O que é um desafio? Que o diga Jorge Jesus a propósito da Libertadores.

Último treinador do Benfica a jogar a final? Béla Guttmann em 1962. E o último do Sporting? Mirko Jozic em 1991. Entre os dois homens de Leste, curiosamente (ou não) os ÚNICOS estrangeiros a discutir o título da América do Sul, uma diferença imensa. Resultadista, vá. Guttmann perde, Jozic ganha. Mais vale imitar sabemos-muito-bem-quem.

Jesus, ex-benfiquista e ex-sportinguista, é então o terceiro estrangeiro na final da Libertadores. O último é já do século passado. O grande Mirko, campeão mundial sub20 pela Jugoslávia em 1987. Onde? No Estádio Nacional, em Santiago, no Chile. E campeão sul-americano pelo Colo Colo em 1991. Onde? No Estádio Monumental, em Santiago, no Chile. Santiago, Chile. A CONMEBOL marca a final para a capital chilena e é como o estender da passadeira vermelha na direcção de Jesus. Só que a convulsão político-social obriga a uma mudança de última hora. Afinal é em Lima, no Peru. Oh diacho, e agora? No sweat. O único português a ganhar no Monumental peruano é Carlos Queiroz (Peru 0:3 Colômbia). Quando? No dia 10 Junho 2019. À mesma hora, Jesus é apresentado como treinador do Flamengo no Ninho do Urubu. Coincidência? Ahhhhhhhh, nem pensar. Volta-se a estender a passadeira vermelha. Jesus, agarra que é tua.

LEIA TAMBÉM: «Nunca vi este ambiente na vida, é uma loucura»

Voltemos a Jozic, o homem do momento – enquanto Jesus sacode a pressão de uma final continental, a terceira da sua carreira, após as experiências desagradáveis na Liga Europa em anos seguidos: Chelsea 2013, Sevilha 2014.

Mirko Jozic é o responsável pela explosão de talentos, no Mundial sub20. Veja-se bem a qualidade dos nomes através dos goleadores na fase de grupos: Boban, Stimac, Suker e Suker no 4-2 ao Chile; Brnovic, Suker, Suker e Boban no 4-0 à Austrália, Mijatovic, Mijatovic, Zirojevic e Suker no 4-1 ao Togo. Na fase a eliminar, a Jugoslávia elimina Brasil (2-1 por Mijatovic e Prosinecki) mais RDA (2-1 por Stimac e Suker). Na final, vs RFA, resolve Boban. Com um golo no tempo regulamentar (1-1) e outro no desempate por grandes penalidades (5-4).

O sucesso é tremendo, Prosinecki é eleito o melhor jogador do torneio, Suker é o vice-goleador e Jozic o treinador mais badalado. O Colo Colo, tricampeão chileno em título, vai buscá-lo num abrir e fechar de olhos para substituir Arturo Salah, convidado para assumir a selecção principal do Chile. A equipa contempla algumas figuras irrepetíveis pela forma de ser, sobretudo fora do campo.

A começar pelo guarda-redes argentino Daniel Morón, contratado para o lugar do excêntrico Roberto Rojas, de malas aviadas para o São Paulo. Semi-desconhecido (titular do modesto Union Santa Fé), o número um entrega-se de corpo e alma ao Colo Colo com um equipamento amarelo (camisola e calção), em honra ao alemão Harald Schumacher – ainda hoje, o guarda-redes do Colo equipa-se de amarelo. Em casa, Morón vive com a mulher Griselda, uma senhora com um toque de humor, digamos, corrosivo.

Béla Guttmann foi o primeiro estrangeiro a vencer a Libertadores

Quando um jornalista liga para casa e pergunta pelo homem da casa, Griselda chama por Matías, o filho mais velho do casal. Quando o repórter pede para falar com o melhor guarda-redes do Chile, ela diz ‘desculpe, número errado, Marco Cornez não vive aqui’ numa alusão ao titular dos rivais da Universidad Catóilica e suplente de Rojas no Chile. Seja como for, Morón é craque. O seu físico atlético e as defesas impossíveis caem bem na massa adepta do Colo Colo. O sentimento é recíproco. Tanto assim é que Morón adopta a nacionalidade chilena e chega a representar a selecção, além de ter sido adjunto de Bielsa no Chile.

Calma, há mais. Argentinos, queremos dizer. Marcelo Barticciotto. Verdade seja dita, nunca ouvimos falar dele. Uma rápida pesquisa dá-nos a ideia de um rapaz franzino, muito tímido. Contratado ao Hurácan em 1988, com apenas 21 anos, é daqueles reforços inesperadamente fascinantes. Autor do golo inaugural no Monumental em 1989, vs Peñarol, impõe-se rapidamente no onze e comete a proeza de ser o segundo jogador mais titulado na história do Colo Colo, com sete campeonatos nacionais, sem esquecer três Taças do Chile e três torneios internacionais, Libertadores 1991 incluida.

