Domingo, 10 de maio de 1987, Estádio das Antas - Porto.

As meias-finais da Taça de Portugal tinham reservado um clássico entre o FC Porto e o Sporting, que se disputou 17 dias antes da primeira conquista da Taça dos Campeões Europeus pelos dragões.

Do lado de um Sporting que haveria de terminar a época em 4.º lugar no campeonato e sem qualquer título – ainda que com o gostinho de ter provocado aquela que ainda hoje permanece como a maior derrota no campeonato do rival Benfica, o histórico 7-1 -, houve um médio brasileiro decidiu ser herói.

Quando o cronómetro marcava o minuto 119 do prolongamento e o 0-0 ameaçava levar todas as decisões para as grandes penalidades, Mário Coelho recebeu um passe da direita e a partir daí… magia relatada na primeira pessoa, com to-dos-os-por-me-nor-zi-nhos.

«Há uma falta para o FC Porto junto à nossa área. O Jaime Magalhães tenta bater rápido para o Semedo, mas nós roubamos a bola e saímos em contra-ataque, na velocidade. A bola liga para o Marlon e eu apareço, dando aquele último sprint, recebo a bola, dou um drible de corpo no Celso e bato com a parte de fora do pé esquerdo ao ângulo direito do Mlynarczyk.»

Fácil assim. 0-1, FC Porto eliminado e o caminho da final da Taça de Portugal aberto com sotaque brasileiro e a festa à solta no campo do rival.

O vídeo do golo de Mário, nas Antas:

Quinta-feira, 18 de outubro de 2018, Campo José da Silva Faria – Loures.

No relvado sintético, há três miúdos que, à socapa, vão dando pontapés numa bola, depois de saírem da escola, paredes meias com o estádio onde joga o Clube Sportivo de Loures.

Só percebemos que não era suposto estarem ali quando surge um responsável equipado com o amarelo do clube do Campeonato de Portugal que, da linha lateral lhes atira um seco: «mas vocês já não sabem que não podem estar aí? Já ouviram falar do Parque da Cidade? Lá é que podem jogar à vontade. A mexer, vá!»

Ao passarem pela reportagem do Maisfutebol, ainda lhes atiramos: «então e vocês vão ver o jogo?» a resposta surpreende. «Qual jogo? Hoje há jogo? Aqui?». Tudo errado. O jogo do Loures com o Sporting, para a Taça, em Alverca, devolvemos. «Ah, em Alverca? Vou perguntar aos meus pais se posso ir», desvaloriza um dos miúdos, mais atento ao alerta de um dos colegas. «Eina, putos, está aqui um microfone da TVI!»

O notório desinteresse de três crianças que gostam de futebol, que saltaram um muro para jogar no campo do Loures, mas que nem estão a par daquele que tem tudo para ser um dos mais importantes jogos da história do clube fundado em 1913 é sintomático.

Só com algum esforço conseguimos encontrar alguma referência à partida que foi chutada para Alverca, a cerca de 20 quilómetros da casa do Loures. «Raça saloia à conquista da Taça de Portugal». Ali mesmo, por cima do banco onde está pousado o tal microfone da TVI, dois pequenos cartazes colados com fita cola – a mesma que às vezes parecer colar a lógica do futebol português – tentam gritar para todos ouvirem que o Loures vai jogar com o Sporting na Prova Rainha do futebol em Portugal.  

Os dois cartazes que anunciam o jogo, mas que estão num ponto escondido do estádio do Loures

Nada feito. Além de ser um canto escondido, nem ao nível dos olhos dos miúdos está. Como haveriam eles, que só vão ali clandestinamente para jogar à bola, saber da existência do jogo?

Mas de repente, no tempo de uma bola de futebol rolar sobre si própria, dois mundos tão distintos como o Estádio das Antas naquela primavera de 1987 e o Campo José da Silva Faria neste outono mal-amanhado, parecem fazer todo o sentido juntos.

Mário Marques Coelho e Mário Marques Coelho Júnior – Juninho, para facilitar. Como que num golpe de magia, temos diante de nós história do Sporting e presente do Loures. Pai e filho, brasileiros, numa reunião promovida pelos caprichos do sorteio da Taça de Portugal, três anos depois do último encontro entre eles em solo luso.

Coração dividido? O pai diz que não, o filho acha que sim

Os cumprimentos da praxe e... o golo de Mário Coelho nas Antas a passar em loop novamente.

«Cara, é impossível não falar nesse golo. Passaram mais de 30 anos, você nem era nascido quando eu o marquei, e estamos aqui para falar dele. É um golo histórico. Eu posso ficar velho caduco, mas que esse golo vai ficar sempre guardado num cantinho da minha memória. Vai ser eternamente meu, ninguém me tira», remata Mário, logo no pontapé de saída da conversa.

Aceitamos a boleia rumo às memórias que o então jogador de 30 anos guarda de um jogo - que até já tinha partilhado com o nosso jornal em 2014 - e que «ainda arrepia». Ele, que crescera nos viveiros do Fluminense e que, no início da carreira, partilhou balneário com monstros sagrados do futebol brasileiro como Carlos Alberto ou Rivelino.

Mas aqui interessa é bola. E clássico, neste caso, antes de nos virarmos com tudo para o Loures-Sporting.

«Bem, todo o Clássico tem um sabor especial, mas esse teve ainda mais. Por ter sido com um golo meu no prolongamento, contra uma grande equipa que pouco depois se sagraria campeã europeia… E até com uma cãibra nos festejos que fez com que eu tivesse de ser substituído», recorda, sublinhando ainda a importância de um triunfo improvável para muitos e que não terminou no final do prolongamento.

