Quando no último domingo a cidade de Leicester rompeu num pranto, às portas do King Power Stadium, não foi apenas pela compaixão por mais uma morte.

Até porque esta não foi uma morte qualquer.

Vichai Srivaddhanaprabha era de facto um homem estimado na cidade. Discreto mas generoso, despretensioso mas altruísta, tímido mas afetuoso, cultivou simpatia e reconhecimento. As ofertas que fazia às pessoas, e em particular aos adeptos, geraram-lhe a deferência de Leicester.

Entusiasta da paz de espírito e da meditação, era um budista praticante, que acreditava no amor entre os homens como caminho para o bem-estar geral. Por isso mesmo criou no King Power Stadium uma sala de oração, onde um grupo de monges rezava durante os jogos. Ele próprio, antes do pontapé de saída, passava pelo local para se juntar às orações.

Para história, aliás, ficaram as duas frases que disse numa tarde de maio, depois do Leicester ter recebido o troféu de campeão inglês. Numa das raras intervenções públicas que fez.

«Este nosso espírito existe por causa do amor que partilhamos uns com os outros e pela energia que esse espírito ajuda a criar, dentro e fora do campo», disse.

«E nos próximos anos esse continuará a ser o nosso maior património.»

Vichai Srivaddhanaprabha nasceu em Banguecoque, a 5 de junho de 1958, filho de uma família de tailandeses de origem chinesa. O apelido de família sempre foi Raksriaksorn, desde que nasceu até 2012, quando o Rei Bhumibol lhe atribuiu o nome de Srivaddhanaprabha, ao abrigo de um reconhecimento da monarquia a pessoas que se destaquem pelos contributos para o país.

Srivaddhanaprabha significa, aliás, «a luz da glória progressiva».

Nessa altura já Vichai era um dos milionários mais proeminentes da Tailândia. Uma riqueza que construiu através das lojas de duty free King Power. Começou com uma pequena loja, simples, modesta, e aproveitou mais tarde o boom de turismo na Tailândia no início dos anos noventa.

A fortuna cresceu sobretudo quando foi inaugurado o novo aeroporto de Suvarnabhumi, em Banguecoque, durante o ano de 2006, tendo a King Power ficado com o exclusivo das lojas.

Vichai Srivaddhanaprabha conseguiu criar relações de proximidade com os mais altos responsáveis do país e, a partir daí, construiu a riqueza que lhe permitiu tornar-se o quinto homem mais rico da Tailândia, com uma fortuna avaliada em 2,8 mil milhões de euros.

Vários presos políticos e dissidentes do regime tailandês acusam Vichai de ter beneficiado de ligações pouco claras com a classe política, em circunstâncias nem sempre legais. Certo é que o até aqui dono do Leicester nunca escondeu as boas relações com vários governantes. Ainda em 2014, por exemplo, tentou estabelecer uma plataforma de entendimento entre o regime militar, que tinha tomado conta dos destinos do país, com vários políticos entretanto afastados do poder.

Indiferente a todas estas polémicas, alimentadas sobretudo pelos contestatários exilados, o público de Leicester construiu uma veneração pelo homem.

Vichai Srivaddhanaprabha entrou no futebol em 2010, quando comprou o Leicester ao anterior dono, Milan Mandaric, por quase 44 milhões de euros. Nessa altura já a King Power era o principal patrocinador do clube, ocupando o espaço nas camisolas, há duas temporadas.

Diz-se que a paixão de Vichai pelo Leicester nasceu em 1997, quando viu a equipa vencer o Middlesbrough na final da Taça da Liga Inglesa, num jogo em Wembley: terá sido, aliás, o primeiro jogo que o milionário tailandês viu ao vivo em Inglaterra.

Depois de adquirir o clube, então na II Liga e um ano apenas após disputar a terceira divisão, Vichai Suvarnabhumi investiu no crescimento do modesto emblema. Pagou as dívidas no valor de 120 milhões de euros, contratou jogadores, mudou de treinador.

Começou com Sven-Goran Eriksson, mas atingiu a glória com Claudio Ranieri. Pelo caminho adquiriu jogadores com Kasper Schmeichel, Ryad Mahrez, Jamie Vardy, N’Golo Kanté ou Danny Drinkwater.

A ambição era levar o Leicester da II Liga ao top-6 da Liga Inglesa.

Mas Srivaddhanaprabha fez melhor do que isso, e contra todas as perspetivas viu o Leicester ganhar o título pela primeira vez na sua já longa existência. Dois anos após subir à Liga.

Foi então que o milionário tailandês teve um raro assomo de protagonismo. Recebeu a taça no relvado, posou com ela ao lado da família, falou para os adeptos nas bancadas. Dizem até que na volta de consagração se agarrou ao troféu e não o partilhou com ninguém.

Até então, a única vez que falara publicamente tinha sido numa conferência de imprensa depois do Leicester ter garantido o título de campeão da II Liga, dois anos antes.

Vichai Srivaddhanaprabha cultiva uma imagem de sobriedade e recato. Era presidente do clube, sim, mas nomeou o filho Aiyawatt como vice-presidente e era nele que delegava as entrevistas quando tal se impunha.

Entregou, de resto, a gestão do clube à diretora-executiva Susan Whelan e ao diretor de futebol Jon Rudkin, e só intervinha quando se tratava de decisões realmente importantes. Interveio, por exemplo, em 2015, durante a caminhada para o título, quando Jamie Vardy estava renitente em renovar contrato.

Convidou-o para um chá numa sala exclusiva do estádio e convenceu-o a ficar.

Apesar de fugir dos holofotes, Vichai era um homem presente para os adeptos do Leicester. Costumava ver os jogos da equipa em casa, chegando sempre de helicóptero: tinha uma casa em Londres, uma propriedade com cavalos em Berkshiere e viajava pelo ar para perder menos tempo.

O facto de ter cavalos em Berkshiere, de resto, não é um pormenor.

Além de colecionar de imagens de Buda, Vichai Srivaddhanaprabha era também um amante de cavalos, e de praticar polo. Chegou a ser visto algumas vezes, aliás, a jogar com elementos da família real britânica.

Também liderou a federação de polo da Tailândia e adquiriu um clube em Inglaterra, o King Foxes, que venceu alguns dos torneios mais importantes da modalidade no mundo.

Mais recentemente, em 2017, adquiriu o Leuven, da segunda divisão belga.

O Leicester, no entanto, era a sua grande paixão e convém sublinhar que Vichai Srivaddhanaprabha era um homem presente na vida dos adeptos, e da própria cidade.

Doou 2,2 milhões de euros para a construção de um novo hospital pediátrico, ofereceu 1,2 milhões de euros para renovar o departamento de medicina da universidade local e deu 100 mil euros para preservar os restos mortais do rei Ricardo III, que ficaram depositados em Leicester.

Também oferecia frequentemente cachorros quentes, cerveja e donuts aos adeptos antes dos jogos e no dia do 60º aniversário sorteou 60 bilhetes de época. Quando o clube foi campeão, não olhou a meios e ofereceu um BMW i8 azul a todos os jogadores do plantel.

Dizem que era um dono de um clube diferente de todos os outros: modesto, discreto, generoso. Entrou na vida de Leicester para mudar o curso da equipa, e da própria cidade.

Por isso a morte dele é tão chorada.