No final da adolescência John Herdman estava numa encruzilhada: a mãe tinha problemas com álcool, o pai sofria de demência, os dois estavam a divorciar-se, ele só queria sair da Consett natal, perto de Newcastle, mas acabara de chumbar nos exames do secundário.

Sem grandes alternativas à vista, decidiu tentar o exército. O oficial de recrutamento olhou para o metro e setenta de John Herdman e não teve dúvidas. «Sei o que estou à procura, e não és tu.»

Consett tinha sido um importante centro siderúrgico no início de século, mas o encerramento da fábrica nos anos oitenta atirou a cidade para a depressão, a criminalidade e a toxicodependência.

Quatro mil pessoas ficaram sem emprego, entre elas o pai e o avô de John Herdman.

Uma das primeiras memórias do treinador, aliás, é o avô a liderar os protestos contra Margaret Thatcher. No meio deste ambiente denso e carregado, o jovem cresceu enérgico e conflituoso: envolvia-se frequentemente em lutas, cumprindo os genes do avô, um boxeur profissional.

Por isso quando o exército o recusou, com uma família desestruturada e um irmão oito anos mais novo a precisar de ajuda, John Herdman percebeu que tinha de se focar num objetivo e crescer.

Acabou o secundário, foi para a Northumbria University estudar Desporto e começou a ensinar futebol na Brazilian Soccer School, em Consett. Misturava futebol com brincadeiras e música, num estilo muito canarinho de jogar futebol, o que lhe valeu um convite para trabalhar nas camadas jovens do Sunderland, enquanto continuava a estudar e a ensinar crianças.

Foi no Sunderland que viveu um episódio que nunca mais esqueceu.

«Um antigo internacional inglês, que na altura treinava os juniores, tinha o filho na minha equipa. Um dia ele veio ter comigo: ‘Olha John, és um professor-treinador muito bom. Gostava de ter essa capacidade de ensino que tens, mas há uma coisa que nunca terás, que é a experiência de estar num relvado em frente a 60 mil pessoas. É por isso que nunca chegarás ao nível mais alto’. Isto ficou sempre na minha mente. Meu Deus, como quero provar que estás errado», confessou.

Depois de concluído o curso em Ciências do Desporto, respondeu a um anúncio que procurava um treinador para trabalhar em Invercargill, perto do extremo sul da Nova Zelândia.

Apanhou um avião com a mulher e mudou-se para o outro lado do mundo. Durante três anos ensinou crianças a jogar numa região remota de um país sem tradição futebolística. Correu milhares de quilómetros, trabalhou incessantemente e despertou a atenção da federação.

Estávamos em 2004 e John Herdman criou um programa chamado Whole of Football, que era um sistema de ensino que reinventava a construção do jogo desde a infância até à elite. O programa tornou-se um modelo para todo o futebol neozelandês e recentemente também já foi adotado pela Austrália.

Dois anos depois de entrar na federação, foi convidado para treinar a seleção feminina da Nova Zelândia, que levou aos Mundiais 2007 e 2011 e aos Jogos Olímpicos 2008.

Ficou seis anos à frente das mulheres neozelandesas e o bom trabalhou valeu-lhe um convite para orientar a seleção feminina do Canadá, que tinha ficado em último no Mundial 2011. O Canadá ia receber o Mundial 2015 e queria fazer boa figura, pelo que estava na altura de se renovar.

Na Nova Zelândia, John Herdman tinha aprendido com o râguebi a utilizar a tecnologia para desenvolver a mente. Ele que lidara de muito perto com a esquizofrenia do pai e conhecia o poder que o cérebro tem sobre o corpo. Enquanto era adolescente, habituara-se, aliás, a receber chamadas dos empregados do supermercado a dizer que o pai estava lá a falar com uma lata de feijões.

Por isso, para este inglês tornou-se fundamental ultrapassar o córtex frontal lógico e chegar ao sistema límbico, onde residem as emoções. «O sistema lógico existe para nos manter seguros. Mas as pessoas que atingem feitos extraordinários são aquelas que ultrapassam o sistema lógico e se colocam em risco», referiu.

«O meu trabalho é alimentar a paixão nas pessoas, para que elas tenham uma visão maior de si mesmas. As conversas que tive com Christine Sinclair, que ia fazer 32 anos quando cheguei ao Canadá, não foram sobre ganhar um troféu naquele momento da sua vida. Foi sobre o legado que ela iria deixar para o seu país. Isso é que alimentou algo diferente nela.»

Sete anos à frente da seleção feminina levaram o Canadá a duas medalhas de bronze nos Jogos Olímpicos de 2012 e 2016, e aos quartos de final do Mundial 2015.

Por isso, pelo bom trabalho feito com as senhoras, em 2018 foi contratado para assumir a seleção masculina que ia jogar o apuramento para o Mundial 2022, já com o horizonte no Mundial 2026 (que o Canadá coorganiza com México e Estados Unidos). 

No currículo, verdadeiramente, tinha apenas treze anos de futebol feminino, mas num país onde, como ele diz, rapazes e raparigas partilham o mesmo campo e o mesmo equipamento, isso não foi problema.

John Herdman já tinha recusado a seleção feminina de Inglaterra, mas aquele convite era um desafio inegável. A seleção canadiana estava na posição 94 do ranking da FIFA e não ia a um Mundial há 32 anos: só tinha conseguido ir uma vez, aliás, no México 86.

Quatro anos depois, o Canadá operou um milagre. Subiu ao 33º lugar do ranking, a posição mais alta de sempre, e apurou-se pela segunda vez para a fase final de um Mundial.

John Herdman construiu uma equipa em torno de Alphonso Davies (Bayern), Jonathan David (Lille) e Stephen Eustáquio (FC Porto), mas mais do que isso construiu uma cultura futebolística em torno da seleção. Pelo caminho, por exemplo, voltou a vencer os Estados Unidos três décadas depois da ultima vez.

Antes do jogo com os Estados Unidos, aliás, teve uma conversa com Alphonso Davies que é paradigmática daquilo que ele é enquanto treinador.

«O Phonzie sente muito o peso que tem na estrutura da seleção. Eu só quero que ele se divirta. Na noite antes do jogo com os Estados Unidos estivemos a ver vídeos dos seus dias nos Whitecaps, quando ele levava uma porrada e levantava-se, ou quando as bolas entravam nas costas e ele as recuperava. Acho que lhe faltava um pouco disso, desses primeiros tempos. Nessa partida ele jogou livre e foi lindo de se ver.»

Por isso John Herdman vai continuar a tratar o cérebro como um músculo. Uma coisa que o pai não fez e que se tornou uma experiência marcante na vida dele.

«A mente pode sabotar as pessoas e é mal compreendida. Se um treinador não entender o cérebro, não consegue entender o treino de futebol. Tudo começa e termina na cabeça, e é preciso entender como ela funciona.»