Há alturas em que a ilusão se cruza com a realidade.

Que o diga Rui Marques, por exemplo. Era um jovem licenciado em economia com a paixão das fantasy leagues. Gostava de futebol, seguia o fenómeno, estava sempre em cima das notícias.

A sonhar viver o jogo por dentro.

«Jogava na Liga Record e ganhava alguns prémios, cheguei a ganhar 500 contos em barras de ouro. A partir de 2004, quando Mourinho foi para Inglaterra, através de contactos com outros treinadores em fóruns, apercebi-me que podia também jogar em Inglaterra», começa por dizer.

«Comecei a jogar na Fantasy League do Daily Mirror e em 2007 ganhei o prémio de treinador do mês. A partir daí tive vários bons resultados e em 2010 ganhei o prémio de treinador do ano, pelo qual recebi 70 mil libras, o que deu qualquer coisa como 90 mil euros. Ganhei mais duas vezes o prémio de treinador do mês e em 2011 fiquei também em sexto na classificação final.»

Por esta altura Rui Marques, natural de Paço de Arcos, já trabalhava numa empresa no Tagus Park, como economista. As fantasy league eram um passatempo, que levava a sério e que lhe dava prazer.

«Em 2011 o Daily Mirror limitou a participação a residentes em Inglaterra e então comecei a jogar na Alemanha, na Fantasy League do jornal Bild. Até aprendi um pouco alemão para acompanhar os sites e absorver a informação necessária. Na Alemanha ganhei o prémio de campeão de inverno, que era um Suzuki Swift, e ganhei o prémio final em maio, que eram 100 mil euros.»

As fantasy leagues já lhe tinham dado um bom pé de meia, portanto. Eram um passatempo rentável. Mas Rui Marques queria mais. Queria viver o sonho.

«Já não me considerava um gajo qualquer», revela.  

«Depois de ganhar a Alemanha decidi arriscar e comecei a enviar currículos para clubes, a contar a minha história. Enviei o currículo para seis clubes em Portugal e o primeiro clube que me chamou para uma entrevista foi o FC Porto. Em julho de 2013, fui chamado por um membro do departamento de scouting, meti a manhã, apanhei o comboio e fui para o Porto.»

Rui Marques lembra que «foi no ano do Kelvin». Chegou ao Estádio do Dragão, entrou na SAD, apresentou-se e sentou-se na sala de espera.

«Nunca me esqueço que passou o Pinto da Costa e disse bom dia. Ele lá entrou para o gabinete dele e eu fui entrevistado por um scout que depois foi para o Mónaco e agora está no Lille chamado Ademar Lopes. Fez-me a entrevista e no fim disse-me que iam entrar em contacto, mas nunca entraram. Entretanto ele também saiu do clube, o FC Porto entrou em mudanças e passou.»

Não ficou muito tempo à espera do segundo telefonema. Pouco depois o telemóvel voltou a dar sinal: era o Estoril-Praia, que na altura vivia os tempos áureos sob o comando de Marco Silva.

«Chamaram-me para uma entrevista com o chief-scout da altura, o Pedro Bessa, que hoje é diretor desportivo do Feirense. Convidou-me para ir ver um jogo com ele e propôs-me começar em regime de voluntariado. Achei que fazia sentido não ter remuneração, de forma a mostrar o meu valor.»

2013 tornou-se, por isso, um ano diabólico.

Em maio ganhou a fantasy league do Bild, em julho foi a uma entrevista no FC Porto, em setembro cumpriu o sonho de começar a trabalhar em futebol, no Estoril, e em dezembro foi pai.

Rui Marques viu-se levado por um turbilhão de acontecimentos.

«Entreguei-me com tudo. Fiquei responsável pelo scout da II Liga e do Campeonato de Portugal para o Estoril, trabalhei imenso, vi muitos jogos, só não trabalhei no fim de semana do nascimento do meu filho. No final dessa época, o Estoril contratou dois jogadores indicados por mim: o Anderson Esiti, do Leixões, e o Kuca, do Desp. Chaves.»

Duas apostas acertadas. Kuca foi vendido seis meses depois para o Karabukspor, da Turquia, Esiti foi vendido mais tarde para o Gent, da Bélgica.

«Correu bem», recorda.

