Antes, muito antes, de se tornar um treinador icónico, Pep Guardiola partilhou o balneário e os dias de calor insuportável no Qatar com Augusto Inácio e Marco Couto. Já com 34 anos e numa fase terminal de um percurso brilhante na pele de médio, o agora treinador do Manchester City rumou ao Médio Oriente, de 2003 a 2005.

A propósito do regresso de Guardiola à cidade do Porto, o Maisfutebol socorreu-se das extraordinárias histórias de Inácio e Marco para apresentar um lado menos mediático do catalão, uma verdadeira pop star do futebol moderno, uma personagem riquíssima.

Aqui fala-se do Guardiola que ia a jantares onde os convivas se sentavam no chão e onde se vaporizava um chá de qualidade duvidosa; e do Guardiola que queria tomar um duche no balneário, mas que só podia fazê-lo sem tirar as cuecas; e do Guardiola que aproveitava os tempos mortos nos treinos para aperfeiçoar pancadas de golfe, como o swing e o approach.

Um outro Pep Guardiola.

«O Guardiola chegou numa terça e na quarta foi titular e capitão»

Em 2004, a liga do Qatar já era um El Dorado para veteranos de outras guerras. Guerras mais competitivas. Guardiola chegou ao país árabe com o peito recheado de medalhas e um museu de cicatrizes e troféus.

No Al Ahli, Pep Guardiola foi treinado por Augusto Inácio e teve Marco Couto como colega de equipa. O antigo atleta do Desp. Chaves, V. Guimarães e Beira-Mar esteve um mês à experiência e assinou contrato. Juntou-se ao plantel num estágio realizado no Egito, mas teve de esperar pela véspera do primeiro jogo para conhecer o grande Pep Guardiola.

«Eu fui para lá e já sabia que esse era o clube do Guardiola. O Caló, um cabo-verdiano que jogou no Salgueiros, esteve lá muitos anos e tinha grande projeção no Qatar. Explicou-me a forma como eles contratavam. Havia um comité central que escolhia os atletas e depois distribuía-os pelos clubes do campeonato. Quando cheguei, o Guardiola estava a iniciar a segunda época lá», conta o ex-diretor desportivo do Moreirense, cargo ocupado até há poucos meses.

«Éramos quatro estrangeiros: eu, o Guardiola, o José Dominguez e o Caló, um cabo-verdiano que tinha jogado no Salgueiros e que estava lá há muitos anos. A chegada do Guardiola causou grande impacto em mim. Ficámos duas ou três semanas em estágio, voltámos ao Qatar e eu sempre na expetativa de conhecer o Guardiola. Mas ele não aparecia.»

«Depois percebi que faltava acertar qualquer coisa com ele, burocrático, mas o primeiro jogo estava a aproximar-se», continua Marco Couto. «Bem, a verdade é que ele chegou numa terça-feira e na quarta-feira foi titular e capitão de equipa. Fez um bom jogo, era cuidadoso com o corpo, nunca o vi a cometer extravagâncias.»
 

Augusto Inácio também tem bem presente o dia em que cumprimentou Guardiola pela primeira vez. «Falei com ele e perguntei-lhe se estava lá sozinho: ‘Agora estou mister, mas o ano passado estive com a minha mulher. Mas ela deu em doida, não se faz nada cá. Ela não se adaptou’. Nós só treinávamos às sete horas, porque durante o dia com o calor era impossível. Perguntei-lhe como é que ele passava os dias. ‘Mister, eu aqui passo as manhãs a jogar golfe e descanso à tarde. É para passar o tempo’. E ele tinha razão. Não dava para fazer nada com o calor. Eu só conseguia cortar o cabelo à uma da manhã. Durante o dia era beber chá e dormir.»

O golfe era, de resto, quase uma prioridade para Pep Guardiola no Qatar. «Quando o mister Inácio parava o treino, para tentar passar alguma mensagem ou explicar algo – o que não era fácil e exigia tradutor -, eu olhava para o Pep e ele aproveitava esses momentos mortos para aperfeiçoar as pancadas de golfe. Fartava-me de rir com isso. Trabalhava a postura, a forma como batia na bola, era muito engraçado.»

