Chama-se Wallace Martins, tem 18 anos e nasceu no bairro do Jardim Peri. Não é uma favela, mas quase. «Não é aquela favela, favela que as pessoas conhecem. Não é um morro», explica. «Mas é um bairro muito pobre na periferia de São Paulo.»

O pai é eletricista de manutenção no metro e a mãe conduz autocarros. Por isso Wallace sempre se habituou a viver com pouco dinheiro. O pai, de resto, chama-se Martins, a mãe tem o apelido de Uva, o que levanta a dúvida se não tem antecedentes portugueses.

Wallace, em conversa com o Maisfutebol, diz que não sabe, mas com a ajuda da avó materna, uma senhora de 85 anos, percebe que sim, que tem raízes em Portugal. A família da mãe saiu do nosso país há várias gerações, a avó já nasceu no Brasil. Mas sim, há um bocadinho de sangue português que lhe corre nas veias. E espanhol, já agora, por parte do pai.

Ele, contudo, é um brasileiro típico. Um tipo completamente normal que se tornou notícia por ter um talento especial para pilotar carros. Hoje compete na Fórmula Delta e desperta curiosidade.

«As pessoas chamam-me Hamilton da Favela, mas é num clima de amizade, com carinho, não é nada preconceituoso. Até porque são os mais próximos, aqueles que são meus amigos, que mais me chamam isso. Eu vivo super bem com a alcunha», revela.

«O automobilismo é um desporto muito elitista. Os meus colegas têm sempre um patrocinador que é alguém da família, que tem uma empresa e paga as despesas deles. Por isso o único que verdadeiramente é patrocinado sou eu. Para além disso, os meus adversários já correram todos fora do Brasil, eu nunca saí do país. Isso é uma grande vantagem para eles, mas eu não posso estar a pensar nisso. Tenho de me sentar, acelerar e dar o meu melhor.»

Por aqui já se percebe como a vida de Wallace tem sido uma história de superação. Desde miúdo que não tinha dinheiro para correr, pelo que tudo o que conseguiu foi com trabalho... e talento.

«Um dia, quando tinha dez anos, fui com o meu irmão brincar em karts de shopping e fiquei por lá a divertir-me. Na verdade, a primeira vez que pilotei um kart cheguei muito, muito atrás. Eu gostava era de brincar com o kart, de fazer a viatura andar de lado. Fomos nesse dia e longe de mim saber que queria fazer aquilo. Depois voltei a ir outra vez quando tinha onze anos. A partir daí comecei a ir todos os fins de semana. Gostava de me divertir nos karts indoor», conta.

«Houve um dia em que o gerente da pista me perguntou se não queria ir correr. Eu fui. Era um campeonatozinho amador e prémio para os três primeiros classificados era um teste num kart profissional.  Éramos 40 inscritos e eu fiquei em segundo. Aí percebi que tinha algum talento.»

Wallace Martins foi então gozar o prémio e correr num kart profissional, já em pista de asfalto, mas sem imaginar como aquela experiência lhe ia mudar a vida.

Sem dinheiro para investir em acessórios, apareceu na pista com roupa normal. Ao contrário dos outros, não tinha fato-macaco, luvas, sapatilhas, bala clava ou protetor para o pescoço.

«A primeira vez que acelerei, até me assustei. Era um motor de dois tempos que me atirou para trás, encostei ao banco, muito agressivo. Estava habituado aos karts indoor, que não são tão potentes nem agarram tanto ao chão. Aquele negócio ali era para competir mesmo, para querer ganhar todos os tempos possíveis. Mas após quatro ou cinco voltas, habituei-me, comecei a acelerar mais e a gostar daquela adrenalina. Por isso comecei a treinar com o kart profissional.»

Wallace tinha nesta altura 12 anos e um grande problema pela frente: os treinos em karts profissionais custavam dinheiro e, em casa, dinheiro era algo que não abundava.

«Como não havia dinheiro em casa, eu corria uma corrida e falhava duas ou três. Mais tarde comecei a correr uma sim, uma não. Sempre que sobravam alguns trocos em casa, o dinheiro era todo para isso. Entretanto a minha família fazia vaquinhas para me ajudar, cada um dando um pouquinho, conforme podia. A minha mãe começou a vender camisolas, que ela mandava bordar com o meu logo e um carro, como se fosse uma camisola de equipa. Também comprava prendinhas para fazer rifas, sempre a tentar juntar mais algum dinheiro», sublinha.

