A Taça da Ásia tem dois treinadores portugueses a lutar por um título que já tem Portugal no palmarés. Nelo Vingada foi campeão com a Arábia Saudita há 21 anos, numa conquista improvável cheia de memórias e com final insólito. Está agora de volta aos Emirados Árabes Unidos, onde fez a festa em 1996, para assistir como espectador à competição que junta a cada quatro anos as melhores seleções do continente mais populoso do mundo, mas está ainda longe de atingir todo o seu potencial.

«A Taça da Ásia é uma competição completamente diferente do Europeu, por exemplo», diz Nelo Vingada, a fazer com o Maisfutebol uma viagem que parte do presente para recuar à sua aventura em 1996.

Era a primeira experiência no estrangeiro para o treinador que tinha acompanhado Carlos Queiroz no percurso com as seleções jovens de Portugal que levou às conquistas dos Mundiais sub-20 em 1989 e 1991. Chegou à Arábia Saudita depois de liderar Portugal até às meias-finais nos Jogos Olímpicos de Atlanta. E chegou com pouca informação sobre o que iria encontrar.

A equipa que encaixou «como Lego»

«Eu não tinha muita noção. Tinha estado na Arábia Saudita em 1989, quando fomos campeões do mundo, e tinha tido contacto com algumas seleções asiáticas nos Jogos Olímpicos, mas não tinha um grande conhecimento», recorda. Mas o que encontrou surpreendeu-o: «Já na altura fiquei surpreendido com o nível dos jogadores, foi uma surpresa muito positiva.»

E correu melhor do que a encomenda. «Cheguei um mês antes e dois meses depois fui campeão asiático, algo que eu próprio julgava impossível», recorda Nelo Vingada. «Quando cheguei fiz algumas alterações, fui buscar jogadores da seleção olímpica. E aquilo parecia Lego», sorri: «Encaixaram bem e fizemos uma boa equipa.»

A Arábia Saudita foi passando etapas: «Depois foi o evoluir da competição, fomos avançando. Passámos um grupo forte, que tinha o Irão. Nos quartos de final ganhámos à China, nas meias-finais eliminámos o Irão e fomos à final com os Emirados, que eram treinados pelo Tomislav Ivic.»

Foi a 21 de dezembro de 1996, no então estádio Sheik Zayed, hoje Zayed Sports City e que será igualmente o palco da final em 2019. O jogo terminou sem golos, a Arábia Saudita levou a melhor nos penáltis. Inesquecível, recorda Vingada: «Uma final com 65 mil espectadores, um ambiente fantástico. Uma experiência incrível, numa cultura muito diferente.» O que ficou bem claro nos festejos da conquista do título.

Dos cheques do rei à substituição que acabou em despedimento

«Depois foi a festa, um conjunto de experiências que só vividas», vai recordando Nelo Vingada. «Houve várias festas, nos palácios, a última foi no palácio do rei. Primeiro fomos recebidos pelos príncipes. Havia prémios extra e os sauditas, que já sabiam como era, diziam: «Com o rei vai ser um envelope gordo.» Era o King Fahd na altura, e o presidente da Federação era o filho.» Muito dinheiro à vista, sorri Vingada: «Os prémios eram em dinheiro vivo, ou em travel checks, que havia na altura.»

Mas Nelo Vingada não demorou muito a viver outro lado desse choque cultural. «Saí no ano seguinte, com a equipa praticamente apurada para o Campeonato do Mundo. Saí porque não fiz o que o presidente queria. Queria que fizesse uma substituição de um jogador. Não fiz e no dia seguinte fui despedido porque não obedeci.»

«Depois disso tornei-me um bocado persona non grata na Arábia Saudita», conta Nelo Vingada, sem amarguras a esta distância: «Foi uma experiência de vida que me ajudou muito a crescer. Senti-me muito feliz com o que fiz.» E vai mais longe: «São outras culturas, mas pode ter a certeza que disso existe em todo o mundo.»

Nelo Vingada era o primeiro português a conquistar uma competição continental sénior de clubes, o único até Fernando Santos vencer o Euro 2016. Depois da Arábia voltou a Portugal, para uma passagem pelo Benfica de Vale e Azevedo, onde foi adjunto de Graeme Souness. E prosseguiu a carreira nos bancos de vários clubes em Portugal, do Marítimo à Académica passando pelo V. Guimarães, também no Egito e em Marrocos, mas sobretudo na Ásia: treinou as seleções da Jordânia e da Malásia, esta no ano passado, treinou clubes na Coreia do Sul, China e Índia.

Conhece o continente como poucos e tem acompanhado à distância os jogos desta Taça da Ásia. Agora vai vê-los ao vivo. Esta semana viajou para os Emirados Árabes Unidos, que voltam a receber a competição pela primeira vez desde 1996, para reviver memórias e amigos: «Vou ver os jogos, estar com o Carlos Queiroz, rever amigos e estar com família, que tenho lá família.»