«Ninguém ousava dar uma porrada no Guardiola»

Marco Couto tinha 30 anos, uma carreira interessantíssima na primeira divisão e reconhece ter ficado «em choque» com o nível «tão baixo» da liga qatari. E como lidava Pep Guardiola, homem com passado no Barcelona e na seleção de Espanha, com esse quadro desportivo?

«A qualidade técnica do Pep estava intacta. Estava numa fase descendente da carreira, mas nunca se evidenciou pela capacidade física», recorda Marco Couto. «O que mais me espantava era ver o respeito que ele impunha, tanto nos treinos como nos jogos. Ninguém ousava dar-lhe uma porrada. Os adversários não se chegavam a ele. O Pep jogava à vontade, não havia agressividade sobre ele. Tinha qualidade técnica e visão de jogo. Eu deliciava-me a vê-lo bater livres no final do treino.»

Inácio lembra, sobretudo, a ligação quase de professor que tinha com os colegas. «O Pep investia grande parte dos treinos a explicar como é que eles deviam colocar o pé na bola. Foi aí que lhe perguntei se ele já tinha pensado sem ser treinador. Ele estava no fim da carreira, estava lá a ganhar um balúrdio e eu disse-lhe que ele tinha jeito, tinha carisma e que devia investir na carreira de técnico. O Pep ainda tinha dúvidas. Mas não posso dizer que pensava que ele ia chegar a este patamar de excelência.»
 

Marco Couto confirma a ideia de Inácio. Atento, disponível para ajudar, mas sem mostrar vontade ou interesse em ser treinador. «Seria fácil dizer que estava ali o típico treinador, mas não. O que havia era uma vontade grande de ajudar os qataris. O nível competitivo era baixo, mesmo baixo, e nós fomos obrigados a ser a extensão do Augusto Inácio e a ensinar as coisas básicas aos nossos colegas. Coisas que se ensinam nos iniciados em Portugal. E às vezes faltava a paciência, claro. O Senhora da Hora, onde joguei na III Divisão Nacional, tinha um nível superior.»

Apesar de pouco correr, Inácio assegura que Pep Guardiola era «sempre o melhor em campo».

«Jogava à frente da defesa coordenava o jogo, dava o ritmo que queria. E nunca me questionou, nunca. Nunca colocou em causa as minhas ideias. Eu é que lhe perguntava onde é que ele se sentia melhor a jogar, até porque já tinha 34 anos. Nunca foi um jogador rápido, nem de recuperação. Tinha de jogar de frente e depois fazer passes, longos e curtos, com uma precisão impressionante.»

A opinião do treinador Augusto Inácio sobre o pupilo Pep Guardiola não podia ser mais positiva. «Era humilde, sabia ouvir, tentava ajudar, não complicava, tinha tudo o que é preciso para ser um bom treinador. Adorei a essência da personalidade dele. Ainda mantivemos contacto durante algum tempo, mas depois ele mudou de número de telefone e deixámos de falar. Valeu a pena conhecê-lo, gostei muito.»

O jantar sem mesa, mas com gargalhadas de Pep Guardiola

Foi só um ano, mas Marco Couto e Augusto Inácio trouxeram a bagagem cheia de histórias com Pep Guardiola. Marco recorda, por exemplo, que o agora treinador do City só lhe falava em inglês ou em catalão porque recusava «comunicar em castelhano». E admite, sim, que já na altura Guardiola «detestava perder» e não era raro vê-lo «aos berros no balneário».

Mas, acima de tudo, Marco tem saudades «do sentido humor fantástico» de Pep. Famoso ficou um jantar organizado pelo pai do capitão de equipa do Al Ahli. Marco começa a sorrir ainda antes de iniciar o relato.

«Eu e o Guardiola fomos os únicos estrangeiros a ir a casa do senhor. Tivemos de deixar os sapatos à porta de casa, calçámos os chinelos e entrámos. Fomos para uma sala e estava toda a gente a vaporizar um chá, com uma espécie de cachimbo. Aquilo passava de mão em mão. Eles inspiravam o fumo, adoravam, e até que chegou a nossa vez. Primeiro fui eu, mas não me soube a nada. Passei ao Pep e ele, cheio de moral, disse que estava constipado. ‘Não, não, não posso’. A malta ficou toda assim meio ofendida, mas era o Guardiola e não disseram nada. O pior foi no jantar.»