No final da temporada Rui Marques foi falar com os responsáveis, lembrou que já tinha mostrado trabalho e que merecia por isso uma remuneração. A exigência foi aceite e começou a ter um salário. Mas não deixou de trabalhar na empresa em que estava. Aliás, hoje ainda não deixou.

«O que ganho no futebol dava para viver, mas habituei-me aos dois salários e enquanto o futebol não me der o equivalente ao que ganho nos dois sítios, acho que não vou deixar.»

O scout continua por isso a ser uma part-time, mas que lhe ocupa mais tempo do que o emprego de economista das nove às cinco. Rui Marques passa muito mais de 40 horas semanais a ver jogos.

Entretanto na segunda temporada de scouting no Estoril algo de surpreendente aconteceu.

«Uma vez, num sábado, em 2014, o meu irmão estava no ginásio e encontrou lá o Luís Filipe Vieira. O meu irmão falou-lhe de mim, contou-lhe a minha história e o Luís Filipe Vieira deu-lhe o email e disse-lhe para eu enviar o meu currículo e uma carta de apresentação. Fiz isso», conta.

«O assessor do Luís Filipe Vieira era o atual diretor desportivo, o Tiago Pinto, respondeu ao email a convidar-me para ir almoçar com o presidente e com o Armando Carneiro, diretor do Seixal. Fiquei todo contente. No entanto, dois dias antes do almoço morreu o Mário Coluna. Imaginei logo que ia correr mal. Quando fui ao Seixal, o presidente tinha ido para Angola, para as cerimónias fúnebres, o Armando Carneiro estava numa reunião, de maneira que reuni com duas pessoas da estrutura, mais jovens do que eu, que desvalorizaram o meu trajeto, até brincaram com isso e não me reconheceram valor. Nunca mais recebi nenhuma resposta.»

Rui Marques ainda insistiu com Tiago Pinto.

«Enviei-lhe um email e ele respondeu-me que tinham de confiar nas pessoas da estrutura e no parecer negativo que tinham dado de mim», lembra. «Não aconteceu e se calhar até foi bom para mim, na altura não estava preparado para o Benfica e já estava a trabalhar no Estoril.»

Entretanto, e voltando ao Estoril, importa dizer que a segunda temporada não correu tão bem quanto a primeira. O que acabou por significar o início do fim.

«Houve uma mudança de treinador, veio o José Couceiro, os resultados baixaram um bocado e na primavera de 2015 surgiu o boato de que a Traffic ia vender a participação na SAD. Nessa altura pensei em mudar, em procurar outros caminhos e enviei currículos para outros clubes», refere.

«Tive a sorte de já ter contactos com o Kansas City, desde 2013 que já conhecia o adjunto, o Kerry Zavagnin, íamos várias vezes trocando informações. Falei com ele e convidou-me a trabalhar para eles. O Kansas City tinha contratado um chief scout do Chelsea, o chileno Jorge Alvial, que trabalhou com Mourinho, Villas-Boas, enfim. Fui a Madrid encontrar-me com ele, para o conhecer, fechámos acordo e despedi-me do Estoril. Dia 1 de julho comecei no Kansas City.»

Naquela altura era tudo o que Rui Marques queria. Continuava a viver em Paço de Arcos, mas num clube com melhores meios, que lhe deu um acesso pessoal à plataforma Wyscout e que lhe permitia ser o responsável pelos campeonatos de Portugal, Espanha, França e Bélgica.

«O Kansas City andava à procura de um central e acabou por contratar o Nuno André Coelho, mas não por indicação minha. O Nuno é muito bom jogador, mas tinha tido duas lesões graves no joelho, e eu não podia começar o meu trabalho num clube a indicar um jogador com risco de lesão. Eles vieram à Europa, analisaram o Nuno, acharam que estava bem e contrataram-no. O Nuno começou bem, fez oito ou nove jogos a titular, marcou um golo, mas depois tem vários problemas musculares e acabou por sair no final da época.»

Ora por isso, e no primeiro mercado que teve, Rui Marques acabou por não estar na origem de nenhuma transferência: o central que o clube quis contratar não foi nenhum dos que indicou.

«Fiz o meu trabalho para o mercado de 2016 e indiquei o Diego Rubio, que eu conhecia bem de ver na equipa B do Sporting, quando ia ver jogos da II Liga para o Estoril a Alcochete, sobretudo para ver as equipas do norte. Sabia que ele tinha sido emprestado ao Valladolid, com opção de compra, mas que não estava a jogar e indiquei o Diego Rubio como um jogador que vale 15 golos na MLS. Foi contratado», recorda.

