Antes de Cristiano ser Ronaldo e de Ronaldo ser Fenómeno, já Ronaldo Pereira distribuía golos por todo o mapa de Portugal.

Maia, Barreiro, Estoril, Felgueiras, Moreira de Cónegos, Setúbal, Viseu, Amora.

Golos, muitos golos, sobretudo na II Liga. E o que tem isso de tão especial? Bem, a história continua por fechar. Aos 53 anos, num cantinho do Alentejo, Ronaldo ainda é capaz de enganar guarda-redes.

De uma favela na Baixada Fluminense, zona problemática no Rio de Janeiro, até Montemor-o-Novo. Tanto para contar, tanto por contar. Ronaldo nem sabe por onde começar.

E se fosse por Jorge Jesus?

«Em janeiro de 1997 fui para o Felgueiras, na segunda divisão. Os treinadores foram o Augusto Inácio e depois o Jorge Jesus. Já eram diferentes dos outros treinadores que eu conhecia. Geriam muito bem o balneário. Davam muita atenção, por exemplo, aos jogadores que atuavam poucas vezes. Eram fortes no lado emocional, na palavra. Mexiam bem com a nossa cabeça», recorda Ronaldo, uma vida repleta de memórias fortes.

Ronaldo (primeiro à esquerda, em baixo) na equipa titular do São Pedrense (FOTO: GDS Pedrense)

JJ era, então, um homem jovem e de sangue na guelra. Irascível, conta Ronaldo, já com uma gargalhada pronta a rematar.

Gritava muito, sim. Uma vez deixou-me no banco e eu era o melhor marcador da equipa. Estávamos a golear o Torreense, eu até pensava que já nem ia entrar e ele virou-se para mim aos berros: ‘Vais entrar, mas vais fazer aquilo que eu quero, não é o que tu queres! À maminha até eu jogo, não quero que jogues assim.»

Ronaldo lá entrou e fez o golo da praxe. Correu para os braços de Jesus e Jesus recusou-o.

«Era de uma exigência incrível. Raramente fazia um elogio (risos). Marquei um golo, fui abraçá-lo e ele disse logo, ‘vai-te embora, pá, quero é outro golo e deixa lá os abraços’.»

Os caminhos separaram-se, Jorge Jesus construiu um percurso admirável e em 2021 tenta devolver o Benfica aos títulos. Se, num dia destes, passar pela A6 na zona de Vendas Novas, o treinador tem à espera um pitéu alentejano.

«Trabalho numa área de serviço na autoestrada que une Évora a Estremoz. Estou ao balcão e sirvo às mesas também. Passa por cá muita gente conhecida, gente do futebol, mas o meu amigo Jesus ainda não veio. Se ele passar aqui, a primeira bifana é por minha conta. E junto uma cervejinha e um café. Tudo por conta do Ronaldo.»

Luzia é a companheira de vida de Ronaldo desde os 11 anos (Arquivo pessoal)

Do golo no Maracanã ao golo no modesto São Pedrense

Na temporada 2021/22, Ronaldo é um dos homens do ataque do GDS Pedrense, emblema de São Pedro da Gafanhoeira, Arraiolos.

Muitos desconhecem, mas o experientíssimo atacante que esfola os joelhos nos pelados da AF Évora já deixou o grande Flamengo de Mozer e Zico de queixos caídos. Tudo num Maracanã carregadinho com 80 mil almas.

«Aos 17 anos fui chamado pela primeira vez a um jogo da equipa profissional e logo num dérbi. O Flamengo ganhava 1-0 quando eu entrei. Marquei o golo do empate, ali bem à frente do meu ídolo de sempre, o Zico. Ainda hoje somos amigos, gente fina», recorda Ronaldo, um carioca adotado pelo calor alentejano.

Na segunda vez em que toquei na bola, fiz golo. Saltei com o guarda-redes do Fla, ele largou e eu encostei. Leandro, Júnior, Gerson, Adílio, Andrade, o Fla tinha uma equipa maravilhosa e eu fiz esse golo. Fico emocionado só de falar nisso.»

A vida segue, às vezes em velocidade excessiva, e Ronaldo já não é o menino que prometia mundos e fundos no Botafogo que foi de Mané Garrincha. O Maisfutebol apanha-o num dia de folga. Não há trabalho e não há futebol.

«Vivo em Montemor desde 2001. Criei raízes cá, tenho dois filhos e continuo ao lado da Luzia, a minha mulher desde os nossos 11 anos. É uma companheira perfeita, esteve comigo em todos os momentos desde então», conta o avançado, esticado no sofá.