O grupo de convivas mudou de sala, com Marco e Pep a não acreditarem no que viam. «Entrámos na suposta sala de jantar e não havia nada. Nem cadeiras, nem mesa, nem comida. E o Pep, naquele humor corrosivo, mandou logo uma boca para o ar: ‘então isto vai ser de pé?’. Bem, os homens foram chamar uns empregados, trouxeram uma toalha, umas almofadas e sentámo-nos assim, todos tortos. Eu sempre tive dificuldades sentar-me sobre os calcanhares, foi horrível.»

O repasto lá chegou e não se pode dizer que tivesse sido um manjar dos céus. «O pai do nosso capitão sentou-se no meio da toalha, muito simpático, e para nós pediu até dois pratos e talheres. Não nos obrigou a comer com as mãos, como aos outros. Veio a carne, um pedaço enorme, inteiro, e o Guardiola começou a dar-me pancadas no cotovelo: ‘olha, olha o que vais comer’. Bem, eu até hoje não sei o que era aquilo.»

«O pai do nosso colega arrancou uma coxa com as mãos e pediu o meu prato. Serviu-me a carne e disse-me ‘bom apetite’», diz Marco Couto. «Eu aceitei, claro, mas ao meu lado o Pep só se ria. Eu nem percebia as gargalhadas, porque aquilo também lhe ia tocar a ele. Mas afinal não. Quando o senhor pediu o prato ao Pep, ele disse que não tinha fome. Bem, o homem ficou chateado, até ofendido, mas o Guardiola não se desfez.»

Para os qataris, a recusa teve contornos escandaloso, um desrespeito. Mas Pep tudo podia. «No dia a seguir, no balneário, o Caló soube da história e só se ria de mim. Nem se queria acreditar no que o Guardiola fez. ‘Ouve, isso para o senhor era uma honra e a recusa do Pep foi uma ofensa, que maluco’. Ele só marcou mesmo presença, mas nem vaporizou o chá, nem comeu nada. Esteve lá para se rir de mim.»

«Os colegas viram o Pep nu e começaram a gritar ‘não, não, não’»

Augusto Inácio também apreciava o sentido de humor e o atrevimento de Pep em algumas ocasiões. Mal chegou ao Qatar, o treinador recebeu um aviso do seu atleta mais famoso: «’Mister, nunca fique nu no balneário à frente dos rapazes’.»

«O Pep contou-me que da primeira vez que chegou ao balneário para tomar banho, os colegas começaram a gritar: ‘não, não, não’. Ele tirou as cuecas, não sabia que era um pecado para os muçulmanos, e os colegas viram-no nu. Quando eu cheguei lá ele contou-me essa história, para eu não cometer o mesmo erro.»

Marco ficou com «a melhor impressão» do antigo jogador e treinador do Barcelona. Fora do campo era, sublinha, «extremamente atencioso».

«Trocámos o número de telemóvel, mas era muito raro ligarmos um ao outro. Até que certo dia ele ligou-me. Eu no Qatar só jogava a defesa central, mas em Portugal a minha carreira foi toda feita entre essa posição e a de médio-defensivo», narra Marco Couto.

«O Pep só me conhecia como central. Então telefonou-me a dizer que lhe tinham ligado de Espanha a perguntar se ele conhecia um ‘trinco’ chamado Marco Couto. E ele lá me explicou que tinha dito bem de mim ao tal clube, mas que só me conhecia como defesa central. ‘As informações foram positivas, mas disse-lhes que eras central’. O cuidado que ele teve ao ligar-me e a explicar-me a situação revela a qualidade humana dele.»

Marco e Inácio foram perdendo, ao longo dos anos, o contacto com Pep Guardiola. O treinador já sabe, porém, o que lhe dirá no dia em que o reencontrar.

«‘Ouve lá, continuas a jogar golfe todas as manhãs?’.»