«Consegui também que o clube contratasse o Kevin Oliveira para a equipa B, que foi formado no Benfica e estava emprestado ao Sp. Covilhã. Para mim foi um bom início no Kansas City.»

O que é certo que o ano de 2016 não é bom para o clube, nem para Rui Marques. Os resultados ficam aquém do esperado, Kevin Oliveira tem uma rotura de ligamentos e Rubio passa a maior parte da temporada como suplente de Dom Dwyer, o avançado preferido do treinador.

«Para a temporada 2017 voltei a indicar o Gerso, que tinha passado do Estoril para o Belenenses, e o clube desta vez contratou-o. Nesse ano o Kansas fez uma época melhor. O Dom Dwyer saiu na maior transferência entre clubes da MLS, o Rubio agarrou o lugar e ele e o Gerso foram titulares. O clube ganhou a US Open Cup, que é a Taça dos Estados Unidos, e para além disso o Rubio e o Gerso foram os melhores marcadores da equipa. Portanto, tudo perfeito.»

2018 começa com a saída de Kevin Oliveira: o jovem cabo-verdiano até já tinha sido promovido ao plantel principal, mas um desacordo entre clube e empresário conduziu ao fim da relação.

Rui Marques continua a trabalhar no mercado e consegue que o Kansas City contrate mais um jogador indicado por ele: o francês Yohan Croizet, que jogava no Malines, da Bélgica.

«O Croizet começou muito mal, irreconhecível e pensei que ia ter um falhanço. Mas a partir de agosto explodiu e fez uma segunda metade da época espetacular», conta.

«O Rubio acabou o ano com uma média de 0,90 golos por jogo, muitas vezes saindo do banco, e marcou dois golos no play-off, sendo que o Kansas pela primeira vez passou a primeira eliminatória. O Gerso acabou a temporada com seis golos e cinco assistências, o Croizet acabou com três golos, um deles o melhor do ano, o Rubio acabou com uma média ótima de golos.»

Mais uma vez as coisas correram-lhe bem.

«Neste início de 2019 tive uma grande desilusão: o Rubio foi trocado por um outro jogador do Colorado Rapids mais 300 mil dólares. Os adeptos ficaram incrédulos. Ele tem um salário de 250 mil dólares, é um jogador barato e vale bem mais do que 300 mil dólares mais um jogador. Foi uma desilusão para mim.»

O mercado, ao contrário dos anteriores, também não lhe correu bem. Pela primeira vez, depois do ano de estreia, não conseguiu convencer o clube a contratar nenhum jogador.

«O clube procurava um lateral esquerdo, eu trabalhei ativamente para colocar um de dois jogadores do campeonato português, chegámos a ter tudo acertado com o Afonso Figueiredo, mas o jogador por razões familiares, tinha sido pai há pouco tempo, desistiu de ir. O outro jogador não quiseram, nem quiseram um francês da II Divisão francesa, e eu fiquei frustrado.»

Com uma honestidade desarmante, Rui Marques conta que se calhar está na altura de pensar em novos desafios: encontrar um novo clube, procurar diferentes estímulos, recuperar o entusiasmo.

Enquanto fala vai mostrando os apontamentos que tem no computador, devidamente esquematizados, as estatísticas dos jogadores, as características de cada um, o histórico, as equipas sombra que criou para os diferentes campeonatos com jogadores a quem reconhece qualidade e que sente poderem encaixar-se bem no Kansas: no esquema tático e nas limitações financeiras.

«Continuo a trabalhar no Kansas, mas acho que esta é a altura de chegar a outro patamar. Estou na minha sexta época de scout e gostava de dar o salto», sublinha.

«Eles gostam de mim, mas eu quero trabalhar num clube mais ativo. Tenho o sonho de trabalhar em Inglaterra, mas sobretudo quero chegar a um clube mais dinâmico no mercado.»

A vida já lhe ensinou que os sonhos podem ser vividos: não há impossíveis. Em breve vai sair em Inglaterra, aliás, um livro que conta isso mesmo, que conta a história dele.

Porque há alturas em que a ilusão se cruza com a realidade.

(Artigo originalmente publicado às 23:52 de 24-01-2019)