Numa manhã gelada de fevereiro, ano da graça de 1994, dois homens num carro roubado param em frente a uma janela do Museu Nacional de Arte de Oslo, Noruega. Abrem a porta e os pés enterram-se na neve.

Dão alguns passos e pegam na escada que está escondida um pouco à frente, desde a noite anterior. Apontam à janela, sobem, partem o vidro e entram. Dois minutos depois estão novamente cá fora e carregam uma das obras de arte mais valiosas do mundo.

The Scream [O Grito], pintura de Edward Munch.

A tela está avaliada em mais de 100 milhões de euros. O primeiro vigilante a chegar ao local do roubo vê a janela ainda aberta, os vidros espalhados pelo chão e um pequeno papel. Quase uma nota de agradecimento da dupla de ladrões.

«Obrigado pela vossa segurança tão pobre.»

Se a missiva estivesse assinada, um dos nomes seria o de Pal Enger. Futebolista quase anónimo no Valerenga e famoso ladrão de arte. Uma personagem intrigante, complexa, incapaz de separar o bem do mal, um assumido maniqueísta.

A história deste norueguês, 53 anos, é tão rara que está prestes a chegar ao cinema. Será dividida em vários capítulos e já tem garantida a distribuição numa das maiores empresas mundiais de streaming.O contrato com uma produtora de Hollywood está assinado desde 2017, de resto, mas as filmagens só em 2022 deverão arrancar. A pandemia, sempre a pandemia, é a responsável pelo atraso.

O local do assalto de 1994 tornou-se local de culto em Oslo  (Foto Facebook)

Pal Enger não gosta de dar entrevistas. Abre, muito pontualmente, uma ou outra exceção com jornalistas conhecidos. Em 2018 aceita participar num programa da televisão norueguesa e voltar à manhã de 1994 em que rouba O Grito.

Quando vi que o Comité Olímpico Internacional decidiu organizar os Jogos Olímpicos de Inverno decidi ‘é agora’. Percebi que as forças policiais teriam outras prioridades e que esse seria um momento único para conseguir o quadro.»

Assim é. Na Cerimónia de Inauguração dos Jogos de Lillehammer está mais de metade do contingente policial norueguês. O resto do país está à mercê dos amigos do alheio. À mercê de Pal Enger.

Pal nasce em Oslo e é desde menino apaixonado por futebol. Faz todo o percurso na formação do Valerenga e o talento permite-lhe chegar à equipa profissional. Joga com alguma regularidade entre 1986 e 1988, e é utilizado, por exemplo, num jogo contra os belgas do Beveren para a Taça UEFA [17 de setembro de 86].

É por esses dias que Pal se envolve com o mundo do crime. O salário no Valerenga é baixo, a maior parte dos atletas tem outros empregos, mas Pal já exibe evidentes e estranhos sinais de riqueza.

«Enquanto nós levávamos o fato de treino do clube e as chuteiras para lavar em casa, o Pal deixava tudo no chão e dizia que não valia a pena o trabalho. Comprava o que queria, quando queria», conta um dos antigos camaradas de balneário ao Dagladet, jornal norueguês.

Para azar, ou mera incúria, de Pal Enger, o seu estilo de vida começa a despertar desconfiança dentro do Valerenga. Quatro colegas são polícias e passam informações ao departamento de investigação de Oslo. Pal entra, em definitivo, no radar das forças de segurança.

Sem surpresa, vem a saber-se que o jovem médio faz parte de um gangue que se dedica a roubar joias e ourivesaria de luxo. Quando a polícia, após meses de perseguições e escutas, derruba a porta do seu apartamento, em 1988, dá de caras com um verdadeiro tesouro.

No meio de peças valiosíssimas, Pal Enger guarda o seu Santo Graal: Vampyr, um quadro de Edward Munch, o mesmo criador de O Grito.

Pal Enger a trabalhar no seu atelier em 2015 (Foto Facebook)

Aos 20 anos, a carreira no futebol acaba e Pal segue para a prisão. Cumpre uma pena leve – menos de dois anos, por bom comportamento – e em 1990 está novamente nas ruas e ávido por fazer o que mais gosta: insinuar-se no mundo elitista dos artistas de Oslo.

Fala com negociadores de arte, relaciona-se com pintores e outros elementos da cena cultural norueguesa, prepara o ardil para desferir o mais mediático dos golpes. O assalto ao Museu Nacional de Arte, em 94.

Fridtjof Feydt é o advogado que representa Pal Enger há mais de 30 anos. Advogado e amigo próximo. «O meu cliente não era um ladrão normal. Era impossível vender O Grito. O senhor Pal queria ter a sensação de ser o portador dessa obra-prima», diz o causídico.

Em 1996, dois anos após o arrojado assalto, Pal é novamente preso. A polícia segue-lhe o rasto e apanha-o numa outra cidade norueguesa. Na altura da detenção, o antigo médio usa uma peruca loura e óculos escuros.

Ironicamente, é na prisão que o ladrão de quadros se dedica, seriamente, à pintura. Consegue selecionar uma coleção de obras de muito razoável qualidade e a partir de 2007 começa a expor os seus próprios trabalhos por toda a Noruega.

A vida do ex-médio do Valerenga vai chegar a Hollywood (Foto Facebook) 

Pal Enger pretende passar a história de transformação e arrependimento. Crime, castigo e redenção. É tudo muito bonito, mas a natureza do ladrão volta a atormenta-lo e o regresso ao crime é uma questão de poucos anos.

Em 2015, Enger é acusado de furtar 17 peças de arte de uma galeria de Oslo. Defende-se, diz que tudo não passa de um mal entendido mas, ameaçado com julgamento e mais uma pena pesada, assume o roubo de quatro dessas peças. Aprende com mais um erro? Nem pensar.

Já no decurso de negociações com produtores de Hollywood para vender a história da própria vida, Pal Enger entra em curto-circuito. A espiral de pequenos delitos deixa-o em maus lençóis, acrescentando mais capítulos a uma série já recheada de peculiaridades deliciosas. Pelo menos para quem a vê.

«Hollywood quer passar a minha vida para a televisão ou para o cinema. Não é um documentário, eles pretendem fazer da minha vida o ponto de partida para uma série de crime e drama. Há muito a contar», confirma Pal Enger, no final de 2017.

Dustin Hoffman é o ator escolhido para desempenhar o papel do futebolista que foi (é?) ladrão de obras de arte, segundo confidencia o próprio Pal, que revela até um telefonema feito pelo prodigioso co-protagonista de Rain Man (Encontro de Irmãos) ou Kramer contra Kramer.

No início de 2019, Pal Enger viaja num avião para Marbella. A tripulação contacta a torre de controlo espanhola e informa que um dos passageiros a bordo está descontrolado e queixa-se de dores no peito. Pal é transportado para o hospital mais próximo e é descoberta na sua bagagem uma quantia importante de cocaína.

Na comunicação ao público, a polícia norueguesa confirma a detenção e acrescenta mais um par de crimes ao currículo de Pal Enger: a 30 de abril de 2018 é intercetado pela polícia na posse de uma bicicleta de ciclismo profissional, avaliada em quase 20 mil euros; a 18 de julho é apanhado com um relógio de pulso que vale mais de 35 mil euros. Um artista do roubo.

Dustin Hoffman tem um guião riquíssimo à espera. Estamos em 2021, Pal Enger está de volta à liberdade e faltam oito meses, no mínimo, até ao início da rodagem da série sobre a sua vida. Preparem-se para mais uns episódios.

VÍDEO: reportagem com Pal Enger na televisão norueguesa