«Foi um trajeto muito difícil. Fazíamos de tudo aqui em casa, mas não sabíamos se ia dar para eu correr ou não. Estávamos sempre à espera até à última para ver se caía algum dinheiro e eu podia ir. O meu pai e a minha mãe fizeram tudo por mim. Ainda hoje vão ver todas as minhas corridas.»

Wallace Martins não era o único filho lá em casa, tem mais irmãos, e era preciso muita criatividade para conseguir dar de comer a toda a gente e ainda poupar algum para o colocar dentro de pista. Por isso o jovem aproveitava todas as oportunidades que tinha de se sentar ao volante de um kart para se aperfeiçoar, aprender novas técnicas e competir a sério.

Um dia recebeu um convite para participar na terceira etapa do campeonato Estadual do Rio de Janeiro, em Volta Redonda. Os pais, com muito sacrifício, pagaram a viagem e a corrida, mas não puderam ir com ele. Ficaram em São Paulo. Wallace fez segundo lugar. No ano a seguir volta a repetir a presença na competição e termina na terceira posição.

Sempre que entrava em pista, os bons resultados continuavam a aparecer e em 2016 o jovem de um bairro muito pobre da periferia consegue um terceiro lugar na Copa Rio-Sul. Por falta de dinheiro foi obrigado a falhar provas importantes como a Copa Light e o campeonato brasileiro. Mesmo assim acabou por ganhar nesse ano de 2016 o prémio de terceiro melhor piloto.

Tinha 14 anos.

À conta disso, em 2017 foi convidado pela equipa MZ Rancing, de Nelsinho Piquet.

«Em 2017 fiquei só a treinar. Em 2018 voltei a competir e comecei a fazer a transição para o carro de fórmula. Foi então que comecei a correr na Fórmula Vee. Este ano subi à Fórmula Delta e finalmente deixei de pagar para correr. Consegui um patrocinador que paga as minhas despesas.»

A entrada no mundo dos carros valeu-lhe então a alcunha de Hamilton da Favela. O facto de vir de origens pobres, somado às parecenças físicas com o piloto britânico, fizeram o nome pegar.

«Discriminação nunca senti, mas há um preconceito, sim. As pessoas querem gente com dinheiro no automobilismo, não querem pobres. Querem pilotos que paguem para correr. Não existe muito essa coisa de um ajudar o outro. Mas descriminação nunca senti. Na verdade, o pessoal é muito seco, só pensa é em dinheiro. E quando falo em pessoal, falo em toda a gente do automobilismo.»

Indiferente a isso, Wallace Martins segue a vida dele. Ainda com muitas limitações.

«Infelizmente não treino, só corro. O único treino que faço é o treino oficial, na véspera da corrida. Essa é outra grande diferença em relação aos meus adversários, porque eles geralmente treinam uma vez por semana. Eu não. Se estiver três meses sem corridas, fico três meses sem pilotar.»

O dinheiro do patrocinador ainda não chega para tudo.

«Só treino mesmo na véspera da corrida. Na pandemia fiquei quatro ou cinco meses sem correr. E mesmo agora as corridas têm um intervalo de 30 ou 40 dias entre elas», adianta.

«Mas não vale a pena ficar a lamentar. Tenho de seguir em frente e cem por cent do meu dia é a pensar no automobilismo. Estou a fazer um curso técnico de mecânica automotiva. É um curso que me ajuda como piloto, sobretudo a entender tudo o que é mecânica. Para além disso estudo a modalidade, vou todos os dias ao ginásio e estou sempre a pensar na minha performance.»

Aos 18 anos, o jovem pobre que saiu do bairro de Jardim Peri, na periferia da grande São Paulo, não quer deixar de sonhar. Tem como ídolo Ayrton Senna e inspira-se em Hamilton

«Acredito que poderei alcançar uma categoria alta. Não sei se conseguirei a Fórmula 1, porque é preciso mesmo muito dinheiro e o euro, a libra e o dólar estão muito caros em relação ao real. Mas acredito que posso chegar a uma grande categoria.»

Chamam-lhe Hamilton da Favela e ele não se importa: só quer continuar a derrubar estereótipos.