Há um pormenor que define tudo o que é James Milner: durante vinte anos no topo, o inglês teve sempre o mesmo corte de cabelo. Curto, simples, discreto.

Por isso é uma espécie de anti-herói.

Nunca foi uma estrela, não é o jogador que os miúdos procuram primeiro para uma selfie, não é a cara que todas as marcas querem, mas construiu uma carreira com muitos títulos e uma estabilidade admirável. Não é um herói, portanto, mas tornou-se protagonista.

Esta quinta-feira volta a sê-lo, aliás: celebra vinte anos sobre a estreia no futebol profissional. Duas décadas de carreira, sempre no topo, o que merece o aplauso do mundo do futebol.

Foi no dia 10 de novembro de 2002, em Upton Park, que James Milner se estreou com a camisola do Leeds. O adolescente tinha na altura 16 anos e Terry Venables mandou-o entrar aos 84 minutos para o lugar de Jason Wilcox. Foi uma estreia curta, é verdade, mas serviu para ajudar o Leeds a guardar um triunfo por 4-3 em casa do West Ham.

Ele que, nessa altura, jogava pela equipa principal e ainda tinha de limpar as chuteiras ao capitão dos juniores. Afinal de contas esse era o preço da idade.

Hoje, aos 36 anos, olha para trás e sorri.

«Nigel Martyn estava no banco e tinha a mesma idade que eu tenho agora. Quando estava a preparar-me para entrar em campo, ele veio ter comigo e disse-me para saborear cada momento da carreira, que iria passar como um relâmpago», recorda James Milner.

«Lembro-me que ele estava a dizer-me isso e eu a pensar: 'Deixa-me em paz, Nigel. Eu tenho 16 anos.' E pumbas. Vinte anos depois posso dizer que ele estava completamente certo.»

«Quero ser o melhor em cada teste de força, em cada teste de velocidade»

Nesta caminhada de duas décadas, o inglês venceu três títulos de campeão, uma Liga dos Campeões, um Mundial de Clubes, duas Taças de Inglaterra, uma Supertaça Europeia, enfim, tem um expositor cheio de troféus. Representou o Manchester City durante cinco temporadas, o Liverpool durante sete e foi 61 vezes internacional inglês.

Tal como Cristiano Ronaldo, que celebrou o mesmo feito em agosto, também Milner garante que o segredo é uma carreira com poucas lesões e a mentalidade certa.

«É fundamental aquela teimosia de sempre querer provar mais a mim próprio, de sempre querer ser o melhor nos treinos, de querer bater os jovens em cada pré-época», refere.

«No fundo tem tudo a ver com este lado mental de não aceitar perder. Quero ser o melhor em cada treino, quero ganhar todos os testes de velocidade, quero ganhar todos os testes de força. Tem tudo a ver com competição, atingir o topo das tuas capacidades e querer ficar lá.»

É esta faculdade de .se superar todos os dias que o torna imprescindível para Jurgen Klopp.

«Nada do que conquistámos nos últimos anos teria acontecido sem James Milner. Tão simples quanto isso. Esteja ele em campo ou não. E isso acontece porque ele estabeleceu padrões de uma maneira que muitas pessoas não conseguem entender. Ele educou-nos a todos», disse um dia o alemão.

Vindo de quem vem, é um grande elogio, sem dúvida. Até porque em Inglaterra multiplicam-se os críticos que diziam que o Liverpool ganhou... apesar de Milner.

O inglês já não liga. Diz que passou por muito para chegar onde está.

«Na minha segunda temporada, quando Peter Reid começou a preferir outros jogadores no Leeds, fui emprestado ao Swindon durante um mês para continuar a ter jogos. Quando voltei, joguei sempre. Depois fui para o Newcastle e Sir Bobby Robson foi demitido alguns meses mais tarde. Entrou Graeme Souness, que queria jogadores mais experientes. Por isso fui outra vez emprestado, agora ao Aston Villa», adiantou James Milner ao The Guardian.

«São estas pequenas coisas. Quando se pensa sobre isto, há tantos obstáculos durante uma carreira. Não é que todos os treinadores tenham olhado para mim e pensado: 'Quero este jogador aqui comigo'. Não, tem de se provar o valor, e voltar a provar, e voltar a provar. Uma, e outra, e outra vez. As pessoas vão estar sempre a duvidar de ti.»

Para o fazer, para conseguir todos os dias provar o seu valor, James Milner sabia que não podia fraquejar. Por isso a carreira foi sempre a prioridade para ele.

Em todos os jogos, em todos os treinos, quis estar no máximo para poder ser aquele jogador fiável, correto e comprometido que os treinadores apreciam e os companheiros agradecem.

Nunca tocou numa gota de álcool e todas as noites faz ioga

Milner sabe que nunca foi um génio, mas trabalhou para melhorar cada uma das qualidades. Começou a carreira a extremo, passou depois para médio e com Jurgen Klopp fez até uma época a lateral esquerdo. Sempre seguro, envolvido e válido. Pelo caminho foi muitas vezes motivo de chacota, mas é perigoso brincar com a utilidade de um jogador assim.