Calma, há mais. Argentinos, queremos dizer. Ruben Espinoza, o especialista em bolas paradas. Tanto joga à esquerda como ao meio, a 10, a 8 e até a 6. Diz quem vê, é um fenómeno sem igual. Mergulhado numa crise financeira sem precedentes, a Universidad vende o seu passe ao arqui-rival para abater a divída. O Colo Colo ri-se que nem um perdido. Até porque acontece o mesmo com Patricio Yanez, uma figura maiúscula do Chile, entre a despedida dos relvados de Caszely e as chegadas de Zamorano mais Salas.

Nesse parêntesis temporal, Yanez é grande. A época em Espanha, ao serviço do Valladolid, destapa ligeiramente o véu sobre a sua genialidade, num tempo em que é raro a emigração de chilenos para a Europa. Pois bem, Yanez vai e vem. Quando volta ao Chile, assina pela Universidad. Uma série de lesões colocam-no à margem da equipa. Um só golo em toda a época obrigam o clube a tomar uma decisão drástica. O Colo Colo aproveita a deixa. Ninguém acredita na sua recuperação, até porque a lesão afecta-lhe os dois joelhos. Milagre, a dor desaparece e Yanez renasce para o futebol.

Quatro estrelas, e agora? Só falta o treinador. Mirko Jozic, de seu nome. Um craque em todos os sentidos, senhor de uma visão ilimitada para a formação e o desenvolvimento de jovens craques até à maturidade plena. O sucesso no Colo Colo comprova-o em absoluto. Despachada a fase de grupos com relativa facilidade (três vitórias e três empates, 10-3 em golos), afasta Universitário (Peru), Nacional (Uruguai) e Boca Juniors (Argentina) ate chegar à decisão vs Olímpia (Paraguai). Na primeira mão, 0-0 em Assunção. Na segunda, 3-0 em Santiago. Sem espinhas.

É, até hoje, o único título continental do Chile.

«A grande diferença entre o futebol europeu e o sul-americano é simples, tem a ver com obsessão: os europeus vivem os dérbis com frenesim a dois dias do jogo, os sul-americanos a um mês de distância já estão a fazer trinta por uma linha. Quando ganhei a Libertadores, dois milhões de chilenos encheram as ruas de Santiago. Outro exemplo: quando treinei o Newell’s Old Boys, na Argentina, os treinos eram geralmente assistidos por 20 mil adeptos. Às vezes, trinta mil. Uma vez, fui apresentado a trinta mulheres cegas com idades entre os 75 e 85 anos que iam ver sempre o Newell’s.»

Mirko Jozic no Libertadores: quase tudo bem... até a uma maldita hérnia discal

Em 1998, o Sporting apresenta Jozic. É mais um treinador do projecto Roquette. O croata chega a Alvalade com o adjunto Ivkovic. A dupla promete. É o ano do penta do Porto, obra de Fernando Santos, com o Boavista de Jaime Pacheco a piscar o olho ao título de campeão conquistado dois anos depois. Tanto Sporting como Benfica imersos em crises políticas, sociais, directivas e o diabo-a-sete.

Com Jozic, o futebol é simples e jogado por sub-25. Contratam-se os argentinos Duscher (19 anos), Heinze (20) e Kmet (20) mais os portugueses Rui Jorge (25), Bino (25), Delfim (21) e ainda os brasileiros Marcos (22) e Nené (23). Sobem à primeira equipa Santamaria (16), Nuno Santos (19) e Caneira (19). No ataque, Krpan (24) e Acosta (31). Promete. Ou não.

O Sporting joga bem, encanta até em alguns jogos (chega mesmo a estar em primeiro lugar nas 8.ª e 9.ª jornadas). Esbarra é na inconsistência dos resultados. Eliminado à primeira na Taça de Portugal (Gil Vicente, 3-2 em Barcelos) e na Taça UEFA (Bolonha, dupla derrota), a classificação no campeonato é também desastrosa, com o quarto lugar, a 16 pontos do Porto.

Mais utilizado, Delfim (32). Melhor marcador, Iordanov (13). Perto do fim da época, Jozic é operado a uma hérnia discal e entrega-se o comando técnico a Ivkovic. Como o tempo de paragem de Mirko é mais longo do que o esperado, a direcção rasga o contrato de duas épocas e assume o italiano Giuseppe Materazzi no início de Junho 1999. É o famoso ano do fim da seca do título de campeão, com Inácio ao leme a partir de Setembro.

De Jozic nunca mais se ouve falar com a propriedade de um campeão. Aqueles títulos no Chile enchem-lhe as medidas. Segue-se Jesus.