«Só estou um quilo acima do meu peso nos tempos de profissional, sabe? Cuido-me bastante e hoje já fiz os meus abdominais, os meus alongamentos, o meu treininho. Foi por isso que aceitei voltar a jogar, sentia-me bem.»

Quinito (segundo à esquerda) levou Ronaldo para a I Divisão em 1996 (arquivo pessoal)

Ronaldo esteve uns anos nos veteranos do União de Montemor, até o São Pedrense o chamar de volta ao futebol oficial. O antigo pupilo de Jesus foi, gostou do que viu e assinou «para marcar golos e ensinar».

«Ganhei a esperteza que não tinha quando era miúdo. É um privilégio entrar em campo com a idade que tenho. Joguei no Maracanã e agora jogo nos pelados do Alentejo. É bonito. Já fiz o meu golinho [ao Borbense] e quero fazer mais. Sempre fui muito forte na mudança de velocidade e ainda fui capaz de enganá-los. Arranquei, eles não me acompanharam e finalizei bem.»

«Disse à dona Dolores que escolheu o nome Ronaldo por minha culpa»

O homem atende com um sorriso. Aceita pedidos, abre a máquina registadora, limpa mesas, enxagua até o chão se preciso for.

Às vezes, nos dias, reconhece e é reconhecido. Colegas e adversários do passado, figuras públicas, a área de serviço é uma porta de entra e sai.

Ronaldo enfrenta «reações quase sempre engraçadas» e nem a mãe do melhor português de sempre evita uns minutos de conversa. A dona Dolores Aveiro, progenitora de Cristiano, ficou a conhecer mais um Ronaldo.

«A senhora foi uma simpatia. Eu disse-lhe, a brincar, que ela tinha dado o nome de Ronaldo ao filho por minha causa e ela riu-se muito», revela o avançado que agora ajuda o São Pedrense.

«Tirámos uma foto juntos e eu mostrei-lhe uma foto que tirei num jogo-treino em Alvalade, há muitos anos. Joguei contra o Sporting e na imagem aparece o Cristiano, ainda muito novinho.»

O dia da visita da dona Dolores a Ronaldo (arquivo pessoal) 

Há muitos nomes no passado de Ronaldo. Carlos Manuel e Quinito, seus antigos treinadores, já foram provar as famosas bifanas de Vendas Novas. O sorriso descontraído, marca registada dos cariocas, esconde uma infância paupérrima e uma vida que chegou a estar rodeada pelo crime.

Ronaldo escolheu o plano de fuga, precisamente para sorrir a fazer o que mais gosta: jogar à bola.

«Nasci no Rio de Janeiro, numa favela perigosa. Perdi dezenas de amigos para a droga e para o crime. Ou ia para o lado errado ou ia para o lado bom. E eu escolhi o futebol e o lado bom.»

O início de tudo, no jogo maravilhoso, teve a bênção da Estrela Solitária.

«Cresci numa zona onde havia muitos clubes. Bangu, Madureira, Fluminense, Vasco da Gama e Botafogo. Um amigo meu andava a fazer testes no Bota, mas eu nem dinheiro tinha para apanhar um autocarro. Era difícil ter sonhos. Até que certo dia fui ver o treino dele, andei mais de 40 minutos, com muito calor e fiquei ao lado do campo a ver os meninos a jogar.»

Ronaldo nem calçado estava, mas acabou por ser lançado para o meio daquelas ferinhas. Mostrou ser a fera maior e passou a ser jogador do Botafogo. 12 anos, o direito a todos os sonhos.

«Um senhor viu-me ao lado do campo e veio falar comigo. Convidou-me para jogar. Emprestou-me umas chuteiras e eu participei no treino. Esse senhor viria a ser o meu padrinho de casamento.»

«Eram 500 crianças e eu foi um dos poucos escolhidos», diz, tão orgulhoso, o homem que não se cansa de golos. Fez toda a formação no Botafogo, passou pelo Olaria e em 1991 mudou-se para Portugal.

«Um colega meu chamado Danilo jogava no FC Maia e indicou o meu nome ao senhor Rui Formosinho – um homem que já faleceu e que muito me ajudou. Fiz um percurso bonito em Portugal, mas na primeira divisão só joguei no Vitória de Setúbal [1996/97].»

Como se acaba uma conversa destas? A falar de golos. Ronaldo Pereira tem 576 na contabilidade pessoal e não tira da cabeça o número mágico: 600. Chegará lá?

«Acredito que sim, mas a única certeza que tenho é que amanhã é dia de trabalho na área de serviço e de treino no São Pedrense. Não posso pedir mais à vida.»