Tardes de raiva. Tardes em frente ao espelho, a odiar a vida, a socar o desprezo para longe. Lágrimas sem fé, um peito vazio, uma voz perdida nas vielas escuras de um bairro social de La Plata. Mara sente-se mulher, mas o bilhete de identidade diz-lhe outra coisa. Um desassossego permanente, o só estar onde não quer estar. Ser quem não é.

E, um dia, o futebol. Aos 15 anos, gozada por ser diferente pelos rapazes e recusada pelas raparigas, Mara recebe o convite de uma vizinha, Adriana. «Vem jogar à bola, grita e esquece essa raiva.» A bola salta, e eis que o ódio e o desconforto se transformam em… «Nunca tinha sentido tal coisa, nunca tinha jogado futebol e era muito má. Senti-me livre e integrada.»

Oito anos depois, a 7 de dezembro de 2020, Mara Gómez faz história. Torna-se a primeira futebolista transgénero a jogar na primeira divisão argentina de futebol feminino. Veste o equipamento azul celeste do Villa San Carlos, perde 7-1 contra o Lanús – quem quer saber disso? – e abraça oficialmente o amor da sua vida. O futebol, pois então.

Mara, a segunda a contar da esquerda, no dia da histórica estreia (AP)

«Tive muita ansiedade, os nervos limitaram-me. A vida não é fácil para ninguém, mas não há impossíveis. Hoje estou cá para contar, estou a viver o que julgava impossível. O futebol é a minha terapia», diz a avançada e goleadora ao Clarín, após a histórica estreia.

A FIFA tem o registo de atletas transgénero na Samoa Americana (o Maisfutebol já contou a história de Johnny Saelua), Espanha, Canadá e Alemanha, mas Mara é a primeira na imensidão das Américas a chegar a este nível.

«Na Argentina não é fácil ser transgénero. Se calhar não é em nenhum lado do mundo. O primeiro passo a dar é falar com a família. Se não te aceitam, estás na rua. Tenho a sorte de ter uma mãe e irmãs que me amam e estão comigo», conta à agência Télam, ainda no Estádio Genacio Sálice de Berisso. Mara sabe do que fala.

«Vantagem física? O Messi tem 1,70 metros»

O Villa San Carlos é um clube profissional, mas o salário de Mara Gómez não lhe permite viver do futebol. Enquanto estuda enfermagem na universidade, a avançada compõe o orçamento a trabalhar como manicure. Acredita que, a curto prazo, poderá dedicar-se em exclusivo ao desporto.

Para Mara, tudo muda com a maioridade. Até aos 15 sofre por ser diferente, entre os 15 e os 18 luta para ser aceite na sociedade como mulher de pleno direito. «Sobrevivi ao bullying e pensei no suicídio, não o nego. Fiz a retificação no registo do meu sexo em 2015 e senti, a partir daí, que desenhava um novo caminho para mim.»

A Lei Nacional nº 26.743 estabelece, desde 2012, o direito à identidade do género na Argentina. Mara aciona essa prerrogativa legal, passa a ser uma pessoa do sexo feminino, mas o seguinte obstáculo chama-se AFA – Federação Argentina de Futebol.

A mãe, as quatro irmãs e a pequena sobrinha de Mara (AP)

Mara passa por várias equipas amadoras até ter a autorização para competir no futebol feminino. «Quando estava a passar por um momento de transição na minha sexualidade, sofri na pele a discriminação. Achei que a vida não tinha sentido, pensei em tudo. Mesmo no futebol olhavam de lado para mim. As coisas mudaram quando fui jogar para o Toronto de La Plata, aos 18 anos. Aceitaram-me como era.»

A atacante prefere não revelar o nome que recebe no dia do nascimento. Diz que é «outra pessoa» e vive «uma outra vida». Do Toronto passa para o Malvinas e daí salta para o Villa San Carlos.

«Contactei a equipa técnica, contei-lhes a minha história, fiz uns treinos e inscreveram-me. Depois foi a burocracia do costume, até agora.»

Mara acabou o jogo em lágrimas e abraçada por todos (AP)

As questões levantadas pela ala conservadora prendem-se com os aspetos biológicos. Mara nasce com o sexo masculino e poderá ter vantagem física no duelo com adversárias do género feminino. A pergunta é pertinente? Mara diz que não e defende-se.

«Esse preconceito vem de gente que se esconde atrás de teclados. Gente que não investiga. A diferença física não é real. Há muitas futebolistas com mais força e velocidade do que eu, e não são homens. As pessoas falam porque a medicina faz essa separação entre homens e mulheres.»

Mulher, da cabeça aos pés. É assim que Mara se sente, com as virtudes e as fragilidades de qualquer outra colega de equipa ou oponente. «Querem falar de diferenças físicas e hormonas? Vamos ao exemplo do Messi. Tem 1,70 metros e tornou-se o melhor do mundo. Tem menos força e ainda assim tem de ser marcado por quatro adversários. A questão biológica é falsa.»

Num mundo ainda machista e agarrado a preconceitos anacrónicos, Mara Gómez considera-se uma «revolucionária». Assinalem a data no calendário dos grandes feitos: 7 de dezembro de 2020, o dia em que o primeiro transgénero participa num jogo profissional no futebol argentino.