Um continente com potencial por cumprir

Alargada pela primeira vez a 24 equipas, a Taça da Ásia é o ponto alto de competições do continente onde vive mais de metade da população mundial. Mas o potencial humano demora a traduzir-se na expressão futebolística. «É a maior competição da Ásia, um grande continente. Mas tem de ser pensado e visto à dimensão do que é a Ásia, onde o futebol não tem a implantação que tem na Europa ou na América do Sul. Na Índia o desporto número 1 é o críquete. No Japão e na Coreia do Sul é o basebol.»

O que começa por se traduzir nas assistências nos estádios, nomeadamente na atual edição: «Tirando o jogo dos Emiratos Árabes Unidos e o do Irão, que tem muitos emigrantes por ali, os estádios têm tido pouca assistência. Até porque são estádios muito maiores do que no meu tempo», nota Nelo Vingada.

Mas desportivamente o potencial está lá, acrescenta o treinador. «O nível técnico individual é bom. A esse nível os jogadores não têm grandes diferenças em relação aos europeus, o que não têm é a formação e a cultura tática dos jogadores europeus. Os europeus vivem isso desde muito jovens e é algo que faz parte do dia a dia», diz. E a qualidade tem subido, defende: «A nível futebolístico evoluiu muito. É mais evoluído do que era há 20 anos.»

Há sinais de crescimento, mas também expectativas que se vão adiando. Nomeadamente em relação à China. «Para mim a China é uma surpresa não ter tido mais resultados, com todo o dinheiro que gasta. Quando estava no Dalian, o que me batia com o presidente, que faleceu pouco depois, era pela construção de instalações para a formação. Acho que foi por isso que não evoluíram mais, porque não investiram na formação, nas instalações. Gastaram muito dinheiro mas para contratar jogadores e treinadores estrangeiros de nome. Agora sim, estão a fazer esse investimento de futuro no futebol jovem.»

Outro exemplo, o da Índia, o segundo país mais populoso do mundo. «Há dois anos estive na Índia e também fiquei surpreendido com a qualidade dos jogadores», conta Nelo Vingada, que em 2016/17 treinou o NorthEast United: «Mas a Índia tem um problema mais complicado que a China, porque não tem de todo as instalações.»

Nelo Vingada insiste no potencial dos jogadores asiáticos e defende que merecem mais atenção. Outro exemplo baseado na sua experiência: «O sítio onde encontrei a melhor e maior dedicação e profissionalismo foi na Coreia do Sul. Estive na Coreia em 2010, quando treinei o FC Seoul, e encontrei um conjunto de jogadores fantásticos que jogavam facilmente em qualquer clube português. E por mais de metade do que custam os sul-americanos ou outros estrangeiros.»

Talento para a Europa e Carlos Queiroz e Paulo Bento entre os favoritos

«As televisões cá não estão a dar este campeonato, o que é uma pena. Porque é um campeonato que vai revelar alguns jogadores. Alguns já são conhecidos, nomeadamente os sul-coreanos, por exemplo, depois do Mundial. Mas há seguramente valores que vão aparecer», diz Nelo Vingada, lembrando que, mesmo que não seja seguida pelo grande público, a competição está na mira de olheiros de todo o mundo: «O scouting da maior parte dos grandes clubes está lá.»

E estão lá Carlos Queiroz, ao comando do Irão, e Paulo Bento, com a Coreia do Sul. Além de um jogador nascido português mas naturalizado pela seleção do Qatar, Pedro Correia (recorde aqui a história dele).

Os dois treinadores portugueses, que venceram os seus jogos da primeira jornada, lideram duas das equipas favoritas. No Grupo C, a Coreia do Sul entrou a vencer as Filipinas e defronta nesta sexta-feira o Quirguistão, antes de defrontar a China no ultimo jogo do grupo. O Irão, no Grupo D, goleou o Iémen a abrir (5-0) e joga no sábado com o Vietname, fechando a fase de grupos com o Iraque. «Pelo que me é dado conhecer, o Irão e a Coreia do Sul estão no lote de candidatos, bem como o Japão, obviamente», analisa Nelo Vingada.

E ainda há o atual campeão, «importado» da Oceânia e que surpreendeu ao vencer o título na última edição, em 2015.  «A Austrália, que é campeã em título, também é candidata, embora se tenha deixado surpreender na estreia com a Jordânia, onde eu trabalhei e que é uma das seleções que mais tem evoluído. Modéstia à parte, dei um contributo para isso. Mas não deixa de ser surpreendente a derrota da Austrália.»

«Provavelmente sairá daí o vencedor, desse lote de quatro», acredita Nelo Vingada, acrescentando ainda à lista o anfitrião: «Ainda há os Emiratos Árabes Unidos, que são outsiders, têm bons jogadores e têm o factor casa. Que não é determinante, mas ajuda.»

[artigo originalmente publicado às 23h50, 10-01-2019]