«Agora é normal, mas há vinte anos eu já ficava depois do treino a praticar cantos e livres em vez de ir jogar no PlayStation. Hoje todos os jogadores chegam mais cedo para fazer ginásio e trabalhar as suas coisas. Mas quando comecei, éramos cinco jogadores, dez no máximo, que chegavam mais cedo para ir ao ginásio antes do treino», revelou.

«Obviamente, depois vais mudando. Há cinco anos, após cada treino eu ficava a trabalhar o remate e a minha finalização tornou-se muito boa. Mas entretanto envelheci e não posso bater bolas todos os dias após o treino, então tive que desenvolver outras capacidades. Agora faço ioga para melhorar a concentração. Hoje à noite quando chegar a casa vou fazer ioga.»

Outra coisa que Milner nunca fez foi beber álcool. Lá está, ser abstémio tornou-se também normal no futebol, mas há vinte anos era uma coisa estranha. O médio não se importava.

«Eu pensei sempre, desde que era muito novo, o que podia fazer para ser melhor. O álcool não é a melhor coisa para um atleta? Ok, então não vou beber álcool. No meu início, no Leeds, tínhamos folga às quartas e aos domingos. Por isso, os jogadores saíam, principalmente no sábado à noite, e faziam uns encontros à quarta-feira. Quando chegava quinta-feira, iam treinar para o saco de boxe para suar. Eram tempos diferentes. Eu vi Dominic Matteo lesionado, cheio de dores, a fazer buracos nas chuteiras para aguentar melhor a dor e poder jogar», conta.

«Perdi a conta à quantidade de vezes que eles me disseram: 'Vá lá, anda beber só uma' ou 'Posso estar lá quando tomares a tua primeira bebida?' Acho que se isso acontecesse iriam arrepender-se. Provavelmente eu ia tornar-me um daqueles que quando bebem abraçam e dão beijos.»

Vinte anos depois, Milner garante que nunca tocou numa gota de álcool e que nem por isso a sua vida foi menos interessante. Bem pelo contrário.

Basta lembrar que quando Wayne Rooney se estreou, também com 16 anos, ele já lá andava, na mesma Liga Inglesa onde continua a ser peça de destaque. Ele que jogou com ou contra David Batty, Paul Ince, Alan Shearer, Paul Merson, Teddy Sheringham. Gareth Southgate...

«Joguei contra David Seaman e ele já fez 59 anos. É alucinante.»

«Se Klopp quer que continues a jogar, seria uma estupidez não o fazer»

Diz que os grandes jogadores com quem começou a carreira estão sempre a aparecer-lhe à frente, como treinadores, como comentadores ou como adjuntos. Alan Shearer é um deles.

«Quando o vejo no relvado sinto que ainda tenho uma ligação ativa ao jogo que me deu tudo. Afinal de contas posso apontar para o relvado, para este Liverpool dominador e sedento de vitórias, e dizer que joguei com aquele gajo: o tal que corre, e corre, e corre. O gajo que nunca pára», escreveu o antigo goleador inglês no The Athletic.

«Mas a verdade é que eu agora sou apenas uma estátua em St. James Park, uma memória de bronze sempre em risco de ser atingida por cocó de pássaro, enquanto ele já ganhou todos os títulos e continua aí, fresco e fofo, a levar-se ao limite para ganhar tudo outra vez.»

O que é bem verdade.

Basta lembrar que James Milner esteve no Manchester City que foi campeão 44 anos após a última vez, depois voltou a ser campeão e aos 29 anos optou por começar tudo de novo: mudou-se para Liverpool e ajudou o clube a ser campeão trinta anos depois.

«Adorei o meu tempo no City. Tínhamos uma equipa fantástica, ganhámos títulos, tivemos o momento Aguero... A decisão de sair para o Liverpool foi difícil, uma aposta, mas tinha sido campeão no City e queria viver as mesmas sensações numa equipa do Liverpool.»

Já lá vão sete anos desde que tomou essa opção.

Entretanto, e para a pintura ficar ainda mais épica, James Milner prepara-se para atingir a histórica marca de 600 jogos na Liga Inglesa. Nesta altura soma 599: só Gareth Barry (652), Ryan Giggs (632) e Frank Lampard (609) têm mais.

«Sinto que ainda posso fazer um bom trabalho e continuar a jogar na Premier League. Trabalhei duro toda a minha carreira para fazer as coisas certas, para estar em forma e disponível, para jogar sempre o tempo todo, por isso acho que seria uma pena não o fazer agora», refere.

«Por isso sim, quero continuar a jogar. Se Klopp, que é um dos melhores treinadores do mundo, diz que me quer aqui mais um ano, seria uma estupidez não o fazer, não?»

Definitivamente o homem não se cansa: sempre com a mesma atitude, a mesma ambição, o mesmo penteado.

Um anti-herói transformado em protagonista.