sempre a vida da melhor jogadora inglesa.

Desde então tornou-se um nome incontornável do futebol feminino. Esteve em quatro Europeus, em três Mundiais, nuns Jogos Olímpicos e somou 172 internacionalizações. O que não tem paralelo nem sequer no futebol masculino: Peter Shilton, por exemplo, tem 125 jogos pela seleção.

Representou, entre outros, o Everton, o Liverpool e o Arsenal, ganhou dois títulos de campeão, duas Taças de Inglaterra e a distinção de membro da Ordem do Império Britânico, pela contribuição para o desenvolvimento do futebol feminino e pelo envolvimento em causas sociais.

Fara Williams foi talvez o rosto mais evidente da profissionalização do futebol feminino em Inglaterra, com o lançamento da Women’s Super League, que teve um crescimento exponencia nos últimos anos, tendo já vendido os direitos televisivos à Sky Sports e à BBC, por exemplo.

Pelo caminho, a médio centro inglesa foi a estrela de momentos históricos, como o jogo da seleção frente à Alemanha perante 55 mil pessoas em Wembley.

Recentemente, já depois de abandonar a carreira de jogadora, aos 37 anos, foi a única melhor convidada para participar no Soccer Aid, ao lado de Gary Neville, Paul Scholles e Wayne Rooney, frente a estrelas como Roberto Carlos, Evra, Seedorf ou Usain Bolt.

Ela que, entretanto, se tornou comentadora televisiva e embaixadora da UEFA, para além de continuar a treinar equipas de miúdos desfavorecidos.

Ora por isso, quando a Federação Inglesa resolveu criar o Hall of Fame do futebol feminino, para celebrar os dez anos da Liga Inglesa feminina, Fara Williams foi a primeira escolhida.

«Mesmo quando vivia na rua, eu nunca perdi a esperança. O futebol nunca mo permitiu. Tive sempre esse foco, acreditava que era boa em alguma coisa. Isso é uma coisa incrível quando parece que não tens mais nada.»