Deixemos Mo Salah em Anfield, os dois golos mais as duas assistências à Roma, os cânticos ainda a ecoar nos ouvidos, para recuar sete anos. Ao Egito, onde tudo começou. O ano da Primavera Árabe, tempos de revolução. E no meio o futebol e uma decisão que determinou o resto da vida ao então adolescente Mohamed. É contada ao Maisfutebol na primeira pessoa por Manuel José, na altura treinador do poderoso Al Ahly.
Nessa época 2010/11 Salah tinha 18 anos e estava a aparecer. Jogava no Al Mokawloon, começava a dar nas vistas. Em dezembro de 2010, no dia de Natal, marcou o golo do empate a uma bola frente ao Al Ahly, precisamente.
Mas o seu clube, também conhecido por Arab Contractor, acabaria por terminar o campeonato no último lugar. É aí que entra Manuel José.
«Ele jogava no Al Mokawloon, eles desceram e eu mandei contratá-lo a ele e ao Bassem Ali, lateral-direito e que está hoje no Al Ahly. Disse ao meu presidente para o contratar a ele e ao Salah, que tinha 18 ou 19 anos. Passado oito dias o presidente ligou-me a dizer: «Pronto, tudo acordado.» Mas cinco ou seis dias mais tarde voltou a ligar-me a dizer que já não iam.»
A Primavera Árabe, lá está. O movimento que levaria à destituição de Hosni Mubarak, em janeiro de 2011, teve consequências também no futebol. No meio de toda a instabilidade no país, os responsáveis pelo futebol egípcio decidiram nesse verão alargar o campeonato seguinte. Não haveria descidas, o campeonato passaria de 16 a 20 equipas. Acabaram por ser 19, porque três delas recusaram jogar um play-off de subida pelo último lugar.
«A Federação decidiu que não descia ninguém e que se ia alargar o campeonato», recorda Manuel José: «E assim o clube do Salah disse que ele afinal já não saía, que precisavam dos jogadores e tinham de reforçar a equipa para ficar na primeira Liga.»
«Foi a sorte do Mo Salah», diz Manuel José: «Passados cinco meses foi para o Basileia. O Al Mokawloon é um clube muito virado para a formação. Se ele tivesse ido para o Al Ahly era muito mais difícil ir para a Europa. Eu tinha uma constelação de estrelas no Al Ahly e um acordo que ninguém podia sair da equipa. Foi muito mais fácil sair de lá para o Basileia, foi muito barato. Do Al Ahly teria saído muito mais caro. »
Portanto, era no Al Mokawloon que estava Mo Salah quando a 1 de fevereiro de 2012 violentos confrontos em Port Said, num jogo do Al Ahly, provocaram 79 mortes, centenas de feridos e paralisaram o futebol egípcio. A tragédia de Port Said, já se sabe, precipitou tudo para Salah.
Sem competição no Egito, Mohamed partiu com a seleção sub-23, que preparava os Jogos Olímpicos de 2012, para a Suíça. Marcou dois golos jogando apenas na segunda parte num particular com o Basileia, que já andava a segui-lo. Não voltou a casa. Assinou em abril pelo clube suíço e o resto é história.
Voltando a Manuel José. O treinador português conta o que viu há sete anos em Salah. «Naquela altura era uma hipótese de jogador com futuro. Vi talento suficiente para querer contratá-lo», diz, salvaguardando que não chegou a ter contacto pessoal com o agora craque do Liverpool: «Nunca falei com ele sequer. Mas tenho esta história com ele.»
Foi o Basileia o clube europeu a descobrir Salah, à frente de todos os gigantes, mas Manuel José não encontra uma explicação óbvia para isso: «Talvez tenham bons olheiros cá. Há algumas ligações à Europa. Há um clube na Bélgica, o Lierse, que tem um dono egípcio.»
Claro que Salah é hoje um jogador muito diferente daquele adolescente que aparecia no campeonato egípcio. «Deu um salto qualitativo tremendo. Foi tudo muito rápido e agora é que entra na idade de melhor rendimento», observa Manuel José.
E estamos a falar do melhor jogador do momento no futebol mundial? Já agora, a opinião do treinador português de 72 anos, que inclui mais nomes na discussão: «O Cristiano Ronaldo e o Messi aos 18 anos já eram grandes. O Salah aparece com esta dimensão agora. Temos ainda o Neymar, que apesar de não ter a mentalidade do Messi, do Cristiano ou mesmo do Salah, tem muito mais talento. Acho que tem muito mais talento que o Messi, porque joga com os dois pés. Como o Mbappé. Não estão no clube certo, estariam melhor num dos clubes grandes da Europa, que o PSG não é.»
Manuel José assiste à consagração de Salah de um ponto de vista privilegiado. O treinador português de 72 anos está de volta ao Egito, ele que ganhou com o Al Ahly quatro vezes a Liga dos Campeões Africana e foi seis vezes campeão egípcio. Já se tinha reformado, mas agora aceitou outro tipo de desafio: «Sou coordenador técnico para o futebol do Wadi Degla, que é o único clube-empresa do Egito. Temos 110 treinadores, mais de 3 mil jogadores em academia e 280 em competição.»
É a partir do Egito que fala com o Maisfutebol. E que conta como está o país a viver este momento: «É uma loucura. São 100 milhões de Mo Salah.»
«Para eles já é melhor que o Cristiano Ronaldo, que o Messi. A bandeira no Egito passou a ser o Mo Salah. Era o Aboutrika, que eu fui buscar a um clube de segunda divisão e se tornou o melhor jogador da história do Egito, agora é o Salah.»
Salah estará com o Egito no Mundial, num Grupo A onde tem como adversários a Rússia, Uruguai e Arábia Saudita. Que poderá fazer? Manuel José conhece a seleção e o futebol egípcio como poucos, e não acredita que o talento de Salah chegue para uma proeza. «O Egito joga de forma realista. A melhor geração de sempre do futebol egípcio foi nos anos em que eu cá estive. Fiz uma constelação de estrelas, a seleção ganhou três vezes o CAN», diz o treinador: «Essa geração terminou e agora há um grande vazio, como acontece normalmente. Resta o Mohamed Salah e o Hector Cuper, que é um homem muito experiente. Montou um sistema baseado em termos ofensivos na grande qualidade do Salah e numa estrutura defensiva forte e conseguiu o apuramento do Egito para o Mundial, que não acontecia desde 1990. Mesmo a geração anterior nunca conseguiu ir a um Mundial. Mas não acho que o Egito tenha grandes hipóteses de se apurar para os oitavos no Mundial. Mas enfim, nunca se sabe.»