«Nesse dia, até mesmo a saída das Antas foi um bocado complicada, com a torcida do FC Porto a atirar pedras. O senhor Reinaldo Teles é que me carregou para eu poder sair. Talvez ninguém acreditasse naquela vitória, além dos adeptos do Sporting e nós jogadores», revela, confidenciando que essa é a única camisola do Sporting que guarda: «com o número 6, e olhe que já me ofereceram muito dinheiro por ela».

Numa escala diferente, claro, mas vencer aquele FC Porto despertou um sentimento semelhante ao que vive Juninho e o seu Loures na antecâmara do jogo com o Sporting para a 3.ª eliminatória da Taça de Portugal.

«Bem, o Loures só tem uma chance. Está - como falamos no Brasil - com a bala na agulha. Se você puder acertar a bala e matar, é essa a oportunidade que tem. É a oportunidade para esses jogadores entrarem na história do Loures e até na da Taça de Portugal. E nada é impossível», encoraja Mário, com Juninho a ouvir atentamente as palavras do pai.

E se no filho é fácil perceber o alvoroço de sentimentos provocado pela partida do próximo sábado, para o pai não é muito diferente.

«Claro que estou ansioso. Não é todos os dias que viajo para Portugal para ver jogar duas paixões. A paixão pelo meu filho, que é maior, claro, e a paixão pelo Sporting, o clube que aprendi a amar em Portugal. Mas com certeza que estarei a torcer pelo meu filho, não tem como não torcer por ele. E as pessoas no Sporting sabem que eu gosto muito do clube, mas vão compreender que haja um torcedor que ama o clube, mas que vai estar a torcer pelo filho», explica Mário.

Juninho recebeu do pai o gosto e o jeito para o futebol 

Já Juninho, que cresceu a escutar os relatos do pai sobre o Sporting e que se tornou também ele, lá no Brasil, adepto do clube – «o meu pai dava-me camisolas do clube, deu-me até um leãozinho de presente» -, sabe que o progenitor o estará a apoiar, mas não acredita que ele não esteja nem que seja um pouco dividido.

«Ele ama aquele clube, quando vem cá é sempre muito bem tratado, os adeptos adoram-nos, acho que vai estar um pouco divido, sim», confessa num sorriso compreensivo.

A Taça moderna: Loures treinou em Odivelas para se adaptar ao relvado… de Alverca

«Se o futebol tivesse lógica, não teria nem piada». A frase é de Mário Coelho, ao chegar ao Campo José da Silva Faria, e tinha mais a ver com as possibilidades do Loures eliminar o Sporting do que com a realidade vivida pelo clube onde joga o filho, na preparação para essa partida.

Ainda assim, ela pode muito bem servir para ilustrar a semana de preparação do clube do Campeonato de Portugal para esta partida. A palavra a que a viveu por dentro, mais uma vez.

«Claro que é sempre diferente, mas a preparação do jogo foi mais ou menos como costumamos trabalhar, com a diferença que fomos a Odivelas para fazer a adaptação à relva, uma vez que jogamos em sintético», descreve Juninho.

Como assim, Odivelas? Não queria dizer Alverca? «Não, nós treinámos mesmo em Odivelas. Acho que nem o Alverca usa o relvado deles porque estava com uns problemas e estão a poupá-lo», explica o jogador de 28 anos, médio como o pai, enaltecendo que o mais importante está a ser feito: «estamos muito concentrados e preparados para este jogo».

Mas na opinião do jogador brasileiro que chegou a Portugal em 2008 para representar a Sanjoanense e que daí para cá vai na quinta equipa lusa - tendo ainda passado pela Suíça e Espanha, além do Brasil -, a mudança do palco do jogo até pode ser benéfica para as características dos jogadores da equipa que ocupa o 13.º lugar da Série C do Campeonato de Portugal, com sete pontos em oito jornadas, e uma mudança de treinador pelo meio.

«Nós temos jogadores muito técnicos, que gostam de ter a bola no pé, e o campo sintético não ajuda o nosso estilo de jogo, quando jogamos em relva as coisas saem melhor», garante o jogador.

Mas para Juninho, não há como fugir, a partida terá um gosto ainda mais especial, não só por ser diante de uma equipa cujas histórias ouvidas do pai o acompanharam ao longo da vida, mas também pela presença do progenitor nas bancadas.

«Vai ser um jogo especial, claro. Lembro-me sempre de ligarem para o meu pai para ele falar daquele golo pelo Sporting e agora vou jogar contra essa equipa», nota, assumindo o favoritismo do adversário. «Nós queremos a vitória e vamos fazer tudo para deixar uma boa imagem, também porque é um momento de muita visibilidade para a nossa equipa», refere.

Então e se fosse o Juninho a decidir o jogo, com um remate à imagem daquele que deixou o pai na história do Sporting, lá para o minuto 119?

A pergunta arranca um sorriso a Juninho, mas este recebe e sai a jogar. «Isso seria bem marcante, tanto para mim como para o meu pai. Se eu pudesse marcar um golo seria maravilhoso, mas eu não jogo sozinho e mais importante é que a equipa consiga um bom resultado. É nisso que estamos focados», finaliza.

E do outro lado até podia estar um futuro campeão europeu. «Ah, isso não mudou, não: o futebol é jogado aqui, dentro do campo». Palavra do herói leonino da Taça de 1987. Será que há passagem de testemunho para o filho?

*com Nuno Chaves e Carlos Rodrigues, TVI